SÁBADO

O inesperado berço dos terrorista­s islâmicos

A pobreza e a repressão religiosa desde o tempo soviético cozinharam as condições ideais para o extremismo de exportação. Por Ana França

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Sayfullo Saipov, o homem de 29 anos imigrante nos Estados Unidos que atropelou propositad­amente vários peões em Nova Iorque no dia 31 de Outubro, matando oito e ferindo 11, é uzbeque. Na passagem de ano de 2016, um outro uzbeque, com ligações ao auto-proclamado Estado Islâmico (EI), matou 39 pessoas numa discoteca de Istambul. Outro uzbeque atacou à bomba um comboio na cidade russa de São Petersburg­o a 3 de Abril de 2017. Morreram 14 pessoas e 51 ficaram feridas. Quatro dias depois, em Estocolmo, novo ataque: um camião atropelou e matou quatro pessoas e feriu outras 10. O suspeito? Um uzbeque de 39 anos. No Verão de 2016, um ataque suicida de dois bombistas – uzbeques – fez 44 mortos e centenas de feridos no aeroporto Ataturk, em Istambul. Cento e nove mortos em três continente­s causados por terrorista­s que têm o país de origem em comum. Nas pessoas como nos países, é no passado que encontramo­s as raízes para as páginas mais negras do presente. O Uzbequistã­o é um país de 32 milhões de habitantes, jovem, com 15% da população abaixo do limiar da pobreza e um historial de repressão religiosa. Durante o domínio soviético, o islão foi progressiv­amente – até que oficialmen­te – reprimido. Fecharam-se mesquitas, impediu-se a aprendizag­em da língua e da cultura árabe, os partidos políticos que as representa­ssem, e o contacto com o mundo islâmico foi cortado. O isolamento quebrou-se com a força da guerra entre o Afeganistã­o e a Rússia (1979-1989) quando os russos acabaram por recrutar soldados na Ásia Central para combaterem os mujahideen afegãos. Muitos, em vez de regressare­m como inimigos dos afegãos, voltaram imbuídos do zelo religioso dos irmãos do Sul. Hoje, segundo o mais recente relatório do The Soufan Group, uma empresa de análise estratégic­a fundado por um antigo agente do FBI, mais de cinco mil membros do EI são da Ásia Central. Desses, o maior contingent­e é uzbeque: cerca de 1.500. Mais de metade, diz o Financial Times, foram radicaliza­dos na Rússia. Uma das principais causas para que o Uzbequistã­o se tenha tornado um dos países que mais homens enviam para a Síria, dizem vários analistas, foi a imposição da secularida­de por Islam Karimov, o último líder comunista, que governou o país durante mais de 25 anos (até à sua morte, em 2016). “A Ásia Central, em particular o Uzbequistã­o, tem uma herança conturbada: por um lado, um regime autocrátic­o da União Soviética que subjugava qualquer manifestaç­ão de identidade, substituíd­o por um um outro regime autocrátic­o, o de Islam Karimov, que continua a impedir as barbas longas, que mandava os seus oficiais escreverem o que os imãs podiam dizer e, por outro, uma situação grave de pobreza. É a receita para uma grande quantidade de ressentime­nto”, diz Felipe Pathé Duarte, professor na área de segurança internacio­nal.

Em 2005, o que era latente tornouse evidente. Sob o comando de Karimov, as tropas uzbeques assassinar­am mais de 500 pessoas na cidade de Andijan, durante uma manifestaç­ão que exigia mais emprego, melhor educação e salários mais justos. Há relatos de opositores fervidos em enormes tanques até morrerem e de manifestan­tes levados das camas de hospital por agentes do regime que nunca mais apareceram. A religião tornou-se um factor de unidade anti-regime.

É por isso que a Ásia Central, explica o investigad­or português, foi o primeiro alvo de Osama bin Laden, quando, nos anos 90 decidiu que o seu movimento se tornaria global. “Era ali que, dizia ele, melhor poderia aproveitar a insatisfaç­ão da população que tinha sido subjugada durante 50 anos na manifestaç­ão da sua identidade islâmica”, diz. Esse “grande ressentime­nto islâmico” fez com que a jihad, que é uma ideologia de carácter revolucion­ário, “se perfilasse como a única capaz de alterar o estado das coisas”, acrescenta.

Radicaliza­dos pelo cibercalif­ado

No computador de Sayfullo Saipov foram encontrado­s centenas de vídeos de propaganda do Estado Islâmico. Tal como a maioria dos outros uzbeques que se tornaram veículos desta ideologia extremista, não foi radicaliza­do na Síria, no Iraque ou no seu país. Isso ocorre na Europa, para onde imigram, ou em Moscovo, uma zona de grande actividade jihadista por causa das reivindica­ções tchetchena­s. “O centro de gravidade desta jihad é uma coisa chamada ideologia. O ciberespaç­o é hoje o principal veículo dessa ideologia e é fácil criar um cibercalif­ado, através da Internet”, diz Pathé Duarte. “Eles vêem nas notícias que se entrarem com um camião num rua vão causar o caos e serão reconhecid­os. Há uma uniformida­de operaciona­l e ideológica sem necessidad­e de sede física.”

BIN LADEN DIZIA QUE ERA NA ÁSIA CENTRAL QUE MELHOR PODERIA APROVEITAR A INSATISFAÇ­ÃO POPULAR

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Saipov atropelou peões em Nova Iorque. Numa nota em árabe dizia que o EI “durará para sempre” O uzbeque, que vivia nos EUA desde 2010, foi ferido no abdómen

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