Carrilho faz prevenção da violência doméstica
O ex-ministro terá de fazer uma formação de prevenção de violência doméstica. Há psicólogos, canções e vídeos.
Ele tinha mais do dobro do tamanho dela e um cadastro que, além da violência doméstica, incluía tentativas de homicídio e agressões graves. Quando entrou na sala baixou-se de forma brusca e encostou-lhe a cabeça à testa, como que a ameaçá-la. Celina Manita estremeceu. “Eu sabia que ele não ia fazer nada, mas é impossível não ter medo. Era tão forte que se me desse uma cabeçada ficava ali partida a meio”, conta à SÁBADO a professora da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, que acompanha agressores de violência doméstica. Foi a situação mais intimidadora que já presenciou. Mesmo assim, não deu parte de fraca. “A minha reacção imediata foi dizer: ‘Não vale a pena esse tipo de gestos porque comigo isso não funciona’”, recorda. Foi a situação mais intimidadora que já presenciou.
Habituada a lidar com estas situações (onde não pode mostrar o que está a sentir), já identifica com facilidade
A PSICÓLOGA JÁ RECEBEU AMEAÇAS VERBAIS: “SE PUDESSE, LEVANTAVA-ME E PARTIA-TE A CARA”
os sinais de irritação dos seus “pacientes”. Como as mãos cerradas e as sobrancelhas levantadas. Até já recebeu ameaças verbais: “Se pudesse, levantava-me daqui e partia-te a cara.” Mas geralmente não passa daí. “É muito raro haver algum tipo de confronto físico com os agressores que acompanhamos, eles sabem que, se o fizerem, será comunicado ao técnico que faz o acompanhamento judicial e isso tem consequências”, explica.
Sessões com um psicólogo
Celina Manita coordena o Gabinete de Estudos e Atendimento a Agressores e Vítimas da Universidade do Porto, um programa para agressores de violência doméstica (e também para vítimas). Casos como o de Manuel Maria Carrilho – antigo ministro da Cultura que foi recentemente condenado a quatro anos e meio de prisão, com pena suspensa, por agressão, injúrias e violência doméstica, entre outros crimes, contra a ex-mulher Bárbara Guimarães. Para o tribunal não existiram dúvidas: “Fica provada a ofensa à integridade física e psicológica [...] Agiu com dolo e não mostra arrependimento. Não me parece que tenha futuro nesse caminho”, consta do acórdão. A sentença ditou ainda que o professor catedrático terá de frequentar um destes cursos, o que geralmente
acontece quando há uma suspensão da pena, explica a psicóloga da Universidade do Porto. Em Portugal, este tipo de intervenção começou a ser feita nas universidades (os dois primeiros serviços foram o do Porto e o do Minho, criados em 2002) e desde 2012 existe também um programa do Estado, tutelado pela DirecçãoGeral de Reinserção e Serviços Prisionais. Contudo, o Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD) – ao contrário dos que existem nas universidades – só trabalha com homens, heterossexuais, aos quais tenha sido aplicada uma medida judicial de pelo menos 18 meses. Também não podem ser reincidentes, nem podem ter problemas graves de alcoolismo ou psicopatologia.
Mas, em que consiste a reabilitação? No Porto, há uma equipa de quatro psicólogas, apenas mulheres, que se dedicam ao acompanhamento dos agressores. A intervenção consiste em 25 sessões, de uma hora, em ambiente de consultório. Primeiro, são semanais, depois tornam-se quinzenais e, na fase final, podem ser apenas uma vez por mês. Funciona quase como ir ao psicólogo, mas estes pacientes são na sua maioria involuntários.
Trabalhar com role-play
O programa tem três fases, sendo a primeira a mais difícil: o trabalho de responsabilização. “É levar estes indivíduos a tomarem consciência do que fizeram e que o fizeram porque quiseram, sem desculpas. Assumir responsabilidades”, explica Celina Manita. Só depois se começa a tentar alterar comportamentos. “É preciso perceber porque é que a pessoa acredita, por
A PRIMEIRA DAS TRÊS FASES DO PROGRAMA – A DE RESPONSABILIZAÇÃO – ÉA MAIS DIFÍCIL
exemplo, que os homens são superiores às mulheres. Isso tem a ver, muitas vezes, com aprendizagens que foram feitas na família, padrões culturais transmitidos”, diz a especialista.
Mas como é que se conquistam estas pessoas? Vale tudo: de letras de canções a provérbios populares, vídeos, etc. “Tive o caso de um homem com um historial de violência grande e uma série de condenações. Tudo apontava para que não fosse fácil. Ele trabalhava na construção civil, mas era muito inteligente. A maneira que arranjei de começar a falar com ele foi através das máquinas: ele começou a perceber que funcionava como as máquinas que usava no trabalho. Dizia: ‘Se encher uma betoneira com cimento até à ponta, ela fica com demasiada pressão e depois pode rebentar’”, recorda a terapeuta. Outra estratégia utilizada é o
role-play. Pôr as pessoas a representar situações. “Trocamos os papéis e dizemos: ‘Agora, ponha-se no papel da sua mulher.’ E repetimos o que ele costuma dizer para perceber como é dialogar com ele próprio”, diz.
A terceira e última fase é a preparação para o fim do acompanhamento, com as chamadas estratégias de prevenção de recaída, que podem ir de exercícios de relaxamento e de controlo da respiração ao time out (intervalo) – em que o agressor se afasta durante um tempo, mas informa o(a) parceiro(a), e depois pede autorização para voltar para casa.
No Programa para Agressores de Violência Doméstica do Governo, há, além de uma componente de terapia individual, também uma fase de intervenção em grupo com 20 sessões, que são normalmente dadas por um casal de terapeutas. “Uma vantagem é a partilha de experiências, conseguir que as pessoas falem, que contem histórias e a partir dessas histórias identificar os padrões que têm de ser modificados. As pessoas também não se sentem tão constrangidas”, diz Celina Manita.
Armas em sinal de boa-fé
A necessidade de, além de dar apoio às vítimas, promover a reabilitação dos agressores de violência doméstica começou a ganhar visibilidade a partir 2009, quando se passou a incentivar a aplicação de penas acessórias – como a frequência pelos agressores destes programas específicos. E a taxa de sucesso vai dos 40% aos 80% de eficácia, aponta a terapeuta. Há uma razão: “Na maioria dos casos, isto tem a ver com questões culturais, padrões de pensamento que se desenvolvem. Não tem a ver com um perfil específico de personalidade, muito menos com nenhum tipo de patologia, daí que nalguns casos seja relativamente fácil promover mudanças”, explica. Celina Manita tem várias histórias que o comprovam, algumas até caricatas. Como aquele dia em que um destes pacientes chegou à consulta, já no final do programa, com uma série de explosivos e material bélico. Há dois anos que prometia matar a mulher e a sogra quando deixasse de ser acompanhado. “Sei onde elas estão e tenho os meios para as matar”, dizia por várias vezes nas sessões. “Mas acabou por alterar a forma de pensar, por se organizar, e a forma que teve de me transmitir que estava de boa-fé foi entregar-me aquele material”, recorda, bem-disposta.
A REABILITAÇÃO É POSSÍVEL: JÁ HOUVE QUEM ENTREGASSE O ARSENAL BÉLICO COM QUE IA MATAR A MULHER E A SOGRA