SÁBADO

Fenómeno

O que é que Bukowski e Mark Manson têm em comum? Foram uns falhados – mas enfim, “que se f*da”. Daqui nasceu o livro mais vendido em Portugal.

- PorMarcoAl­ves

O sucesso do livro mais vendido em Portugal

Mark Manson é o primeiro bestseller de 2018 em Portugal e consegue-o com uma simples capa laranja, só com palavras e um título provocador: A Arte Subtil de Saber

Dizer que Se F*da. A edição portuguesa é igual à original, americana, de 2016, com um salpico no que se

f*da (no original: not giving a f*ck)

Mark Manson assume-se mais ou menos contundent­e, porque o salpico no f*ck eno f*da encurta-lhe a espada. Mas a maior estranheza talvez seja o facto de A Arte Subtil

de Saber Dizer que Se F*da partir de um pressupost­o interessan­te – o combate à praga dos livros de auto-ajuda –, mas depois, ao beber o que o autor escreve, o leitor ficar com a sensação de que acabou de ler um livro de auto-ajuda. Querendo combater a auto-ajuda, como explicar o pós-título “Uma abordagem contra-intuitiva para viver uma vida melhor”? Como explicar que os artigos que escreve sejam creditados como “that can

change your life” (que podem mudar a sua vida)?

Mark Manson não está a dar entrevista­s, não sendo por isso possível desfazer o eventual equívoco. Poder-se-ia perguntar-lhe se não está a acontecer consigo o fenómeno “pela boca morre o peixe” – em português mesmo, porque Mark perceberia (ver caixa).

Não seria uma pergunta que o deixasse embaraçado, porque Manson trabalha sobre a rede da autodesres­ponsabiliz­ação – “Sou apenas um tipo que lê muito, e que não leva a sério nada do que diz”. É o mesmo que acontece quando Ricardo Araújo Pereira diz que é só um pateta ou quando Pedro Chagas Freitas diz que é só um gajo que escreve cenas.

Aceitar o fracasso

Tal como não haveria problemas se João Moutinho falhasse aquele penalty do Europeu depois de ouvir Cristiano Ronaldo dizer-lhe que “se perdermos que se foda”, este livro começa com um falhanço assumido – Charles Bukowski, o escritor “alcoólico, mulherengo, viciado em jogo, malcriado, parasita, vadio”, que só conseguiu que lhe publicasse­m um livro aos 50 anos. Manson diz que o sucesso de Bukowski adveio de não tentar parecer o que não era, de se assumir como um falhado e de se sentir confortáve­l nessa pele, de se basear nisso para escrever.

Esta é a lição – não fingir, aceitar o fracasso. “A cultura actual está obsessivam­ente focada em expectativ­as positivas irrealista­s, tretas positivas e felizes de auto-ajuda que estamos sempre a ouvir, focadas naquilo que nos falta, aquilo que não somos, aquilo que devíamos ter sido mas não conseguimo­s ser.”

O grande problema é que é o próprio Mark Manson que parece passar essas “expectativ­as positivas ir-

“A CULTURA ACTUAL ESTÁ FOCADA NAS TRETAS POSITIVAS E FELIZES DA AUTO-AJUDA”

realistas “quando expõe – e fá-lo muitas vezes, para sustentar as teorias – a sua curta mas já tremenda vida de 33 anos.

Um dos melhores exemplos acontece quando Manson diz que se demitiu do seu primeiro emprego, num banco, porque não era feliz. A mensagem é clara: o leitor que faça o mesmo. Se não conseguir, o mais provável, a consequênc­ia é um dos problemas dos livros de auto-ajuda que o próprio Manson identifica: “Reforçam a percepção de inferiorid­ade e culpa.”

Depois, Manson teve alguns negócios na Internet, esteve “falido várias vezes”, vendeu tudo o que tinha, dormiu inúmeras noites no sofá de amigos e andou a correr mundo – “mais de 60 países” –, até perceber que a sua paixão era escrever sobre Filosofia e Psicologia, assuntos que lhe interessav­am desde petiz. “Enquanto os outros miúdos andavam a ouvir Backstreet Boys e a ver a MTV, eu lia Nietzsche.” Que leitor – inocenteme­nte ocupado a brincar aos berlindes na infância – não se sentirá agora inferior depois de ler isto?

Pelo meio, Manson aprendeu três ou quatro línguas, fez surfe ioga, dançou tango, escalou vulcões, cantou, riu, chorou, fez amor com muitas mulheres, divertiu-se, foi uma grande festa, foi tudo com pouco dinheiro, parece que não se percebe muito bem porque é que qualquer um de nós não haverá de fazer o mesmo.

Houve mais: “Os meus pais decidiram divorciar-se. Conto tudo isto apenas para salientar que a minha adolescênc­ia foi miserável. Perdi todos os meus amigos, a minha comunidade, os meus direitos legais e a minha família num espaço de nove meses.”

A mensagem continua clara: ele chegou onde chegou (é um

bestseller – vendeu dois milhões) e no entanto teve a coragem de começar do zero e passou por inúmeras adversidad­es, mas foram essas adversidad­es que o levaram aonde está hoje, por isso “a adversidad­e e o fracasso são realmente úteis e até necessário­s para o desenvolvi­mento de adultos mentalment­e fortes e bem-sucedidos”, por isso deve adoptar-se o estilo que se f*da, porque isso resultou com ele. E sobretudo é preciso saber que “o prazer é óptimo, mas é um valor péssimo para se tornar a prioridade da nossa vida”.

Manson parece ignorar quão injusto é usar a sua história, bem como as histórias de personalid­ades como Bukowski. Ainda que seja tentador começar do zero de Bukowski (álcool, mulheres, jogo e vadiagem), haveria depois o problema de não ter um talento escondido, como Bukowski tinha. Não o tendo, o exemplo de Bukowski vale então o que sempre valeu: zero. São pormenores. Ou, como diria Mark Manson, merdas. “Aonde quer que vamos, há 200 quilos de merda à nossa espera. E isso não tem problema nenhum. A questão não é fugir da merda, é descobrir a merda com que gostamos de lidar.”

“A ADVERSIDAD­E E O FRACASSO SÃO REALMENTE ÚTEIS. O PRAZER É UM VALOR PÉSSIMO”

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A vida do escritor americano Charles Bukowski (1920-1994) é o ponto de partida deste livro
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Manson já tinha lançado um livro, em 2011. Models ensinava homens a conquistar mulheres

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