SE PUDESSE FAZER PINOT NOIR, ARRANCAVA A VINHA JÁ AMANHÃ
HÁ 20 ANOS, A QUINTA DO MONTE D’OIRO PRODUZIU O SEU PRIMEIRO VINHO, E JOSÉ BENTO DOS SANTOS, ENGENHEIRO DE FORMAÇÃO E GASTRÓNOMO POR PAIXÃO, TORNOU-SE UM PRODUTOR DE REFERÊNCIA
Natropa, rapidamente o capitão descobriu que era melhor entregar-lhe os ingredientes para ele preparar e comerem à parte. Nascido em 1947, autor de livros sobre gastronomia e vinhos (e de programas de televisão sobre estes temas), José Bento dos Santos comprou a Quinta do Monte d’Oiro nos anos 80, mas a primeira colheita só saiu em 1997. Desde então, os seus ambiciosos vinhos – agora também do seu filho Francisco – têm conquistado prémios e os elogios da crítica.
Como surgiu o interesse pelos vinhos?
Até aos 14 anos as minhas férias eram passadas no meio das vindimas, em Vila Chã, uma aldeia ao lado da Quinta do Monte d’Oiro, que na altura tinha outro dono. A ligação ao vinho vem daí, de perceber o que é um lagar, de assistir às discussões, dos cheiros que ficam. Com 18 anos, tive a sorte de visitar os grandes châteaux de Bordéus, quando lá fui jogar râguebi [com a equipa do Instituto Superior Técnico] e o vinho tornou-se uma das minhas grandes paixões. A partir daí comecei a beber em restaurantes e a ligar uma coisa à outra.
O interesse pela cozinha também surgiu cedo?
Comecei a cozinhar com 7 ou 8 anos. Havia qualquer coisa que me puxava. Isso acompanhou-me até hoje. Tive uma vida de excitação permanente, na bolsa, nos negócios, e cozinhar foi uma maneira de relaxar. Em mais de metade dos dias que vivi fiz o meu jantar. E fi-lo com alguma capacidade – a título pessoal, claro.
Como é que desenvolveu essa capacidade?
Eu viajava muito por causa do trading de metais [em 1981, fundou a Quimibro]. Passava 250 dias por ano a viajar. Quando comecei a frequentar restaurantes lá fora, com grandes chefs, tentei perceber como é que eles faziam. E nessa altura
DURANTE CINCO ANOS, QUANDO COMEÇAVAMA APARECER OS CACHOS, FAZÍAMOS UMA VINDIMA PARA DEITAR TUDO ABAIXO OQUE ESTAMOS A PRODUZIR ÉFRUTA... ÉELA QUE DÁ AS CARACTERÍSTICAS AOVINHO TIVE UMA VIDA DE PERMANENTEEXCITAÇÃO, NA BOLSA E NOS NEGÓCIOS, E COZINHAR FOI UMA FORMA DE RELAXAR
os chefs vinham todos à mesa, não andavam a passear, e, por empatia ou porque achavam graça, convidavam-me a visitar a cozinha e a fazer cursos. A sabedoria tem duas coisas importantes: a experiência e o conhecimento. Tive a felicidade de ter ambas, e uma biblioteca com mais de 16 mil livros de cozinha e de vinhos. Comprou a Quinta do Monte d’Oiro em 1985.
Sim, por causa dos metais. Nos Estados Unidos, num jantar, um grande trader disse-me que só havia uma commodity no mundo, que é a terra, por ser finita. Falei com o meu pai. Passados quinze dias ele disse-me: “Esta é a terra que temos de comprar”. Era a Quinta do Monte d’Oiro. Nessa altura vendemos as acções que tínhamos para comprar a quinta, e ainda bem, porque a seguir o Cavaco Silva fez aquele discurso do gato por lebre [que motivou o crash da Bolsa, em 1987] e olhe, não teríamos nem quinta nem acções. Então fazer vinho não estava nos seus planos?
Claro que, como a quinta tinha vinhas, houve imediatamente curiosidade... Mas o primeiro vinho, o Quinta do Monte d’Oiro Reserva, só aparece em 1997.
Há duas maneiras de se estar no vinho. Uma é produzir o melhor vinho possível retirando o máximo do que se tiver. A outra é dizer “eu quero ganhar dinheiro a produzir vinho em grandes quantidades”. O meu objectivo não era esse, mas as duas maneiras são válidas e honestas. Como descobriu que tinha condições para criar um vinho que a crítica considerou logo o melhor português de casta estrangeira? Surgiu-nos a oportunidade de ter professores de Israel na quinta para estudar o solo e clima. Esse conhecimento permitiu-nos perceber o potencial de cada parcela e vinificar cada casta à parte. Que castas plantaram em função desse estudo?
Arrancámos a vinha toda e plantamos Syrah e Viognier, Tinta Roriz e Touriga Nacional. Durante cinco anos, quando começavam a aparecer os cachos, lá para Maio, fazíamos uma vindima para deitar tudo abaixo, para que a planta trabalhasse para si própria e não para os cachos. Isto não se fazia em Portugal. Passámos a medir e optimizar tudo, desde as castas à vinificação e aos tipos de poda. Foi aí que enveredou pela agricultura biológica?
Sim, porque o que estamos a produzir é fruta... É ela que dá as características ao vinho. A casta Syrah é a sua predilecta?
Gosto muito dos vinhos Syrah, mas se pudesse fazer Pinot Noir como na Borgonha, arrancava a vinha já amanhã. Qual a importância do terroir da quinta?
Há um conjunto de ingredientes, como a composição, inclinação e retenção de humidade do solo que varia nas 12 parcelas de vinha da Quinta do Monte
d’ Oiro. Numas só fazemos vinhos que não chegam ao topo, como o Lybra – podemos ir lá rezar de manhã à noite que não vale a pena. Noutras produzimos os candidatos aos 95, 96 ou 97 pontos e Deus queira que consigamos chegar aos 98. Os pontos do Robert Parker’s Wine Advocate?
Sim, mas não só. É como olhar para uma miúda e dizer que ela é um 82 em 100. Quanto ao Parker, eu conheço-o pessoalmente e ele é uma máquina a provar vinhos. Teve uma importância muito grande porque valorizou uma única coisa: o seu próprio gosto. É tão influente que houve quem começasse a fazer vinhos ao seu gosto para ter mais pontos. O que lhe custa críticas de muitos produtores...
Claro, e o Parker foi comprado pelo Guia Michelin. Oiça, o Guia era visto como um juíz muito correcto e tal, mas isto é um negócio e o negócio é vender guias. Veja-se a Kawasaki no Japão. Quando as motas passaram a usar pneus Michelin, de um dia para o outro apareceram 180 estrelas Michelin no Japão. José Avillez, o primeiro chefportuguês a conseguir duas estrelas Michelin em Portugal, chama-lhe “padrinho”. Porquê? Um dia, há 15 anos, a Maria de Lourdes Modesto ligou-me a perguntar se o podia receber porque estava em Comunicação e Marketing e ia fazer uma tese relacionada com gastronomia. Recebi-o e ele disse-me que gostava de cozinhar desde miúdo –houve logo empatia entre nós. Na altura eu tinha um escritório num pequeno apartamento perto de casa, onde cozinhava para os amigos. Depois comecei a receber pessoas na quinta e isto passou de ser um jantar de amigos para uma coisa que tinha algum sentido e regularidade... E convidou-o para cozinhar consigo.
Para ele era interessante, porque não tinha de cozinhar todos os dias. É que se uma pessoa abre um restaurante imediatamente tem a pressão de ter de pagar ordenados e tudo isso. Ele, pelo menos durante dois anos, teve trabalho à séria sem ter de se preocupar com essas coisas. Dei-lhe total liberdade para fazer o que quisesse, mas ele tinha de pensar no menu, como o executar, e tinha de falar comigo. Eu chamava-lhe à atenção: “Tens de fazer assim e assado e tal”. Depois foi fazer cursos com o Alain Ducasse e estagiou em restaurantes como o El Bulli, de Ferran Adriá. Mas o José Avillez é ele – é mérito dele, que se fez a si próprio. Isto apenas ajudou a uma sistematização da sua vida de cozinheiro. Há algum vinho que o tenha marcado mais?
Há muitos, mas lembro-me de estar em Angola a seguir ao 25 de Abril – tudo aos tiros, recolher obrigatório – e às tantas tínhamos uma última garrafa de vinho. Era do Cartaxo. Bebemo-la quase pingo a pingo, a chorar. Era a última porque era a pior. Ai, mas ela soube-me... não sei se alguma vez voltarei a sentir uma emoção dessas. v