SÁBADO

Tempestade­s nos desertos

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Há um novo enredo, que nos afectará a todos. O teatro é o que antes se chamou Próximo Oriente, e agora Médio Oriente. Que vai, no sentido geopolític­o, do Norte de África às fronteiras da Índia e da China.

Nos recentes documentos desclassif­icados sobre a Al-Qaeda, descobre-se a areia movediça.

O material, que inclui o diário de Bin Laden, indicia a grande expansão e indesmentí­vel eficácia armada e social da rede terrorista, a sua desestabil­ização histórica do sistema internacio­nal de estados da região, o facto de Osama ter sido, até ao fim, o seu gestor informado, capaz, dilecto e directo, e a realidade de uma relação ambígua com Teerão. Ameaçado de extinção pelo “pequeno jihadismo”, considerad­o infiel ou apóstata pelo mesmo, ainda assim o regime iraniano proporcion­ou-lhe vias de contacto, apoio e comunicaçã­o, para combater o que entendia como “expansão” israelo-americana. Este Irão e a Arábia Saudita voltam a ser as potências determinan­tes para o futuro.

Na política interna de cada uma, os seus novos líderes tentam modernizar e “pragmatiza­r” as teocracias, exterminar a corrupção e criar novas liberdades. Na política externa, Teerão e Riade vivem uma guerra fria, com crescentes pontos quentes no Iémen, no Líbano, na Síria e no Iraque. Há ainda que contar com a Turquia, declarada morta e enterrada depois do golpe de Estado de Julho de 2016. A verdade é que, depois de extirpar grande parte da sua cadeia de comando, Ancarareco­nciliou-se com Moscovo, Teerão, D oh a e Bagdade, e criou

cinturas de segurança no país antes conhecido como Síria. Uma, de administra­ção militar directa, vai da linha Kilis-Jarabulus até Al Bab (Norte de Aleppo),a outra, de influência indirecta e ainda sob disputa, é uma larga área de 120 quilómetro­s de profundida­de por 144 de largura, em torno deIdlib. E há o Curdistão, mistura de utopia, esperança e experiênci­a activa, do Noroeste da Síria ao Nordeste do Iraque. No território antes controlado por Assad, a força curda chama-se esA sencialmen­te SDF (FDS). É um exército de mais de 50 mil homens, apoiado, treinado, equipado e conduzido pelos EUA. Não só libertou Raqqa, a capital do Daesh, como tomou os maiores poços de petróleo local, a leste do Eufrates e a sul de As Suwar. O SDF ocupa hoje cerca de 30% do ex-território sírio.

No Iraque, o sonho de um Curdistão totalmente independen­te, com ouro negro soberano, e capital em Erbil, desaparece­u, ou vive suspenso. Na verdade, com a abstenção americana, o regime iraquiano e o seu aliado de Teerão fizeram os curdos regressar às fronteiras de 2003, embora sem violências maiores.

À distância, Israel apoia o sonho curdo sírio-iraquiano, como uma espécie de barreira à progressão de um “islamismo” agressivo e dogmático, e como antídoto à criação de bases iranianas em Damasco. Apesar de sunita, a maioria dos curdos opõe-se à confusão constante entre religião e política, na direcção do Estado. Com a morte previsível do Califado imediato do Daesh, as suas metástases, e a Al-Qaeda renovada, expandir-se-ão para o Egipto e para a Somália, não desistirão da Líbia, das zonas tribais do Paquistão e do Afeganistã­o, e continuarã­o a ameaçar os estados saharianos e do Sahel. Nesta fase do jogo, potências tradiciona­is como a Turquia, o Iraque, o Irão, Israel e a Arábia Saudita continuarã­o a enfrentar-se através de peões, a rubricar pactos de circunstân­cia e oportunida­de, a refazer alianças e “esferas de influência”. Os pequenos, médios e decadentes actores independen­tes, do Qatar ao Egipto, dos emirados e do Kuwait à Jordânia, terão de escolher. Apesar de o seu poder ter limites, a Rússia, que precisa da Turquia para entrar no mar Negro, olha interessad­a. Os EUA, embora mais activos do que se julga, precisam ainda de encontrar um fio de prumo, uma sistematiz­ação e, sobretudo, um plano para o futuro muito próximo. Quanto à União Europeia, tem outros problemas urgentes em que pensar.W

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