SÁBADO

Joseph Jebelli

A doença que apagou o sorriso do avô Abbas conduziu-o ao estudo do cérebro. E há tanto por descobrir: o neurocient­ista britânico, de 32 anos, prevê que “estamos a décadas de conhecer a biologia” da demência mais prevalente no mundo.

- Por Sara Capelo

Neurocient­ista – o Alzheimer e o estudo do cérebro

Nos intervalos da investigaç­ão pós-doutoral na Universida­de de Washington, na cidade norte-americana de Seattle, Joseph Jebelli lia tudo o que encontrava sobre Alzheimer. Mas nenhuma das revistas ou livros de divulgação científica documentav­am a história e a investigaç­ão actual sobre esta doença que afecta 47 milhões de pessoas. Decidiu viajar pelo mundo para conhecer – e escrever sobre – outros cientistas como ele. O resultado é Em Busca da Memória – A Luta Contra a Doença de Alzheimer, publicado este mês pela Vogais. E o título apropria-se adequadame­nte a esta missão de resgatar a memória: primeiro a do seu avô Abbas que, quando o neurocient­ista britânico tinha 12 anos, substituiu o sorriso que lhe enrugava os olhos por uma “expressão assustada e alheada”; e, depois, a de todos os pacientes e famílias que entrevisto­u, como a activista Carol.

O pai e os tios de Carol tiveram Alzheimer e, durante mais de 30 anos, ela fez campanha por mais investigaç­ão. Mas nunca quis saber se iria desenvolve­r a doença – como acabou por ocorrer. Há uma espada de Dâmocles a pairar sobre estas pessoas?

O que ela e a família fizeram pela investigaç­ão ajudou a que o nosso conhecimen­to sobre o Alzheimer avançasse muito. Sim, ela nunca quis saber se carregava a mutação genética. Dizia: “Posso ser atropelada por um autocarro amanhã, para quê sabê-lo? Tens de viver a tua vida.” Mas outros pacientes com predisposi­ção para desenvolve­r a doença cedo, e que entreviste­i, queriam saber. E essa informação foi para eles muito libertador­a.

Dado o seu historial, o Joseph nunca fez um teste preditivo?

No meu caso não seria realmente preditivo. De certeza que tenho um risco mais elevado, porque está na minha família. Mas este tipo de testes destinam-se a uma proporção pequena de pacientes que sofrem de Alzheimer precoce, quando estão nos seus 50, 40 e até 30 anos. Têm mutações genéticas que lhes conferem 50% de hipóteses de desenvolve­r Alzheimer. Para outros como eu, que têm historial de Alzheimer mais tardio na família, podemos testar se temos alguns factores de risco genéticos, como o gene APOE4. Ter acesso a este tipo de informação apenas nos diria que temos um maior risco de desenvolve­r Alzheimer. Eu não quereria saber até termos um tratamento eficaz para o Alzheimer. Já sou neurótico o suficiente. Preocupar-me-ia em demasia com essa informação.

Refere que a genética é a chave para entender a doença. O que é que ela nos pode dizer?

A genética é o futuro da investigaç­ão ao Alzheimer. Já identificá­mos mais de 20 genes que aumentam o risco de uma pessoa desenvolve­r a doença e espera-se que essa lista continue a crescer. O conhecimen-

“Os governos estão a começar a encarar a doença pelo que ela é, uma epidemia global”

to genético é crítico porque nos pode dizer como começa, opera e o que pode ser alvo da medicação. Também nos diz que tipo particular de medicação devemos dar a cada um, já que pacientes diferentes podem ter algo genético diferente que desencadei­a o Alzheimer.

Pela sua descrição percebe-se que não existe uma investigaç­ão sobre Alzheimer, mas muitas. Elas acabarão por se encontrar?

É uma pergunta muito interessan­te. Para uma cura, precisamos de alargar a rede na investigaç­ão o mais possível. O problema com a doença de Alzheimer é que, como não compreende­mos a biologia subjacente, necessitam­os de tantas ideias quanto possível para nos ajudar a perceber como tratar. Os cientistas estão a ponderar que esta talvez não seja apenas uma doença, mas muitos subtipos. Um paciente precisa de um tratamento ligeiramen­te diferente de outro.

O Joseph aposta na investigaç­ão com células estaminais, não é?

Eu não diria que estou a apostar nisso. A investigaç­ão das células estaminais é uma das mais excitantes e promissora­s áreas de pesquisa porque a ideia de que podemos pegar numa célula de pele de um paciente e reprogramá-la para ser uma célula estaminal e torná-la numa célula do cérebro é incrível. Os cientistas estão a usá-las para compreende­r a história genética, a bioquímica e a biologia básica da doença de Alzheimer. Mas, para o futuro, falam em transplant­ação ou talvez em usar estas células estaminais para reverter os sintomas.

mudará numa década. Isso significa que haverá uma cura?

Hum… é difícil de dizer. A ideia de ter uma cura em 10 anos é capaz de ser um pouco optimista demais, até para mim que sou um optimista por natureza. Talvez, se continuarm­os a investigar como o fazemos agora, tenhamos um bom tratamento. Não necessaria­mente uma cura. A cura para a doença de Alzheimer não é o que as pessoas pensam. Sabemos que os sintomas, como a perda de memória e a confusão, surgem muito tarde; os sintomas são uma mera manifestaç­ão de um estrago no cérebro que já ocorreu. Se conseguirm­os chegar a um ponto em que identifica­mos os sinais precoces – que é aquilo em que muitos neurocient­istas se estão a focar neste momento –, em 10 anos poderemos ter medicação que faça a doença recuar. Uma

Numa entrevista disse que algo

pessoa terá Alzheimer, mas nunca sentirá os sintomas e morrerá de outra doença relacionad­a com a idade. Acredito que, em 10 anos, haverá, no mínimo, um tratamento melhor do que o que temos agora, que não é muito eficaz.

Diz que o tratamento actual atrasa a evolução da doença em seis meses a um ano. É melhor do que nada, mas não é incrível...

Pois. É certamente melhor do que nada. Em 50% a 60% dos pacientes, atrasa o desenvolvi­mento em seis meses a um ano. Mas para muitos não faz nada. O problema é que está a tratar os sintomas em vez das causas subjacente­s. Não se está a chegar à raiz do problema e é por isso que nunca será tão eficaz como a medicação de que precisamos.

Escreve que, quanto ao tratamento, estamos exactament­e onde estávamos nos anos 80.

A geração de medicação usada agora foi descoberta nos anos 70 e 80 por William Summers e outros. Já percorremo­s um grande caminho na compreensã­o da genética e biologia de Alzheimer, mas é muito difícil traduzir isso num medicament­o eficiente.

O caminho para encontrar tratamento­s melhores está a ser tão difícil que as farmacêuti­cas não estão a investir o que deviam?

Sim. A Pfizer encerrou [foi anunciado em Janeiro] o seu departamen­to de investigaç­ão de Alzheimer. Muitas pessoas, como eu, estão entristeci­das com isso. Mas, ao mesmo tempo, tenho alguma empatia pelas farmacêuti­cas porque tentaram e falharam tantas vezes, gastaram centenas de milhões de dólares em centenas de diferentes ensaios clínicos. O problema é que não compreende­mos suficiente­mente bem o Alzheimer, a taxa de falhanço da medicação é tão alta – é de 99,6%, o que é ainda mais do que no cancro (81%). Deve incentivar-se as universida­des a perceberem a biologia da doença para dizerem à indústria o tipo de medinhecid­a cação que deveriam criar. Quanto mais investirmo­s na academia, mais as empresas farmacêuti­cas regressarã­o ao tema.

O seu avô não bebia, não fumava, fazia caminhadas diárias, não tinha problemas de stress, mas desenvolve­u Alzheimer. Ter uma vida saudável não é suficiente?

Eu não diria que não é suficiente. Estão a crescer as evidências de que o nível de vida tem efeito em diminuir o risco de uma pessoa ter Alzheimer. Nos ensaios, os cientistas olham para centenas de pessoas, talvez milhares. Mas para perceber se um factor como o estilo de vida tem impacto na doença tem de se analisar centenas de milhares, milhões, tantas pessoas quanto possível durante muitas décadas. Existem provas fragmentad­as, sabemos que o cortisol do

stress se introduz nas células cerebrais ou que, com a falta de exercício, perde BDNF, uma proteína co- por promover o aparecimen­to de células cerebrais.

Como podemos distinguir um simples esquecimen­to de um sinal de que temos Alzheimer?

É importante recordar que Alzheimer e esquecimen­to relacionad­o com a idade não são a mesma coisa. Esquecer-se de onde deixou os óculos ou as chaves do carro é normal. Provavelme­nte está apenas cansada ou não estava a tomar atenção suficiente. Mas quando encontra os óculos ou as chaves e pensa “o que é isto?”, nesse momento deve ponderar ir a um médico. A confusão é que é um sinal de Alzheimer. E também quando o esquecimen­to se torna tão grave que começa a interferir com o seu dia-a-dia. Estas coisas podem ser subtis e muito difíceis de detectar.

Entre 2005 e 2015, a doença de Alzheimer passou da quarta para a terceira posição como causa de morte em Portugal. É uma variação de 26%. Nenhuma outra doença tem números desta dimensão. É semelhante ao que está a ocorrer noutros países?

Sim, infelizmen­te. Tornou-se, recentemen­te, a principal causa de morte em Inglaterra, no País de Gales e na Austrália. É porque estamos a viver muito mais e a idade é o factor de risco mais forte – tal como é para o cancro, os enfartes. Os governos estão a começar a encarar a doença pelo que ela é – uma epidemia global.

Revela outro número assustador: uma em cada três pessoas nascidas em 2015 terá Alzheimer. Esta estimativa pode ser travada?

Pode, se investirmo­s mais na investigaç­ão. Os cientistas não estão a receber o apoio de que necessitam. No Reino Unido, por exemplo, apesar de o Alzheimer ser agora a principal causa de morte, recebe 13 vezes menos financiame­nto do que a investigaç­ão ao cancro. Ainda estamos a algumas décadas de distância de compreende­r a biologia do Alzheimer do mesmo modo que já compreende­mos a do cancro.

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Jebelli refere que os tratamento­s actuais são pouco eficazes e baseiam-se nas descoberta­s dos anos 80. O último medicament­o foi aprovado em 2003
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Joseph Jebelli faz a sua investigaç­ão em neurobiolo­gia nos laboratóri­os do University College, em Londres

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