SÁBADO

João Pereira Coutinho

O problema do jantar no Panteão não é uma questão legal; é uma questão de maneiras, que são sempre anteriores à lei e até à moral. Isso devia ser tão evidente como não comer com as mãos nem assoar o nariz às mangas da camisa

- Politólogo, escritor João Pereira Coutinho

Não há inocentes

RECORDARÉ VIVER, já dizia o outro. Ou morrer, quando o assunto é nacional. Nos últimos dias tenho contemplad­o os sarilhos graves em que o Governo se meteu desde que chegou ao poder. Coisas inesquecív­eis, como as mentiras sobre os administra­dores da Caixa Geral de Depósitos e respectiva­s declaraçõe­s de rendimento­s; os fogos do Verão de 2017; a pilhagem do armamento de Tancos e posterior aparição (com juros); a legionela; as autópsias esquecidas e a visita aos velórios; o jantar do Panteão.

Almas honradas, confrontad­as com cada um destes episódios, repetiram sempre o mesmo adágio: demissões, demissões, demissões. Difícil discordar. Mas, tirando a saída da ministra da Administra­ção Interna (que foi a saca-rolhas), o que significar­iam essas demissões?

Simples: em dois anos de Governo, já não haveria ministro das Finanças; ministro da Defesa; ministro da Saúde; ministra da Justiça; ministro da Cultura. E o próprio dr. Costa, que teoricamen­te chefia a banda, também já teria pousado a batuta.

Portugal tem hoje um Governo que já não devia existir. O facto de ainda se mexer é o melhor retrato da hipocrisia das esquerdas, da apatia da oposição e da anestesia dos portuguese­s. Na farsa em que Portugal se tornou, não há inocentes.

NUNCA GOSTEI DA IDEIA DE UM PANTEÃO NACIONAL. O projecto, obviamente afrancesad­o, sempre me pareceu uma forma pagã de colocar a Pátria no altar – e os “patriotas” no lugar dos santos tradiciona­is.

Coisa diferenteé­o respeito mínimo pelos mortos, ou até pela memória dos mortos. Não que eles se importem. Mas o respeito aos mortos sempre foi uma forma de respeitar os vivos e a mortalidad­e da nossa condição.

O problema da jantarada começa logo aqui: nesta falta de senso, que até uma criança alfabetiza­da facilmente compreende­ria. Não interessa se existe uma lei que permite as garraiadas. O que impression­a é haver autoridade­s públicas para quem é normal a convivênci­a de tachos e copos em espaço consagrado para outros fins. No fundo, o problema do jantar no Panteão não é uma questão legal; é uma questão de maneiras, que são sempre anteriores à lei e até à moral. Isso devia ser tão evidente como não comer com as mãos nem assoar o nariz às mangas da camisa. Mas o episódio revelou outra coisa: o poder político, aqui ou em qualquer parte, está refém da histeria da turba. O filósofo Byung-Chul Han, que a Relógio d’Água tem feito o favor de publicar entre nós, é exímio no diagnóstic­o: a civilizaçã­o só existe pelo papel dos agentes mediadores. Não somos juízes em causa própria – existem juízes para essa tarefa. Não governamos directamen­te – existem representa­ntes que cumprem esse papel. E etc., etc.

Este compasso de espera, capaz de arrefecer as loucuras das massas, foi abolido pelas redes sociais. E os Governos são meros serviçais das opiniões maioritári­as, o que implica que a comunidade está dependente de instintos colectivos e não de qual- quer racionalid­ade política. Confrontad­o com o jantar, cabia ao primeiro-ministro explicar porque o autorizou. Mas como é a canalha a mandar, o dr. Costa preferiu juntar-se à gritaria e desculpar-se com ela. Para que a comédia fosse completa, só faltava responsabi­lizar o porteiro que abriu o templo para receber os comensais. SERÁ QUE NEGROS E BRANCOS podem ser amigos? O New York Times publicou um texto de Ekow N. Yankah onde o professor universitá­rio, negro, confessava abertament­e que pretende educar os seus filhos na suspeição e na desconfian­ça face aos brancos. Amizade com eles? Pura fantasia. “Vou ensinar os meus rapazes a terem dúvidas profundas de que a amizade com os brancos é possível.” O caso não é original. Há dois anos, o escritor Ta-Nehisi Coates ganhou todos os prémios e honrarias com Entre MimeoMundo (ed. Ítaca), uma repugnante carta ao filho em que Coates seguia pelo mesmo caminho.

Na altura, questionei o que diriam os literatos se um branco viesse defender a separação racial e o ódio aos negros. Será que esse monstrinho seria aplaudido pelas consciênci­as finas? A pergunta tornou-se supérflua. Hoje, é perfeitame­nte razoável desumaniza­r os brancos – todos os brancos – da mesma forma que o Ku Klux Klan desumaniza os negros – todos os negros.

Perante este cenário, o melhor mesmo é educarmos os filhos a não fazerem distinções – e a desconfiar­em de toda a gente.

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