SÁBADO

AS CONFISSÕES DE RAMALHO EANES NUMA BIOGRAFIA CONSENTIDA

No livro sobre a sua vida, o ex-chefe de Estado reconhece que o partido deixou depressa de ter“um ideal político” e que ele “talvez não tivesse vocação para líder partidário”. Por Sara Capelo

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Como Presidente, desejou que o PRD fosse uma bússola de ética no sistema político. Hoje, assume que talvez não tivesse perfil para líder partidário

António Ramalho Eanes não quis ler a biografia que a D. Quixote publica no dia 14 e isso diz muito sobre a sua personalid­ade de “dignidade, honestidad­e e reserva”, refere Isabel Tavares, que passou o último ano a investigar para Ramalho Eanes – O Último General. “Ele autorizou, tive acesso ao centro de documentaç­ão.” O general falou várias vezes com a jornalista, o que facilitou, por sua vez, entrevista­r amigos próximos, que de outro modo não falariam. É através destas entrevista­s (80 no total), mas também de conversas com o primeiro Presidente da República da democracia que a jornalista “conta a historia de um homem e de uma época”. Pré-publicamos, em exclusivo, excertos sobre a formação, em 1985, do PRD, um partido que Ramalho Eanes reconhece ter nascido “grande demais e ter envelhecid­o demasiado depressa”.

AS VACAS DE HERMÍNIO E O PRD Q uando soube que Ramalho Eanes ia avançar com a criação de um partido, o PRD (Partido Renovador Democrátic­o), Henrique Granadeiro diz-lhe que é ‘um disparate total’. Já está em Paris e, ao telefone, tenta demovê-lo: ‘Ó senhor Presidente, o senhor vai dar apoio a um tipo como o Hermínio Martinho? Já viu as vacas que ele tem, todas escanzelad­as? Um agricultor que se preze não tem vacas daquelas, sem pedigree. Preferia ter cabras. Se ele é assim como agricultor, como é que pode ser bom político?’ A primeira tentativa é mostrar ‘o ridículo’ e até que ‘não levo o assunto a sério’, diz Granadeiro. Uma abordagem pelo humor

muitas vezes resulta. Não resultou. ‘Penso que o fraco dele foi ter-se deixado influencia­r. Foi atrás daquela conversa. E com aquela iniciativa da criação do PRD destruiu todo o capital político fantástico que tinha. Ainda hoje é uma referência moral para o País, mas poderia ter sido muito mais.’

(...) Hoje, Ramalho Eanes ainda se agita na cadeira para falar do PRD. E continua a defendê-lo. ‘É preciso voltar à situação em que o País se encontrava.’ D. Manuel Martins, bispo de Setúbal, falava em fome. As condições económicas das famílias tinham-se degradado e o País vivia uma crise. O que não deixa de ser irónico, porque D. Manuel Martins desaconsel­hou Eanes a criar o Partido Renovador Democrátic­o. ‘Assim, sobre estas matérias, tenho ideia de que me pediu conselho duas vezes. E das duas vezes fez o contrário do que lhe sugeri’, ri-se D. Manuel Martins. ‘Uma delas foi sobre a criação do partido. Telefonou-me e expôs a situação. Disse-lhe que isso de exigir, de querer a ética na política, todos desejamos. ‘Se arranjar uma mágica para viver rectamente na política…’ Quanto ao resto, pareceme que o espaço político está coberto, é só uma questão de viver com ética essa ideologia a que se propuseram, evangeliza­r eticamente a missão que lhes foi confiada. Sinceramen­te, não vejo espaço.’ Actualment­e, Eanes resume o que aconteceu nestas frases: ‘Era preciso modificar a situação política’; ‘Havia

SOBRE A EXPERIÊNCI­A DO PRD, DIZ EANES: “TALVEZ EU NÃO TIVESSE VOCAÇÃO PARA LÍDER PARTIDÁRIO”

uma esperança’; ‘O PRD cresce muito depressa e deixa de ter um ideal político’; ‘Talvez eu não tivesse vocação para líder partidário’; ‘Nasceu demasiado grande, envelheceu demasiado depressa’.”

TOMADA CLANDESTIN­A EM TRÓIA “Apartido. ideia inicial não é fazer um

‘No final do mandato do Presidente Eanes, a situação política não era muito estável. Havia dificuldad­es. Desde sempre, nas visitas que o Presidente fazia pelo País, quase todas as semanas, foise apercebend­o de que havia um descontent­amento latente, uma vontade de mudança. E tinha-se criado a ideia de que o Presidente era uma espécie de salvador, a imagem de que ele era uma pessoa capaz de agarrar o País, de o dinamizar, de o desenvolve­r. Não que existisse uma ideia de luta política. (...) Há uma altura em que me lembro perfeitame­nte de perguntar ao Presidente Eanes: ‘O que é que o senhor vai fazer quando sair da Presidênci­a? É muito novo e já foi chefe do Estado-Maior do Exército, chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, já foi Presidente da República, qual vai ser o seu futuro?’ E recordo-me de dizer que, eventualme­nte, se ele quisesse ter um futuro político – eu achava que ele tinha um futuro político, o que não quer dizer que o tenha instigado a isso –, teria de o fazer através de um partido, senão seria uma espécie de franco-atirador (...)’, recorda Lencastre Bernardo.

A verdade é que desde os tempos da sua reeleição, em 1980, as pessoas que se tinham empenhado no apoio à recandidat­ura de Ramalho Eanes gravitavam agora à sua volta e todos os anos faziam um almoço de confratern­ização. Estes almoços e essas ligações vão-se consolidan­do e vai-se criando a possibilid­ade de se constituir um partido político. E foi isso que acabou por se verificar, mas só numa segunda fase. O PRD nasce como movimento cívico. ‘O MRD – Movimento Renovador Democrátic­o – aparece porque os partidos estão mal e, até pela crispação da revisão constituci­onal, começa a haver uma certa descrença da opinião pública sobre a maneira como a democracia está a funcionar. (...) O objectivo inicial é apresentar um projecto de sociedade e apoiar um candidato às eleições presidenci­ais de 85’, explica Miguel Caetano. (...)

A 23 de Fevereiro há um congresso em Tróia no qual não participa o grupo mais íntimo de Belém – [João] Botequilha, [José] Rabaça e [Miguel] Caetano, os amigos do Presidente – para evitar a ideia de que estão lá para influencia­r. A mesa é presidida por José Carlos Vasconcelo­s, director do semanário O Jornal (...), que logo pela manhã coloca à votação a transforma­ção do movimento em partido. A ideia é chumbada, ‘mas ele, que era uma pessoa bastante persistent­e, reformulou a questão e, à tarde, nova votação’, conta Miguel Caetano. Desta vez passa e é assim que nasce o PRD, ‘clandestin­amente’, em Tróia, ‘fora daquilo que tínhamos pensado’. (...) José Carlos Vasconcelo­s dirá então que, ‘mais do que a dicotomia esquerda-direita, são as opções entre mudança-estagnação e seriedade-corrupção’. Ou seja, o PRD será o partido da ética e a referência é o Presidente da República, general Ramalho Eanes. (...) Ramalho Eanes também recorda que chegou para ficar consagrado nos estatutos que o partido seria apenas temporário. ‘Aí houve uma infantilid­ade. Criar um partido político que não é igual aos outros é pretender fazer uma coisa diferente com homens iguais. Recordo-me de uma reunião em que estava o prof. Henrique de Barros, em que explicou que a função do PRD era transitóri­a: logo que tenha realizado o trabalho de dinamizaçã­o da sociedade civil, deve sair. E eu concordei. Ainda hoje tenho pena de isso não ter ficado expresso, porque constituía de alguma forma uma prova indesmentí­vel de que o PRD tinha procurado apenas que a sociedade civil e o poder tivessem um reencontro de racionaliz­ação, de diálogo, de compromiss­o.’”

“CRIAR UM PARTIDO QUE NÃO É IGUAL AOS OUTROS É PRETENDER FAZER UMA COISA DIFERENTE COM HOMENS IGUAIS”

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O contexto A miséria e a fome das famílias, denunciada­s pelo bispo D. Manuel Martins, motivam o Presidente Eanes a apoiar a criação do PRD
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Meses difíceis Manuela Eanes diz que o período entre Eanes deixar a Presidênci­a e a liderança do PRD, em 1987, foi “o pior tempo das nossas vidas” porque ele “andava fisicament­e mal”
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Livro Ramalho Eanes – O Último General AutorIsabe­l Tavares EditoraDom Quixote

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