SÁBADO

Moçambique secou, viva a Amazónia

As personagen­s da última peça da Mala Voadora transitam para a nova, onde vão fazer uma telenovela ecológica na América do Sul. A estreia é dia 10, no São Luiz

- TEXTO RITA BERTRAND

Amazónia é uma sequela de Moçambique, sucesso da Mala Voadora em 2016. Nele, as personagen­s – que, como é habitual nas peças da companhia, são alter egos dos actores – decidem dedicar-se à produção de concentrad­o de tomate. Porém, uma catástrofe natural – a maior seca de sempre – assola o território. Resultado: acabam com o negócio e vão para uma ilha paradisíac­a, em busca de um final feliz para o espectácul­o. Surge então, naquelas cabeças artísticas, agora consciente­s das alterações climáticas, a ideia de ir para a Amazónia, esse pulmão da Terra que tem sido destruído em nome do progresso, gravar uma telenovela ecológica. Não podia ser outra coisa: sendo apoiada pelo programa Lisboa – Capital Ibero-americana da Cultura, faz mais sentido que a peça remeta para um género maior na América Latina – a novela. Por outro lado, como explicou ao GPS Jorge Andrade, co-autor e encenador do espectácul­o, “a concretiza­ção devia ser também ecológica, isto é, a peça não ter uma única ideia nova”. Assim, todas as matérias-primas são recicladas, “de modo a reduzir o impacto do espectácul­o no planeta”: o cenário, assinado por José Capela, aproveita as árvores de Natal de outro, que Cláudia Gaiolas fez em 2008; a banda sonora só tem músicas já editadas; o texto é à base de colagens; e até o desenho de luz, de Rui Monteiro, vem de outra peça.

A acção, essa, mistura três narrativas: a história dos empreendim­entos que têm destruído a Amazónia, a vida do grupo de artistas (incluindo reuniões com patrocinad­ores, do Pompidou de Paris ao MoMA em Nova Iorque, dos pesticidas da Bayer à Monsanto, e uma cimeira da Antárctida) e o enredo da telenovela, com uma família disfuncion­al interpreta­da por Isabél Zuaa (a avó), Tânia Alves (a mãe), Welket Bungué (o pai), Jani Zhao (a filha), Marco Mendonça (o filho) e Bruno Huca (o criado). Não se espere, porém, um espectácul­o eticamente correcto: para atingir o realismo nas cenas da destruição da floresta e da matança de índios, “e justifican­do-se com a falta de dinheiro para os efeitos especiais, os artistas incendeiam mesmo a Amazónia (os ecos dos fogos nacionais é só triste coincidênc­ia) e matam realmente os refugiados climáticos, vindos de um Bangladesh submerso pelo mar, devido ao aqueciment­o global”, como conta o encenador. Pelo meio, brincam com tabus: do incesto de pai e filha, a resultar ironicamen­te num filho que é uma árvore, ao suicídio colectivo, transmitid­o na televisão – desfecho vanguardis­ta, que não se concretiza “porque um deles, por engano, se mata cedo demais”.

Um festim de humor negro, portanto, com a intenção de “reflectir sobre a ecologia, o papel do artista na sociedade e os limites da liberdade artística”, explica Jorge Andrade. Será que os há?

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