O PEQUENO GRANDE MUNDO DA CERVEJA ARTESANAL
Lisboa ganhou um bairro cervejeiro, o País está a ganhar uma indústria – que ainda é de nicho, mas tem vindo a crescer. Fomos medir a temperatura a esta nova febre: afinal, quem faz cerveja à mão?
Omote era discutir a promoção de Marvila a “sítio por excelência para se beber cerveja artesanal em Lisboa” – pelo que o ambiente da conversa, claro, só podia ser “à volta dos copos”. A expressão é de Susana Cascais, criadora – com o marido, Scott Steffens – da Dois Corvos, marca lisboeta de cerveja artesanal que em 2013 assentou arraiais no bairro lisboeta e em 2015 começou a “comercializar oficialmente” a cerveja que produz. Numa zona que, lembra Susana, ainda há pouco estava “muito degradada e abandonada”, juntaram-se depois a Lince (em 2015) e a Musa (em 2016). Alinhadas pela actividade e proximidade geográfica (as três têm as suas fábricas entre as ruas do Açúcar e Capitão Leitão, num raio de 300 metros), reivindicam agora para Marvila o estatuto de Lisbon Beer District – ou bairro da cerveja de Lisboa. É a mais recente face da pequena revolução cervejeira nacional, iniciada na última década e que começa a ganhar peso de norte a sul.
“Indústria embrionária em consolidação”
A cerveja artesanal – produzida através de processos artesanais, sem recurso a conservantes e afins, e sempre em pequena escala, por comparação com a
industrial – é hoje, explica a criadora da Dois Corvos, “uma indústria nova em Portugal”, iniciada no Norte e entretanto expandida a todo o País, que, embora comece a aproximar-se da “consolidação”, está ainda numa fase algo “embrionária”, se comparada com a de outros mercados – do britânico e espanhol ao seminal norte-americano (onde o número de cervejeiros artesanais cresce há 30 anos e mais de 20 por cento da cerveja consumida é artesanal). “Estamos aqui na pontinha e está tudo por desbravar”, acrescenta Susana, sublinhando que, apesar de ainda não haver estudos públicos que o confirmem, é possível inferir que a cerveja artesanal representa “menos de 1 por cento” do total de cervejas vendidas em Portugal – dado confirmado ao GPS pela Associação Portuguesa dos Produtores de Cerveja (APCV), que fala em menos de 0,5 por cento em volume, e a que João Gonçalves, criador do site Cerveja Artesanal Portuguesa (CAP), acrescenta um outro: 4 por cento, que estima ser o peso da cerveja artesanal no nosso País, em termos de volume de negócio (mais elevado porque – como explica – o preço de venda é superior). “Especulando, podemos dizer que vamos chegar a um ponto de grande desenvoltura rapidamente”, diz a responsável da Dois Corvos, que acredita que “Portugal tem potencial para encurtar a viagem, que levou uma década noutros países, para quatro a cinco anos”.
António Carriço, fundador da Lince, acrescenta dois ingredientes que fermentam a esperança no crescimento: “Por um lado, há uma curiosidade e predisposição dos mais novos para experimentar coisas diferentes. Por outro, os turistas gostam de consumir coisas tipicamente portuguesas e gostarão mais de um produto artesanal português do que de um produto industrial português.”
A reivindicação de um bairro cervejeiro na capital é um dos sinais de crescimento do sector. A profusão de festivais e eventos recentes dedicados à cerveja, incluindo a artesanal – dos lisboetas Lisbon Beer Week, Birra da Cerveja e Festival da Cerveja do Mercado de Campo de Ourique aos Beer Fest do Porto e de Aveiro, The Beer Promenade (em Cascais), Provart (na Sertã), Alameda Beer Fest (em Faro), Concurso Nacional de Cervejas Caseiras e Artesanais ou Artbeerfest (em Caminha) – é outro. “Há cinco anos havia um estilo de cerveja – a ‘imperial, se faz favor’, e mais nada”, graceja o criador da Musa, referindo-se à Pilsner, a variedade mais comum. “Era como ir a um supermercado e só haver um tipo de pão, um Bimbo ensacado, ou só haver vinho da casa. Já não faz sentido”, acrescenta, mais séria, Susana.
No início, foram as viagens Se há detalhe que une muitos dos cervejeiros artesanais portugueses é que se apaixonaram pela bebida enquanto viajavam. Sendo a oferta em Portugal tão escassa, não admira... Com Bruno Carrilho, da Musa, por exemplo, aconteceu isso mesmo: descobriu na Alemanha e nos Estados Unidos que havia muito mais cervejas do que imaginava. Tudo começou nos anos 90, quando, ainda estudante, fez um estágio numa pequena cidade da Baviera, no Sul da Alemanha: “Descobri um estilo de cerveja que não conhecia, que era a Weissbier [uma cerveja de trigo não filtrada], e era incrível. Foi a minha primeira epifania cervejeira”. Quando voltou para Portugal, “durante um ano não fazia outra coisa senão ir a todos os supermercados, aos corredores das cervejas, para ver se encontrava uma. E nunca encontrava, era uma frustração tremenda”, conta.
Mais tarde, entre 2004 e 2006, enquanto fazia um mestrado em Gestão nos Estados Unidos, a cerveja voltou a arrebatá-lo: “Lá, uma pessoa entra num sítio e perguntam-lhe que cerveja quer… No início, escolhe-se ao calhas, era o que eu fazia, mas depois vai-se gostando e não se quer outra coisa.” Juntou o útil – o mestrado em Gestão – ao agradável – o gosto pela cerveja –, e decidiu “trazer o negócio para Portugal”. O mesmo aconteceu com o fundador da Lince, António Carriço, que se fascinou pela cerveja numa viagem à Bélgica, e com Alberto Abreu, criador da portuense Sovina – que se gaba de ser a primeira marca de cerveja artesanal a produzir e engarrafar em Portugal. Nas suas viagens pela Europa, nos anos 80, Alberto “tentava sempre conhecer as cervejarias artesanais” e sonhava abrir um brewpub (bar com produção própria de cerveja) no Porto. A Sovina em garrafa – conta Paula Martins, sócia-gerente – “foi apenas um ‘acidente’ no percurso”. Hoje, a marca produz cerca de 14 mil litros por mês, um pouco menos do que as já mencionadas Musa (cerca de 20 mil) e Dois Corvos (cerca de 25 mil), mas bastante mais do que a Lince (5 mil). Além disso, contribuiu especialmente para o crescimento dos cervejeiros caseiros em Portugal, vendendo matérias-primas e equipamento para produção doméstica e promovendo workshops de iniciação à actividade.
Os engenheiros da cerveja Nessa primeira geração nacional de cervejeiras artesanais estava “malta que vinha das áreas da física e da química, um grupo bastante sólido”, recorda ao GPS João Gonçalves (CAP), que começou a interessar-se pelo assunto em 2011, numa altura em que a produção artesanal portuguesa estava numa fase tão inicial que “conhecia toda a gente que fazia cerveja”. Quando o equipamento de produção caseira começou a massificar-se, entre 2012 e 2013, surgiram – como conta – “mais pessoas a produzir, mas com um nível de qualidade média mais baixa”, até se chegar ao momento actual, “em que há umas 15 marcas de qualidade muito boa”. Como exemplos, enumera a Post Scriptum (da Trofa), as lisboetas Passarola e Dois Corvos, a aveirense Maldita, a mafrense Mean Sardine e a minhota Letra, que já este ano inspirou a Letraria, um novo – e irresistível – pólo cervejeiro do Porto. A Gíria, a Luzia, a Oitava Colina e a OPO74 são “outras marcas nacionais em crescimento, a seguir”.
No tal primeiro grupo “físico-químico” estava Gonçalo Faustino, que começou “a apreciar cerveja” – como muitos dos colegas – quando andava a estudar Engenharia Química. Em 2008, começou a tentar fazer cervejas diferentes das que havia e daí a convencer o pai, Artur Faustino, e a Incubadora de Empresas da Universidade de Aveiro (IEUA) a apoiá-lo na criação da empresa fabricante da Maldita foi um pulo: em 2012, a aventura começava.
O sucesso da marca, cujo nome foi “roubado” a um desabafo conjugal que Gonçalo ouviu – “Lá vais tu outra vez para a maldita cerveja!” –, está na “filosofia de produção” do cervejeiro fundador, que além de engenheiro é beer sommelier certificado no Reino Unido e na Alemanha. João Sousa, sóciogestor da Maldita, explica melhor. “O processo de