“Já fui assaltado com uma arma na cabeça. Fiquei paralisado”
Saiu do interior do Brasil para estudar Direito em São Paulo, mas tornou-se modelo e galã das novelas da Globo. O cancro levou-o a reaquacionar tudo, inclusive a beleza. No próximo dia 9, estreia Os Guardas do Taj (Mahal, claro) – o templo maior que lhe f
Muitas telenovelas e um cancro depois, ali está ele em modo zen. Mesmo quando à sua volta tudo é caótico, com assaltos à mão armada e uma crise política sem precedentes no Brasil. De ténis, calças cremes, camisa de ganga e pulseiras budistas não ostenta pose de
sex symbol – a sua imagem de marca na Rede Globo. É a nova etapa de Reynaldo, sim, o Gianecchini. Tira as máscaras, descarta “os brinquedinhos” superficiais do ego para mergulhar na espiritualidade. Nunca perde o timbre sereno, nem mesmo quando fala da doença que o fez ver a morte de perto (linfoma não Hodgkin) ou dos mexericos que é alvo (sobretudo pela vida amorosa). Durante duas horas e meia, numa entrevista à SÁBADO, o brasileiro de ascendência italiana da Toscana faz o saldo da jornada. É momento para isso, quase a atingir os 45 anos a 12 de Novembro (no próximo domingo). O balanço de vida e de carreira decorre no palco do Tivoli BBVA, em Lisboa, que pisou 10 anos antes com a comédia Sua Excelência, o Candidato. Tem regresso marcado de 29 de Novembro a 17 de Dezembro com
Os Guardas do Taj, depois de uma digressão pelo Norte do País (ver caixa). Taj Mahal, o maior templo da Índia que dá título à peça, é o ponto de partida da conversa. O actor exalta o seu novo guru.
A peça Os Guardas de Taj decorre no Taj Mahal, na Índia – país que lhe é querido nos últimos tempos. Já visitou o monumento?
Por incrível que pareça não conheço o Taj Mahal. Descobri a Índia há pouco tempo porque a sincronia da vida me fez entrar em contacto com aquela cultura. Comecei a seguir o líder Prem Baba [significa amor divino e paz espiritual], que por acaso é um brasileiro que se tornou guru na Índia. Tinha a intenção de conhecer boa parte da Índia, mas quando cheguei a Rishikesh, que é um lugar onde passam gurus, principalmente Prem Baba, não consegui sair. Foi tão intenso, tão lindo acordar to-
“Descobri a Índia há pouco tempo. Comecei a seguir um líder chamado Prem Baba”
dos os dias e assistir às conversas com os mestres que não consegui sair. Toda a vez que vou para a Índia falo: podia ficar aqui um ano, só contemplando a vida. Coisa que nunca fiz. Trabalhei a vida inteira.
Quantas vezes foi à Índia?
Duas. A primeira foi no fim de 2014, fiquei lá duas semanas. A segunda em 2016, permaneci lá dois meses.
Nessa busca de espiritualidade teve vontade de abandonar tudo e seguir o seu mentor?
Não me vejo a abandonar nada, porque acho que o meu propósito ainda está muito relacionado com a comunicação do meu trabalho e a minha arte. Mas estou muito aberto. Peço todo o dia para o meu ser mais profundo mostrar-me qual é o caminho.
As pulseiras budistas são reflexo desta nova etapa?
Esta é a conexão com o meu guru [a pulseira mais fina], Prem Baba. Mas não sou apegado a nada disso, estou usando agora e daqui a um mês posso deixar. Essa coisa [mostra o colar] tem um cristal. Gosto de tê-las por perto, mas não tenho apego a coisa material. Só que às vezes acho bom lembrar-me que estou conectado com a minha verdade.
Já experimentou o chá místico ayahuasca (mistura de ervas alucinogénicas da Amazónia), que causa alterações de consciência?
Já. Feito por pessoas sérias permite
Fãs No interior do Brasil, as admiradoras do actor podem entrar em histeria. Chegaram a partir vidros da casa de uma tia dele, quando souberam que se encontrava no local. Saiu com a ajuda de um bombeiro
uma abertura de consciência muito grande. Fisicamente, não senti nada. Foi mais como se ampliasse a consciência para ter acesso a coisas poderosas, como se fossem imagens aparecendo. Há gente que tem uma experiência quase de sair do corpo, ou de passar muito mal fisicamente, mas não passei por isso.
Que imagens viu?
Da historinha desde criança, ao sentido da relação com os pais, com o masculino-feminino, coisas profundas. Conselhos divinos, mesmo. Na verdade está tudo conectado com o divino, uma coisa só. Tive algumas experiências, foram muito bonitas.
A propósito da infância, nessa altura via telenovelas?
Via muito. Aliás era o que eu mais via. Depois de trabalhar é que não vejo. [Risos] Adorava o Sítio do Pica-Pau Amarelo, mexia com o meu mundo mais mágico. Tive uma infância muito bonita, naquela época não havia violência. Os meus pais davam-me uma liberdade enorme, de sair para a rua para brincar com os amigos. A minha casa era ponto de encontro da turma toda.
Mas já em criança sonhava sair da sua terra. Porquê?
Desde os 7 anos falava que tinha de sair de Birigui. Era diferente das minhas duas irmãs e da minha família. Achava que tinha de ser um cidadão do mundo. Tinha uma ingenuidade que ficou até aos meus 18 anos. Tinha pouca malícia para lidar com essas coisas da cidade grande.
Quais foram as suas primeiras impressões de São Paulo, quando foi para lá viver aos 18 anos para estudar Direito?
Amei. É uma cidade supercosmopolita. A sensação que eu tenho de São Paulo é que você pode acordar um dia, virar uma esquina e mudar tudo. Tem todo o tipo de gente, do mais maluco ao mais careta.
Que aspirações profissionais tinha na época?
Fui fazer Direito porque queria ser diplomata e viajar pelo mundo. Mas vi que aquele lado racional não era o que estava querendo. Foi quando comecei a trabalhar como modelo.
Seguir o flow, frisa o outrora obstinado pelo trabalho. De modelo passou a actor-sensação da Globo e agora tem um capítulo em aberto. Se lhe apetecer, um dia
deixa tudo. À laia de principiante, entrou numa sociedade auto-sustentável em Maio deste ano. Alto Paraíso, no estado de Goiás, faz justiça ao nome. Para o actor, foi incrível trabalhar na comunidade de Piracanga. Mas não ficou, precisa da civilização. Chegado a Lisboa às 5 da manhã de 30 de Outubro, no mesmo dia da entrevista com a SÁBADO, Gianecchini não acusa cansaço da viagem. Dormiu entretanto e almoçou “maravilhosamente”, quebrando o regime vegetariano que se propõe seguir. Apeteceu-lhe carne, comeu. Sem peso na consciência.
No Brasil despediu-se com um até já, até 2018, porque fica em Portugal durante dois meses. Teve de reorganizar a vida, as duas casas (em São Paulo e no Rio de Janeiro) e a bagagem. Não pretende – por enquanto – virar costas ao país de origem, perante a gravidade da crise política. A situação está caótica, admite. Às 11 da noite não se vê ninguém nas ruas cariocas. O fantasma da violência é permanente. Ainda assim, o actor acredita que há salvação para o país.
Nota diferenças em Lisboa?
Ainda não tive tempo, cheguei hoje. Mas todo o mundo fala que Portugal é o novo centro da Europa. Todo o mundo está vindo para cá, porque o Brasil está muito difícil agora.
Sabe quem é que está cá?
A Giovanna [Antonelli]. De Madonna não sou próximo, ela estava no Brasil quando saí de lá.
Pondera emigrar para Portugal?
Acho tudo possível. Não consigo ter grandes planos a longo prazo. Gosto muito de Portugal, não tenho cá casa mas toda a vez que venho tenho um carinho enorme e sou muito bem tratado. Fico muito triste se abandonar o meu país, tenho vontade de lutar por ele. Quem tem o poder da comunicação tem de ajudar a esclarecer e chamar para uma consciência.
Há assaltos à mão armada constantemente. Já foi vítima?
Sim. Já fui assaltado com uma arma na cabeça. Foi há oito anos, uma experiência horrorosa.
Como reagiu?
A minha reacção foi não ter reacção. Fiquei absolutamente paralisado diante da violência. Não consegui fazer nada, nem um diálogo com a pessoa. Foi no Rio de Janeiro. Simplesmente deixei que levasse tudo, o carro e o que estava lá dentro. A violência é quotidiana. Aprendemos a conviver com isso porque não nos resta mais nada. Não dá para viver em pânico, deixar de sair para a rua.
A bandidagem anda armada com fuzil, não tem carro blindado que proteja. A situação está caótica, mas sou optimista. Acho que para mudar, às vezes tem de dar uma chacoalhada, chegar a um nível e falar “Meu Deus, está insuportável”. A gente está quase a chegar lá.
Aconversa está pesada e não vai aliviar tão depressa, ainda que Gianecchini mantenha o sorriso. Há um departamento que tem menosprezado desde que acabou o casamento de nove anos com a consagrada jornalista Marília Gabriela: o afectivo. O ano 2006 marcou a viragem: de marido caseiro e bem-comportado, passou a divorciado boémio, imparável nos carnavais e nas festas, disputado por multidões femininas e notícia nas revistas do coração.
Veio depois o cancro no sistema linfático, em 2011, que superou – mesmo com a morte do pai, também Reynaldo, também vítima de cancro (mas do pâncreas). E quando nada parecia derrubá-lo, chegou a ressaca. No momento em que fala da dificuldade em se entregar a alguém, a uma hora e sete minutos da entrevista, mostra alguma inquietação: o gravador da SÁBADO cai-lhe do colo, as pilhas espalham-se pelo chão e, por momentos, pensamos ter perdido o registo. Pára tudo. Todos preocupados, inclusive Gianecchini, voltamos à entrevista momentos depois de o gravador acender a luz. Na redacção confirma-se que está tudo OK. Mas o actor mantém o estado de alerta e no dia seguinte pergunta, por interposta pessoa (a assessora Carolina Mayer) se a gravação ficou registada na íntegra.
Como lida com as especulações sobre a sua vida amorosa?
Sim, e Madonna.
“Fico muito triste se abandonar o meu país. Tenho vontade de lutar por ele”
“Falaram que me pegaram beijando numa praia. Estão a querer que assuma um romance que nunca vivi” Há pessoas do seu estatuto que só andam de carro blindado.
Antigamente, incomodava-me muito essa parte da imprensa que é forte no Brasil. Eles inventam histórias, acompanhei várias que nunca vivi. Hoje em dia, nem ligo. Estou num ponto que não me interessa o que as pessoas pensam.
Foi alvo de mais uma notícia, recentemente. Como reagiu?
Falaram que me pegaram beijando na praia. Na verdade estava a cumprimentar um amigo e a foto pegou num ângulo que parecia estar beijando. Sou muito livre, mas não vou assumir uma história que não estou vivendo.
Em 1998, foi difícil avançar para a relação com uma mulher mais velha: a jornalista Marília Gabriela?
Acho-a maravilhosa, uma mulher de muitos talentos. Nunca imaginei que viesse a apaixonar-me e a casar. Ela é 24 anos mais velha, embora para mim nunca fosse problema. Na época tinha 26 anos, morava em Paris e encontrei-a por acaso – que nada é por acaso na vida. Depois de seis meses em conflito interior, porque estava muito feliz com aquela vida de cidadão do mundo, resolvi voltar para o Brasil para me casar com ela.
Quando se estreou no Tivoli com uma comédia, em 2007, estava divorciado. Como foi essa fase?
Tive uma adolescência tranquila, casei muito novo e fui ter uma pós-adolescência louca. Faltava uma experiência na minha adolescência de soltar um pouco mais. No sentido de testar coisas. Foi uma fase boémia.
Passaram 10 anos desde o divórcio. Sente a solidão?
Faz tempo que estou sozinho, sem uma relação séria. É fácil gerir o casual, difícil é lidar com alguém com quem se tem conexão. Embora esteja tudo certo em ficar sozinho. Foi uma coisa muito legal de ver na minha doença. Quando se está perto da morte entende-se a solidão. Por mais que você esteja rodeado de gente que te ama é só você que tem de passar por aquilo. Mas estar sozinho não significa estar desconectado. Somos uma união de tudo.
Depois de superar o cancro mergulhou num vazio afectivo?
Dois anos depois deu-me um vazio muito forte – e isso sim derrubou-me. A minha cabeça não ficou boa, tinha coisas para olhar, que mexeram no meu calabouço. Isso foi doloroso. Não estava dando vazão para esse afecto. Vai passar uma vida e vou ter esse coração fechado?
Então refugia-se no trabalho?
Ainda estou em busca das coisas que fazem parte da minha verdade, que têm a ver com o novo jeito de pensar. Isso reflectiu-se no meu trabalho. Entrei numa outra fase: não quero provar nada a ninguém, nem a mim. E também não quero trabalhar de domingo a domingo. Existem outras partes da vida que quero dar atenção: o afecto com a família, com os amigos, ouvir melhor as pessoas.
Parece que foi ontem que o caipira do Biringui, a 500 quilómetros de São Paulo, chegou à metrópole e se lançou na carreira de modelo. Fez editoriais com Gisele Bündchen, deu a volta ao mundo e aprendeu a lidar com as câmaras. Foi o passaporte para a representação. Estreou-se na televisão em
Laços de Família (2000), como o arrebatador médico Edu. Nunca mais parou, até o cancro lhe trocar as voltas e levá-lo a contar tudo na biografia Giane: Vida, Arte e Luta escrita pelo jornalista Guilherme Fiuza (editada em Portugal pela Marcador em 2013). As receitas do livro reverteram para uma instituição de apoio a jovens em Biringui, com cursos profissionais. Homenagem ao pai, professor de Química.
Tinha noção da gravidade do seu cancro (linfoma não Hodgkin)?
Sabia e tomei as decisões junto da família. Estive muito perto da morte, tinha só 30% de chances de sobreviver. Tirando a primeira notícia que me abalou, em seguida deu-me uma força muito grande. Estava sem medo. Todos os brinquedinhos do meu ego foram jogados de lado. Não podia trabalhar, não podia ter relação sexual, não podia malhar na academia. Só restava eu mesmo, pleno e aceitando a situação. Estava em paz no processo. Foi uma fase muito bonita da minha vida. Acho que nunca estive tão em paz na minha vida. Nunca mesmo.
Para agravar a situação, o seu pai tinha cancro (no pâncreas). Como se despediu dele?
Estava a fazer o tratamento em São Paulo, o meu pai no interior. Senti que ele estava a ir embora, pedi à médica para me liberar no tratamento para visitar o meu pai. Cheguei lá e ele estava muito mal. Deu o último suspiro e morreu nos meus braços. Na despedida comecei a cantar, entendi que tinha de ir embora e conversei muito com ele. Sabia que ele estava escutando. Para mim desmistificou a morte.
Acredita na vida além da morte?
Muito. O meu pai vivia distante de mim, fisicamente. Hoje em dia sei que está aqui. Estou sentindo ele agora. Comecei a entender muito de mim ligando-me aos meus ancestrais. O quanto o meu avô me influenciou de uma certa forma, através do meu pai. A morte dele parece que clareou tudo.
“Dois anos depois [do cancro]deu-me um vazio muito forte – e isso sim derrubou-me. A minha cabeça não ficou boa”