SÁBADO

A tormenta até ao Natal

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Aprimeirav­ezqueviome­ubebé ele estava

num supermerca­do. Não tinha roupa, mas tinha um penico e uma frase que eu sabia ler: “Se me apertares a mão, faço chichi.” Era emoção pura, vê-lo ali e imaginá-lo já a viver lá em casa, todo vestido e cheio de urgências fisiológic­as. Só que não: “Vamos levá-lo para a Mariana, filha do colega da mãe, tu sabes quem é, é tua amiga.” Amigas, eu e a Mariana? Consternaç­ão pura: a tal Mariana ia roubar-me o bebé. Com 6 anos, eu descobria que o Natal era uma mentira. Coisas horríveis aconteciam no Natal. Ali, eu tinha de engolir as lágrimas, levantar a cabeça e evitar fazer caretas se me perguntass­em se não era bom fazer alguém feliz. Não podendo pôr uma cruz no espírito natalício, apontei o bebé que devia ser comprado.

Até hoje os meus pais não saberão mas no meio da dor e do corredor percebi os cochichos e os sorrisos. Sem que dessem conta, iniciei uma grande investigaç­ão. Na viagem para casa, contrariei o sono. Quando chegámos, segui-os. Vi-os esconderem o meu bebé num armário. Do coração, da porta, disse-lhe: “Se daqui a uma semana ainda aí estiveres, a Mariana já foi.” Passou uma semana, duas. Uma tarde, não resisti. Tirei-o da caixa. Teríamos de ser fortes mas no dia 25 estaríamos juntos. Chegado o dia, ele esperava debaixo da árvore de Natal. Esta semana, entrei num supermerca­do para comprar filtros de café. Sem querer, meti-me no corredor dos brinquedos. Recordava esta história quando apanhei um susto. Na última prateleira, rente ao chão, três bebés tinham começado a gatinhar e emitir um som tão mecânico que desejei que só fizessem chichi. Não evitei pensar: Mariana, vai buscar.

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