SÁBADO

As biografias demasiado “oficiais”

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Quem se mete a fazer biografias ou proto-biografias é suposto conhecer os principais momentos da vida do biografado. E se omitir alguns dados que são relevantes, porque prejudicam a narrativa ou o elogio, então está-se a manipular o leitor. Encontrei vários exemplos recentes. O filme hagiográfi­co que passava antes dos debates em honra de Soares na sede do PS, refere a actividade de Soares no MUNAF, MUD e MUDJ e nada diz sobre a passagem de Soares pelo PCP, coisa que o próprio nunca escondeu, embora tenha tido a tentação de sugerir que saiu pela direita quando saiu pela esquerda. Ora muita da participaç­ão de Soares nesses movimentos até à candidatur­a de Norton de Matos não foi individual, mas como membro do PCP e, nalguns casos, representa­ndo o PCP, como aconteceu na candidatur­a de Norton. Outro caso é uma biografia recente de Paulo Teixeira Pinto que omite a sua passagem depois do 25 de Abril por grupos de extrema-direita, em alguns dos quais teve um papel proeminent­e. E estes grupos de extrema-direita deixavam de longe, no seu radicalism­o, o PNR. Aliás, deixaram atrás de si documentaç­ão fotográfic­a de várias personagen­s activas na comunicaçã­o social, na academia e na política dos dias de hoje de braços ao alto na saudação fascista. Um caso mais recente é um ensaio biográfico de Henrique Raposo na revista do Expresso, sobre Vasco Pulido Valente. Não se trata propriamen­te de uma biografia, mas de uma espécie de tese e o expurgo de alguns dados biográfico­s enfraquece a validade da tese. É, no caso de Vasco Pulido Valente, o expurgo da sua passagem por um grupo de extrema-esquerda, o Movimento de Acção Revolucion­ária, o MAR. O MAR era um grupo à esquerda do PCP, socialista radical, fortemente influencia­do pelo marxismo, embora menos pelo leninismo organizaci­onal. Mas o MAR defendeu a

luta armada, e apoiou a execução por um outro grupo pró-chinês, a Frente de Acção Popular, de um informador da PIDE. Como a acção do MAR durou pouco tempo e uma parte ocorreu na Argélia, há tendência para o esquecer. No entanto, a omissão do MAR em muitas biografias, como é o caso da de Jorge Sampaio, não é aceitável porque ele foi importante para uma corrente que depois do 25 de Abril influencio­u o PS, a FSP, a UEDS e, particular­mente, o MES. Também seria problemáti­co na tese biográfica de Raposo a passatão gem pelo parlamento de Vasco Pulido Valente pela mão de Fernando Nogueira. É posh estar com Sá Carneiro e Soares, mas estar com Nogueira já estraga o brilho dos salões. Do mesmo modo, o papel que é atribuído a Marcelo Rebelo de Sousa não tem qualquer fundamenta­ção histórica. Marcelo era um anti-associativ­o e participou, ainda que superficia­lmente, em grupos de direita. Este tipo de omissões quanto à actividade na direita e na extrema-direita é muito comum nas biografias ou perfis de pessoas que hoje es- no mainstream da democracia, muito mais comum do que quando o trajecto é na extrema-esquerda. Aliás, é muito mais comum atacar-se os antigos militantes esquerdist­as e comunistas do que os antigos salazarist­as e marcelista­s e, nalguns casos mesmo, fascistas.

Todos estes trajectos são da “pesada” e contam, como eu sei por experiênci­a própria, até porque eu não só não esqueci como me lembro muito bem. Não digo isto para de algum modo atacar os presentes pelo seu passado, mas o esquecimen­to, que muitas vezes nem sequer é dos próprios, é uma falsificaç­ão da história.

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SUSANA VILLAR
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