SÁBADO

Como o herdeiro do trono está a mudar tudo

Mulheres ao volante, concertos e primos presos: MBS é o nome de uma revolução improvável.

- Por Maria Henrique Espada

Um príncipe que domina o acesso ao rei é pelo menos tão rei quanto este. Mohammed bin Salman, ou MBS como é conhecido, só é o príncipe herdeiro da Arábia Saudita desde Junho, mas desde que o seu pai é Rei que nada faz contra ou sem ele. Nem atender o telefone. Quando Juan Carlos ligou para o telemóvel do Rei Salman, ouviu o filho: “Ah! Juan Carlos de Espanha! O Rei está ocupado.”

No dia 4, por ordem de Bin Salman, o aeroporto privado da capital fechou e uma série de carros de polícia rodearam, ao longo de horas, o opulento Ritz-Carlton de Riade, que ostentava o sinal “completo”: num só fim-de-semana, foram presos, e ali “hospedados”, 11 príncipes (seus primos), quatro ministros, e boa parte da elite empresaria­l da Arábia Saudita, incluindo três dos 10 homens mais ricos do mundo árabe e o mais rico do país, Alwaleed bin Talal. No total, houve mais de 200 presos. A mensagem pareceu clara: ninguém está acima da lei. Ou de Mohammed bin Salman? A corrupção, banal entre a elite saudita, foi uma desculpa convenient­e. Depois da purga política – algo nunca visto desde a fundação do reino –, MBS deixou de ter competidor­es pelo trono em lugares de relevo. E o futuro ficou mais claro. A forma tradiciona­l de escolher o rei saudita, por acordo entre os vários ramos da família, acabou. O tempo dos consensos entre clãs para tomar qualquer decisão importante (dar poder a um implicava sempre pagar para compensar os outros) também. MBS é neste momento vice-primeiro-ministro, ministro da Defesa, conselheir­o especial do Rei, presidente do conselho de Assuntos Económicos (que na prática domina o Minis-

JUAN CARLOS DE ESPANHA LIGOU AO REI SALMAN EFOIO FILHO QUE ATENDEU: “O REI ESTÁ OCUPADO”

tério da Economia) e, claro, da comissão anticorrup­ção que ordenou as detenções. Quando o Rei Salman, de 81 anos, morrer ou abdicar – a sua saúde frágil indica que o poderá fazer em breve –, MBS mandará na verdade apenas um pouco mais do que hoje. Tem 32 anos, feitos em Agosto – reinará por muito tempo. Para quê? Segundo o próprio, para criar uma nova Arábia Saudita. Com a mesma lata (muitos chamam-lhe arrogância) de quem dispensa Juan Carlos e prende primos, MBS disse o impensável 10 dias antes, a 24 de Outubro, na conferênci­a “Investi- mento futuro”, em resposta a uma anfitriã vestida à ocidental e de cabelo descoberto: “Nós não éramos assim no passado. Apenas desejamos regressar ao que éramos: um islão moderado e aberto ao mundo, aberto a todas as religiões. 70% do povo saudita tem menos de 30 anos. E, francament­e, não vamos desperdiça­r outros 30 anos das nossas vidas a combater ideias extremista­s. Vamos destrui-las agora.” A sala, com centenas de pessoas, aplaudiu. Detalhe irónico: foi no Ritz-Carlton. A mudança, a nível de costumes, começou este ano: a celebração da festa nacional da Arábia Saudita foi pela primeira vez aberta a mulheres; vão ser autorizada­s a conduzir (a partir de 2018) e a assistir a eventos desportivo­s; o regime de “guardiões” homens foi aliviado, permitindo o acesso à saúde e à educação sem a autorizaçã­o de um familiar do sexo masculino; houve concertos e está prevista a abertura de cinemas; algumas dezenas de religiosos foram detidos. Mais importante, a polícia religiosa já não pode multar ou prender mulheres. Há uma semana, foi integrada no Ministério do Interior: acabou-se a autonomia, manda o príncipe.

A mudança começa a ser sentida no dia-a-dia. Zeina Farhan contou ao The Guardian como foi “apanhada” pela polícia de lenço pelos ombros: “Por favor, minha senhora, pelo menos cubra o cabelo durante o período de oração.” E mais nada. “Foi espantoso”, descreveu. Mohammed também quer mudar a economia: está à frente do programa Visão 2030, que pretende torná-la menos dependente do petróleo. Contratou uma série de consultore­s internacio­nais, do Boston Consulting Group, da McKinsey ou da Deloitte (que instala, claro, no Ritz), para ajudar a desenhar as medidas. Diz que está a fazer a sua “revolução thatcheria­na”. Pretende construir uma nova megalópoli­s nas margens do mar Vermelho que considera “um salto civilizaci­onal para a humanidade”, ou pelo menos para a Arábia Saudita, com campos de golfe, resorts, hotéis e parques temáticos, homens e mulheres em convívio – e a custar 426 mil milhões de euros. Não consta que haja oposição ao projecto. Está a caminho de se tornar um autocrata – nenhum soberano saudita concentrou em si tanto poder –, mas moderno.

O que puxará o gatilho

MBS é um herdeiro improvável, não é sequer o mais velho, e cresceu numa família brilhante: entre os seus irmãos, Sultan foi o primeiro astronauta árabe, Abdulaziz é ministro da Energia, e Faisal é doutorado em Ciência Política e governador de Medina. Mohammed foi aliás o único a não estudar no estrangeir­o, tirou Direito – foi o segundo melhor da turma, pelo menos – e nem fala bem inglês. Mas tinha outras vantagens: acompanha o pai em tudo desde os 12 anos, tornando-se o seu preferido, e ninguém discordará de que é ambicioso. Trabalha 16 horas por dia, e um colunista do The New York Times, Elliot Abrams, perguntou recentemen­te a um amigo saudita porque é que o Rei escolhera MBS. A resposta foi esta: “O Rei acha que ele é o mais duro. Puxará o gatilho quando for preciso.”

Os mais próximos garantem que não fuma nem bebe. Outras fontes indicam que nas suas festas privadas nas Maldivas (a poucas horas de avião de Riade) “vive à ocidental”. Tem caprichos de saudita rico: em 2016 apaixonou-se por um iate, no Sul de França. Comprou-o na hora, por 500 milhões de euros.

AS MULHERES VÃO CONDUZIR E PODER IR A EVENTOS DESPORTIVO­S. E A POLÍCIA RELIGIOSA JÁ NÃO PODE PRENDÊ-LAS

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Mohammed bin Salman no palácio real de Riade, onde vive

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