QUANDO OS FILHOS MANDAM NOS PAIS
São caprichosas, agressivas e fazem birras. Quando as crianças se tornam o centro das atenções, faz falta impor autoridade – sempre com afecto. Conheça as dicas dos especialistas.
São agressivos, fazem birras e deixam os pais desesperados. Veja as dicas dos especialistas para impor a sua autoridade
Guilherme lança a comida pelos ares. Há enormes discussões que partem de pequenas coisas: como a escolha da cor do elástico do cabelo de Joana. As birras sobem de tom entre as irmãs Mafalda e Sofia. Duarte chegou a dar socos na parede. Reconhece os traços? Pode ser que tenha em casa um filho tirano. Foi a expressão que Javier Urra, psicólogo espanhol, trouxe a público no início do novo milénio, para definir as crianças com comportamentos agressivos, sem limites. “Querem ser constantemente o centro da atenção, são desobedientes e desafiantes que não aceitam a frustração. É o que se denominou ‘síndrome do imperador’. São crianças com insensibilidade emocional, escassa responsabilidade perante um castigo e dificuldades para desenvolver sentimentos de culpa, bem como escasso apego aos pais ou a outros membros da família.” A definição é de O Pequeno Ditador Cresceu (Esfera dos Livros), uma versão actualizada de O Pequeno Ditador, de 2007, um sucesso que vendeu mais de 200 mil exemplares. Os exemplos multiplicam-se entre famílias portuguesas. Como Guilherme, que está na fase traquinas – 3 anos – e arranha a mãe, põe comida a voar e parte brinquedos. E é incapaz de lidar com a frustração e com limites. “Arranha-me, morde-me, dá-me um safanão e os óculos caem”, conta Carolina, 37 anos, comercial. A mesa também era campo de batalha: há três meses, uma em cada três refeições terminava com a comida no chão; agora acontece menos. As noites também são atribuladas: chegou a chamar a mãe quatro a cinco vezes, agora a média é duas por noite. Por recomendação da psicóloga de um colégio do Porto (onde vivem), ela adoptou estratégias. Por exemplo, quando Guilherme pisa o risco, repete palavras-chave como “basta”.
A MESA ERA CAMPO DE BATALHA: UMA EM TRÊS REFEIÇÕES TERMINAVA COM A COMIDA NO CHÃO
É mais provável que a tirania surja em filhos únicos (ou então com grandes diferenças de idade dos irmãos) e, normalmente, acontece no masculino, descobriu Javier Urra na sua investigação: “Há uma rapariga por quatro rapazes”, especifica. E, apesar de o número de raparigas estar a crescer, elas são “menos violentas em todas as partes do mundo e em todas as épocas”.
Em Portugal, muitos psicólogos evitam os adjectivos do colega espanhol. “Não gosto desse rótulo, tirano”, aponta José Morgado, psicólogo e professor do ISPA. “A criança não fica estruturalmente tirana, mas pode ter comportamentos de tirania.” Manuel Coutinho, psicólogo clínico e também secretário-geral do Instituto de Apoio à Criança, acrescenta: “Uma criança nunca nasce má.” A diferença entre uma criança problemática e outra que não é, afirma, está na qualidade da relação que desenvolve com quem cuida dela.
Apoiado nos estudos de Piaget, Javier Urra explica que é normal uma criança passar pela fase egocêntrica – sentir que é o centro do mundo –, mas é uma fase que, normalmente, é ultrapassada pelos 7 anos. Mas pode estender-se até à adolescência ou mesmo à idade adulta – cabe aos pais mostrarem-lhe o contrário. Com a ajuda de Manuel Coutinho, repita este mantra: “Numa família todos os elementos são importantes. Os filhos não são mais importantes do que os pais.”
Detectar o problema
Até os macacos fazem fitas (saltam, guincham) para reclamarem algo – nota um estudo publicado na revista científica Royal Society. E, quando isso acontece em público, as mães macaco cedem à pressão. As birras fazem parte do desenvolvimento em macacos como em seres humanos. Mas é importante não confundir um mau momento com um panorama de descontrolo. Ou seja, uma criança insistir que não quer ir para a escola, numa segunda-feira, é normal, faz parte. Já contrariar todas as ordens dos pais, não.
É preciso, ainda, perceber o que é que é ajustado para cada faixa etária. Entre os 5 e os 7 anos é normal uma criança usar em casa expressões que podem desconcertar: como um “baixa a bolinha”. E os pais não devem pensar que é uma falta de respeito, diz Magda Gomes Dias. “Quer dizer que entrou na escola, numa dinâmica diferente com miúdos de outras idades. Querem mostrar-se fixes e imitam”, explica a coach parental, autora do blogue Mum’s the Boss. Do mesmo modo, entre os 10 e os 13 anos é normal multiplicarem-se os revirares de olhos, as portas batidas com força ou os silêncios prolongados – tudo faz parte da aproximação à adolescência. “Acontecem alterações do corpo e da imagem e eles podem ter dificuldade em acompanhar.”
Já “excessiva conflitualidade, muitas atitudes reactivas a instruções, orientações ou ordens, muitos episódios de birras – para tomar banho, para vestir, para comer –, se tudo acontece em ambiente de discussão, quer dizer que algo não está a funcionar”, explica José Morgado. Basicamente, é preciso atentar à “regularidade e à persistência”, sublinha Daniel Sampaio, psiquiatra e professor jubilado. “Se a birra é muito intensa, se até os vizinhos a podem ouvir e se se repetir e prolongar no tempo… os pais devem pedir ajuda.” Os dois parâmetros devem sempre ser analisados também no caso das mentiras. Se acontece muitas vezes e se trata de coisas sérias: mentir sobre uma goma que comeu não é o mesmo que mentir sobre uma aula a que faltou.
Há vários sinais de alerta a que os pais devem estar atentos. A chamada birra de supermercado – momento em que a criança se atira para o chão e grita, chora e esperneia porque quer qualquer coisa que a mãe ou
o pai lhe negaram – não é comum a partir dos 5 anos, explica Magda Gomes Dias. Rosa, contabilista de 48 anos, já enfrentou a birra com as duas filhas, de 8 e 9 anos, que, um dia, na caixa de supermercado, começaram a gritar-lhe, acusando-a de ser má, porque ela lhes disse que não podiam levar tudo o que queriam. As pessoas olhavam, críticas.
A situação das irmãs é problemática também na escola, nos arredores de Lisboa, onde as duas estudam. Quando se irritam, Mafalda e Sofia – a primeira, mais nova, tenderá a copiar a mais velha – agridem os colegas com pontapés e bofetadas. Sofia irrita-se facilmente e quando faz birras não ouve ninguém. Mafalda amua, esconde-se debaixo da mesa ou isola-se no quarto. Depois vêm os momentos de bonança, com a primeira a ficar calma e a segunda a pedir desculpa aos abraços. O pai é presente “mas mais permissivo”, aponta Rosa. Ambas têm acompanhamento psicológico, para tentar conter a agressividade e impulsividade.
É essencial que a criança aprenda mecanismos de auto-regulação que lhe permitam lidar com a frustração. “Perante as vicissitudes do dia-a-dia é preciso ter uma força interior, do ego, que lhes permita adaptar-se”, diz Manuel Coutinho. Mas hoje as crianças estão cada vez mais relutantes à palavra “não”, garante Alexandra Viana. Educadora de infância há 20 anos, nota que os miúdos estão mais impacientes: “Não estão habituadas a ouvir um não. Esperneiam, gritam, não têm paciência. São pequenos ditadores.” Já enfrentou um caso extremo: de um menino que batia nos colegas e nas professoras. “Quando era contrariado, pontapeava tudo, virava cadeiras”, lembra. Esteve na sua sala dos 3 aos 6 anos e foi com muita calma e paciência que conseguiu, gradualmente, atenuar-lhe o comportamento.
O problema está no corre-corre da actualidade, acredita, que impede os pais de passarem tempo de qualidade com os filhos. “Sentem-se culpados por não terem tempo e acabam por lhes fazer as vontades.” Cláudia Magalhães, colega de profissão, concorda: “Pais cansados, descontentes com o chefe ou em constante pressão, com pouco tempo, delegam toda a educação dos filhos nas escolas, nas amas, nos avós e, cada vez mais, nas novas tecnologias.”
O que é que aconteceu?
Para percebermos quem são as crianças de hoje, é preciso olhar para a actual estrutura familiar. “Na primeira metade do século XX as crianças não tinham voz, eram logo caladas, batidas. A família era uma estrutura muito hierarquizada até aos anos 70, 80, momento em que, de uma forma geral, os filhos e os pais foram ficando mais próximos”, lembra o especialista Daniel Sampaio.
“OS PAIS SENTEM-SE CULPADOS E ACABAM POR FAZER AS VONTADES”, JUSTIFICA A EDUCADORA DE INFÂNCIA
E com esta alteração na relação, veio também uma consequência imediata: a perda da autoridade. “Já no século XXI percebeu-se que esta mudança não era uma coisa boa.” Daí a necessidade de os pais recuperarem o seu papel, assumirem o comando. A par da falta de tempo, há mais famílias separadas: “Actualmente, um em cada quatro casamentos acaba em divórcio”, lembra Joaquim Manuel Silva, juiz de Família e Menores do Tribunal de Mafra. “O problema da separação é que, com o conflito dos pais, deixa-se margem para a manipulação.” E mais: temos uma fraca rede de apoio, recorda Magda Gomes Dias. O movimento que se continua a fazer para as grandes cidades, obriga a que os pais se desenvencilhem sozinhos – sem a ajuda de avós ou tios, que ficaram na terra natal. “Temos menos retaguarda.” A falta de tempo e de apoio leva a que evitem o confronto e que tentem, a todo custo, ser amigos dos filhos. Não pode acontecer: os pais são mais do que amigos e é preciso deixá-lo bem claro, diz Manuel Coutinho. “É que os pais já foram filhos mas os filhos ainda não foram pais. Ainda não têm vivências suficientes para poderem ser eles a tomarem decisões sobre a sua própria vida e a da família.” Estabelecer regras, desde cedo, é fundamental. Em O Pequeno Ditador Cresceu Javier Urra dá alguns exemplos de regras-base: “Obedecer aos pais, não bater (nos pais, irmãos, amigos), não mentir, não responder com maus modos, não gritar quando se zanga, não interromper os mais velhos quando estão a falar…” São regras que devem ser transmitidas a partir de 1 ano de idade, altura em que a criança começa a explorar o que está à sua volta. “Muitos pais e mães têm medo que a criança deixe de gostar deles em resultado dos limites impostos”, explica Paulo Oom. O pediatra diz que esta é uma ideia errada: “As crianças gostam dos seus pais por muitas coisas que nada têm a ver com os limites e as regras. Gostam de pais que os amam, que se divertem com eles, que sabem ouvir, que sabem falar, que sabem actuar, que são coerentes.” E estabelecer regras significa, por um lado, ser coerente (se a hora de ir para a cama nos dias de semana é às 21h, não pode ser às 23h num dia e às 22h noutro) e, por outro, mostrar o que está certo através da explicação e do exemplo. “As crianças fazem mais aquilo que vêem fazer do que aquilo que lhes dizem para fazer”, explica Manuel Coutinho. “Não se pode dizer a uma criança para não gritar se os pais passam a vida a gritar, ou para não ouvir televisão aos berros se os pais o fazem, ou que não estejam com os pés em cima dos sofás se os pais estão.” Os pais devem sempre lembrar-se que são modelos – e em conjunto. Mesmo antes de decidirem ter um bebé, devem conversar sobre a educação que pretendem dar aos filhos, recorda o psiquiatra Daniel Sampaio. “É importante perceberem como vão fazer a construção da parentalidade. Às vezes, o casal tem modelos de família muito diferentes e o que interessa é que o todo desse casal seja um todo coerente.”
Entrar em acção
Refeição no restaurante em família. Ainda não fizeram o pedido e o mais pequeno já está a espernear e a gritar porque não quer sopa. A criança transforma-se, é visível: “O nível de adrenalina dispara, o coração bate mais forte, a respiração intensifica-se, e todo o organismo é
MUDOU O MODELO FAMILIAR: SE ANTES SE DIZIA “OLHA QUE VOU CONTAR AO TEU PAI”, HOJE O PODER É PARTILHADO
invadido por uma sensação de calor. Estas mudanças fisiológicas perturbam a criança, que, perdida, deixa de conseguir comunicar de outro modo que não seja aos gritos e a chorar”, explica a psicóloga francesa Stéphanie Couturier em Como Ajudar o seu Filho a Controlar as Birras (Presença). Manter a calma é o primeiro passo. O segundo é retirar a criança (mesmo que seja a custo de alguns gritos e esperneios). Depois, outra vez, manter a calma. “O pior que pode acontecer perante uma criança que faz uma birra é um adulto ficar descontrolado, gritar”, explica Manuel Coutinho. Para lidar melhor com o momento da birra, Stéphanie Couturier aconselha a que utilize uma metáfora para conversar sobre a situação: explicar que existe uma “Casa das Emoções” no corpo, por onde passam os medos, as raivas, e que às vezes há emoções que ficam lá mais tempo do que deviam e que é preciso expulsá-las. “Permite, por um lado desculpabilizar a criança”, diz e “criar uma distância entre ela e o estado emocional”. Também fundamental é ajudar a criança a respirar fundo, diz Magda Gomes Dias. E esse é um exercício que deve pôr em prática diariamente – quando vai buscá-la à escola, por exemplo. Assim, estará a dar-lhe mecanismos para que possa lidar com a frustração. Nos momentos de birra é ainda importante que o adulto não expluda, recuperando outros episódios negativos. “Os pais não devem ter uma perspectiva histórica”, diz Manuel Coutinho. Quer dizer que é importante resolver a situação no momento e fechar o capítulo – e não recuperar para discussões futuras. O afecto fará o resto, garante Manuel Coutinho. Dar um abraço, mostrar que está ali para ouvir o que a criança sente. “É a maior arma terapêutica. Quase tudo se resolve com afecto e consideração”, explica. “Antigamente dizia-se ‘cresce e aparece’. Agora mudou o paradigma e podemos dizer ‘aparece que eu ajudo-te a crescer’.” E, entretanto, ignore os olhares alheios. A psicóloga Patrícia Poppe recomenda que acalme com “firmeza e carinho.” E lembra que nem tudo o que parece é: “Para quem assiste a estes comportamentos é difícil compreender que há mal-estar que esteja subjacente a este tipo de condutas, que são facilmente rotuladas de má educação.” “As birras são moldadas geneticamente mas sujeitas aos constrangimentos da personalidade e da aprendizagem”, explica à SÁBADO Michael Potegal (Universidade do Minnesota) que estuda o comportamento infantil. Diz que as birras fazem parte do desenvolvimento até aos 5 anos. “Se continuarem até aos 10 anos de idade é um alerta de problemas no futuro”, conclui.
Obediência VS. cooperação
Durante muito tempo o modelo familiar foi outro, lembra Magda Gomes Dias, coach parental. O pai mandava na mãe e a mãe mandava na ordem da casa e nos filhos – quando estes lhe desobedeciam surgia a ameaça: “Olha que vou contar ao teu pai!” Hoje, o poder é partilhado entre pai e mãe: “E os pais não querem filhos obedientes, sabem que os miúdos são pessoas.” A especialista lembra que se antigamente se obedecia à custa do medo, hoje o método é diferente: cooperação. Quer dizer que as decisões devem ser explicadas – não podes saltar da cama porque podes cair e magoarte, deves comer os teus vegetais porque te fazem mais forte, etc. E que a criança deve ter voz, direito a expressar a sua opinião. “A opinião delas deve ser considerada sempre na base do diálogo e do respeito”, adianta Manuel Coutinho. Magda Gomes Dias concorda mas lembra que a última palavra é sempre do adulto, que tomará a melhor decisão. No caso de uma criança pequena, que quer levar Havaianas para a escola num dia de Inverno, os pais podem explicar que está frio e que tem de levar botas ou até sugerir que as Havaianas fiquem à porta para calçar quando regressar da escola – mas não mais. “Há coisas para as quais não temos de os convencer. Não são negociáveis.” É preciso encontrar equilíbrio: dar doses de regras e ordens, combinadas com doses igualmente generosas de carinho e amor. “É preciso autoridade sem autoritarismo”, explica Daniel Sampaio. “É dizer um não mas, ao mesmo tempo, envolver a criança afectivamente.” José Morgado concorda e dá o exemplo: “É dizer ‘adoro-te mas esse comportamento não admito’.” Para o especialista não existe “mimo a mais” como se diz.
“O que existe é mau mimo, que não permite regras, por exemplo.”
E, à medida que se introduzem regras, também se entregam responsabilidades. No caso de uma criança pequena (de 3 anos) pode ser arrumar os brinquedos do seu quarto, mas para uma criança maior, de 10 anos, é estudar sozinha, tomar responsabilidade pelos deveres da escola, pedindo ajuda aos pais apenas se tiver dúvidas, explica Daniel Sampaio.
Pedir ajuda
Leonor é mãe a tempo inteiro (por opção). Pertence a um grupo do Facebook com o mesmo nome, Mães a Tempo Inteiro, que tem 13 mil membros. Tenta dar uma educação positiva – não permissiva, salienta – à filha única de 4 anos. Nos tempos livres, fazem jogos de números e de letras, colagens, puzzles. Não há correrias nem stress, vivem numa zona pacata do Alentejo. Eis o cenário perfeito para criar uma menina zen. Contudo, Joana é desafiadora.
Não perde uma oportunidade para fazer frente à mãe de 33 anos. Leonor faz mea culpa: “Culpei o factor genético, por ser de uma família de pessoas com personalidades fortes; culpo-me a mim. Admito que já gritei, já castiguei, já bati, já chorei mas chego à conclusão que só resulta negociar.” As mudanças de humor podem ser repentinas. Do nada, exalta-se se a mãe lhe ata o cabelo com o elástico cor-de-rosa em vez do azul. Vai buscar o azul e fita a mãe: “Toma. É este que quero, já te disse. Mau, mau.”
Como Joana, há outros pais que se sentem desorientados. “Alguns até têm vergonha de falar sobre a situação”, partilha o psicólogo José Morgado. “Às vezes é preciso criar alguma empatia para que comecem a falar sobre as suas fragilidades. Sentem-se embaraçados, sentem que não são bons pais, que não são competentes. Perguntam-se: ‘O que não estarei a fazer bem?’” A melhor estratégia é procurar companhia. Pode ser algo tão simples como partilhar experiências com outros pais – afinal, não estão sozinhos, e há outros casais que vivem o mesmo tipo de experiência. “Trabalho com grupos de pais e eles juntos percebem que as coisas não são cor-de-rosa e que nem sempre corre tudo bem”, acrescenta. O psicólogo Manuel Coutinho lembra que os pais devem primeiro esclarecer dúvidas com o pediatra e, depois, se necessário, procurar um profissional da Psicologia Clínica. A experiência já lhe provou que há casos difíceis mas não impossíveis. Recorda uma mãe que visitou o seu consultório com o filho de 8 ou 9 anos, queixando-se dele: “Não se lhe pode dizer nada que oferece logo pancada.” Quando Manuel Coutinho questionou o rapaz, ouviu um desafiador: “Se voltas a falar comigo dou-te um murro.” Mas continuou a fazer perguntas, até que “a criança percebeu que aquilo não fazia sentido nenhum”, explica. “Não podemos é recear quando uma criança nos diz que vai dar um murro. Temos de a confrontar, perceber porque está a ter aquela atitude e tentar diminuir a hostilidade.” Foram necessários seis meses de terapia para ajudar aquela família a recuperar a normalidade. Mas, afinal, o que tinha corrido mal? “Não tinham conseguido incutir-lhe as regras e o respeito pelos outros. Ele estava habituado a servir-se do que tinha à volta”, lembra Manuel Coutinho. Tinha, portanto, a chamada síndrome do imperador. Também “não tinha atenção em qualidade”, conta; havia “muitos brinquedos mas ninguém com quem brincar”.
O caso de Duarte, 10 anos, também era extremo. Era a ovelha negra da turma: hostilizava os colegas, recusava participar nas aulas. Em casa, nos arredores de Lisboa, dava socos na parede. Era cruel para a mãe (dizia que estava gorda) e discriminava o padrasto (repetia que ele
O CASO DE DUARTE ERA EXTREMO. HOSTILIZAVA OS COLEGAS, NA ESCOLA, E EM CASA DAVA SOCOS NA PAREDE
não era pai dele). Também tinha terrores nocturnos e urinava na cama. Alice, a mãe, consultora de 31 anos, chorava às escondidas; o filho parecia-lhe um caso perdido. A mãe tentou obter respostas com um pedopsiquiatra do Serviço Nacional de Saúde. Diagnóstico de Duarte: hiperactividade com défice de atenção. O médico prescreveu-lhe medicação, mas o efeito era curto. Por sugestão de uma amiga, recorreu a um psicoterapeuta da infância. Ao fim da segunda consulta, Miguel Mealha Estrada revelou à mãe que o menor era vítima de bullying. Trocou de escola mais uma vez até chegar a um colégio, em Setembro de 2017: “A resistência dele à mudança foi enorme. Pôs o colégio em alvoroço, mas todos têm sido muito compreensivos”, constata a mãe. Para Miguel Mealha Estrada, prestes a lançar um livro onde aborda o tema, a expressão usada por Javier Urra (“tirano”) está incorrecta. “Quando dizemos que é tirana, estamos a beatificar o ensino, a família e a sociedade”, explica. Substitui o termo pelo de “bode expiatório” e em vez de culpa prefere falar em reabilitação. “Os únicos tiranos são aqueles que culpabilizam e não olham para dentro para se responsabilizarem. Absolvo as crianças.”
Nota: os nomes dos pais e das crianças são fictícios.