Os senhores do segredo eo The Post
Uma das maiores hipocrisias no debate público sobre a justiça está na forma como a violação do segredo se tornou um crime exclusivo de jornalistas. É como se não existisse mais nada, nem mais ninguém. Aqueles políticos que não querem ser objecto de qualquer escrutínio, seja da justiça ou do jornalismo, desenvolvem com total impunidade estratégias de vitimização que, entre outras coisas, escondem as suas próprias violações do segredo. E para isso contam com um verdadeiro exército de advogados, comentadores fabricados nos bastidores do poder, que vêm de um obscuro passado como “empresários” ou mesmo “merceeiros”, na linguagem dos próprios, e são metidos a cavalo em programas de debate nas televisões e jornais amigos.
São já muitos os casos que evidenciam essa realidade, da Face Oculta, em que o chamado “negócio PT/TVI” nunca foi investigado por decisão superior no Supremo Tribunal de Justiça e na Procuradoria-Geral da República e os investigadores e magistrados desse processo foram queimados na praça pública pelos novos inquisidores de microfone na lapela e caneta vendida. Neste processo, os suspeitos souberam que estavam a ser investigados e mudaram de telefones e de linguagem. A violação partiu não da investigação – como é óbvio – mas do coração do sistema judicial, através de alguém que fez chegar o segredo aos amigos que tinha no governo de Sócrates. Ainda no Face Oculta, um dos arguidos tinha uma “toupeira” que acedia à informação interna da PJ, técnica que, ao que parece, se vai repetir agora nos processos que envolvem o Benfica. No futebol, aliás, a coisa não é nova. Basta lembrar o célebre fim de semana de Pinto da Costa em Espanha para evitar a detenção no Apito Dourado. Foi bem de dentro do aparelho da justiça que um providencial amigo ajudou. Sem esquecer, claro, Fátima Felgueiras na sua fuga para o Brasil, que terá sido motivada por voz amiga num Tribunal da Relação.
No processo Vistos Dourados os suspeitos souberam que estavam a ser investigados e procuraram mobilizar amizades políticas e judiciais. No caso Marquês, os suspeitos foram alertados 10 meses antes das detenções, quando o Ministério Público pediu ao BES informação financeira sobre Carlos Santos Silva. Neste crime, porém, só há jornalistas indiciados, acusados e, no passado, condenados, embora o Estado português tenha depois sido condenado no Tribunal Europeu, evidenciando a iniquidade dos processos realizados por cá. Políticos, banqueiros, advogados, altos funcionários que podem ir de polícias, procuradores, juízes até ex-procuradores-gerais da República nem um se sentou ou vai sentar no banco dos réus. E contam, de resto, com a estranha cumplicidade de “jornalistas” na fogueira mediática que criaram sobre o tema. Pode ser que um dia o fogo faça ricochete...
Os segredos doThePost
Os dois grandes casos que glorificaram o jornalismo de investigação norte-americano seriam impossíveis em Portugal, se fosse seguida a doutrina de alguns “especialistas”. O processo dos Papéis do Pentágono, agora contado no filme The Post, começou com segredos de Estado roubados e o Watergate com prodigiosas violações do segredo de justiça e bancário. Um e outro construíram uma doutrina aceite em todo o mundo democrático – o escrutínio do poder é uma obrigação essencial do jornalismo –, menos nas cabeças de alguns comentadores e jornalistas portugueses. Bem hajam pela vossa submissão, que faz brilhar ainda mais a ousadia de quem não se aquieta face ao poder.