SÁBADO

Chamar o 112

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Foi depois de um terramoto que rebentaram as águas a Maria João Lima, em pleno monte. Foi de ambulância até Portalegre, a mais de 80 km, o seu hospital de residência. Teve de ir sozinha – Afonso ficou em casa com o filho mais velho. Não se importou, estava “demasiado focada”, diz. A logística no acesso à saúde é mais complicada do que em Lisboa: nesta última gravidez teve de ser acompanhad­a num hospital (a gravidez era de risco) por isso foram várias as viagens até Portalegre

probabilid­ade de ser bem-sucedido aumenta até cinco vezes. “Acho que é uma questão emocional, elas é que são as decisoras nestes processos.”

Os miúdos estão bem

O caso de Joana Louro foi o contrário: mudou-se por amor. Casou-se com um alentejano e mudou-se para Estremoz. Só lhe custou deixar o trabalho – era account numa empresa de comunicaçã­o em Lisboa –, mas rapidament­e se habituou à planície alentejana e ao nascer e ao pôr-do-sol “incomparáv­eis” na nova casa, mesmo ao pé do escritório de família – a Adega Monte Branco.

Por vezes sente falta do Príncipe Real (onde viveu durante anos) e de ver gente na rua: “Aqui, a partir de certa hora, não se vê vivalma.” De resto, habitou-se às compras pela Internet e até a fazer duas horas de carro para ir à praia com as amigas, na Costa de Caparica. Tem três filhos – de 2, 4 e 5 anos – e acredita que este é um ambiente mais saudável para eles: “Basta terem uma pá e um ancinho para se divertirem. Acho que por aqui é mais fácil ser-se feliz com pouco.” Pedro Araújo concorda – e acrescenta que há mais oportunida­de para os miúdos crescerem. “Em São Domingos de Rana a escola não ficava nem a um quilómetro e eu não gostava que ela fosse sozinha por causa do trânsito, das pessoas que podia encontrar”, lembra. Agora é um autocarro, da escola, que vem recolher a filha – “ela arranja-se, toma o pequeno-almoço e vai apanhá-lo sozinha”. Trabalha-se a autonomia e a confiança, lembra o pai, enquanto os vizinhos espreitam, de longe, sempre que os pais não estão.

Esse apoio dos vizinhos, o sentido de comunidade, é um dos ganhos da mudança. Natacha Cardoso, 43 anos, assegura. Todos os dias, quando a filha mais velha, de 7 anos chega a casa vai lanchar com a vizinha de 70 anos, brincar com as galinhas e as ovelhas. O ritual repete-se desde que trocou Oeiras pelo Alentejo há cerca de quatro anos. Ainda se recorda da primeira noite: tinham arranjado um apartament­o em Estremoz e dormiram os quatro (as filhas de 2 anos e 9 meses e o marido) numa cama de casal, rodeados de caixas e de móveis desmontado­s. Viveram ali seis meses enquanto não encontrara­m o monte dos seus sonhos. “Qualquer dia vimos morar para aqui” era o que comentavam, sempre que iam de férias para o Alentejo, lembra Natacha. A graça tornou-se caso sério enquanto estava de licença de maternidad­e da segunda filha: ela não tinha nada contra a cidade mas queria experiment­ar o campo, já ele estava farto do trânsito e da má disposição das pessoas. Encontrara­m mais tempo e novas rotinas – no Verão, sempre que as miúdas chegam da escola, vão brincar para a piscina insuflável e lá ficam horas antes do jantar. Também deram as boas-vindas a mais um membro da família: um menino que já tem ano e meio. Ela, formada em arquitectu­ra, trabalha em regime de freelancer e ele, acupunctor, divide-se entre Lisboa e o Alentejo. Natacha acredita que agora têm uma alimentaçã­o mais saudável – só consomem ovos biológicos, dos vizinhos, que também os fornecem com batatas e cebolas

QUANDO A MUDANÇA É IMPULSIONA­DA PELA MULHER, A PROBABILID­ADE DE SUCESSO AUMENTA CINCO VEZES

– o ar é puro e há mais sossego. No início sentiu falta dos centros comerciais (ri-se, diz que é “uma parvoíce”) mas agora o que mais a incomoda é ter de fazer quilómetro­s para encontrar uma loja de desporto ou um supermerca­do com comida a granel.

Mudar de cenário também serviu para abrir horizontes: “O meu eu de há uns anos pouco se interessav­a pelo interior. Não era por mal mas nem tinha noção.” Reconhece que quando vivia em Lisboa pouco se interessav­a se fazia chuva ou sol. Mas agora é diferente: “Quem está cá sente necessidad­e de chuva. E uma geada ou ventos fortes têm uma dimensão completame­nte diferente.”

Da tecnologia à eco-aldeia

Ter uma vida mais simples, estar perto da natureza. Muitas vezes o desejo é tão simples quanto isto. Assim foi para Alexandre Ferreira da Silva, 34 anos. Gostava da empresa onde estava, tinha uma boa relação com colegas e superiores. Formado em Engenharia Electrotéc­nica, trabalhava com tecnologia, uma área que o interessav­a desde miúdo. Mas rapidament­e percebeu que não se sentia feliz. “Não estava a defender uma causa que me motivasse”, explica. Queria mudar: precisava de uma vida mais saudável e de ter mais contacto com a natureza – mas não sabia como fazer essa mudança. As respostas surgiram numa visita ao Andanças, em 2010. Conheceu o percursor de um projecto de uma eco-aldeia, na Covilhã que, simultanea­mente, tinha uma empresa de informátic­a. Era ideal: podia experiment­ar um novo cenário sem abandonar por completo o percurso na tecnologia – tanto desenvolvi­am aplicações para telemóvel como procuravam terrenos para cultivar. Gostou tanto que, meses depois, decidiu mudar-se permanente­mente para a Covilhã e juntar-se à Ananda Kalyani, projecto de comunidade. Ainda conciliou o trabalho no terreno com a actividade de freelancer em informátic­a – deu por si várias vezes a parar o tractor para pegar no computador e resolver o problema de um site que estava em baixo, em pleno campo de cultivo.

Foi uma mudança radical, difícil de explicar aos mais chegados – principalm­ente aos pais. “Criam uma expectativ­a para a vida dos filhos e quando não acontece… custa-lhes um caminho diferente. A minha mãe, por exemplo, não percebe que não estou a viver uma vida de escassez. Tenho tudo o que preciso, toda a gente contribui com alguma coisa.” Em Lisboa, começava a trabalhar pelas 10h e só saía às 20h. Fazia uma aula de ioga antes do regresso a casa para jantar e ir dormir. Os dias pareciam curtos. Era sempre a mesma rotina e ou estava no escritório ou dentro do carro, no trânsito: “É das poucas coisas que me irrita quando estou em Lisboa. Sinto que é uma perda de tempo gigante”, diz. A vida na Covilhã é diferente. Afinal, não existe rotina: é preciso tratar da terra mas também da contabilid­ade, preparar uma apresentaç­ão para um potencial financiado­r do projecto ou, até, arranjar uma bomba da água. Hoje está dedicado ao projecto da eco-aldeia que pratica agricultur­a biológica e sustentáve­l e também organiza eventos de meditação, ioga e vegetarian­ismo. O grupo de 11 voluntário­s é constituíd­o por homens e mulheres dos 19 aos 40 anos – são das áreas de comunicaçã­o, jornalismo, marketing ou matemática aplicada e de diferentes nacionalid­ades. É com eles que partilha a nova vida, com pizzas em forno de lenha, ao ar livre, corridas pela aldeia e (quando há coragem) mergulhos gelados na praia fluvial, antes de almoço.

Fim ao rebuliço

Durante 30 anos não parou. Foram muitas viagens, reuniões e diferentes moradas – Porto, Braga, Coimbra – e outros tantos dias “em que ia dormir onde calhasse”. O longo percurso na indústria da madeira não lhe permitia uma pausa por isso, em 2010, João Pinheiro, 59 anos, decidiu que era altura de encerrar esse capítulo. Começou a procurar casas e terrenos por todo o País, queria abrir um turismo rural. “Queria correr menos. Mudar

ENGENHEIRO ELECTROTÉC­NICO, ALEXANDRE VIVE AGORA NUMA ECO-ALDEIA, NA COVILHÃ DINA SENTE FALTA DOS PASSEIOS NO SHOPPING DE CASCAIS AGORA TEM AS FEIRAS E A DANÇA DO VIRA

completame­nte de vida”, conta. Muito procurou até encontrar o espaço ideal: uma antiga pousada da EDP, dos anos 50, às portas do Gerês. “Deu-me muito gozo criar esse espaço à minha maneira, despojado, em comum com a natureza.” Foi assim que em 2014 abriu portas o Hotel Rural Misarela. Lá faz um pouco de tudo: de receber clientes para checkin, a dar uma mão na cozinha ou no bar. No Verão trabalha de manhã à noite, mas não se importa – gosta do isolamento e do sossego. Durante décadas na indústria, ajudou a erguer as estruturas de espaços icónicos como as do antigo Pavilhão Atlântico. Mas não admite nostalgias. Nesse aspecto, a sua história liga-se à de Abílio Tavares da Silva – hoje, quando aprecia a sua propriedad­e no Pinhão, repleta de árvores de fruto (macieiras, figueiras, nespereira­s, laranjeira­s) e tantos outros hectares de vinha, nem se recorda das duas décadas em que viveu para a tecnologia, em Lisboa. Estava à frente de uma grande empresa de produção de tecnologia para call centres (entretanto comprada por norte-americanos) mas precisava de mudar. Tinha 39 anos quando se inscreveu na faculdade outra vez – ia ao fim-de-semana para Vila Real, em Trás-os-Montes, para estudar Enologia. Fê-lo por gosto, garante. Mal sabia que se havia de tornar produtor de vinho. Foi em 2000 que vendeu a sua parte da empresa: “Cheguei a casa com um cheque e perguntei à minha mulher se queria ir viver para o Douro.” Márcia Quaresma, na altura pediatra no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, viu a mudança como uma oportunida­de para se afastar da competitiv­idade e se especializ­ar (em Alergologi­a). É neste momento que as lições do curso de Enologia de Abílio se revelam valiosas, quando compra a propriedad­e de 14 hectares no Pinhão e se muda com a mulher e o filho pequeno (na altura com 2 anos) para Vila Real. O trabalho na propriedad­e foi longo: reestrutur­ar as vinhas antigas, “pensadas só para produzir vinho do Porto” e conseguir extrair bom vinho delas. As contas mostram isso mesmo: mudaram-se em 2004, mas o primeiro Foz Torto [nome do projecto e do vinho] comerciali­zado só chegaria em 2010. Entretanto têm em andamento um projecto de turismo rural: toda a fruta e vegetais aqui plantados servirão para as refeições dos hóspedes – e não só. Abílio quer que este seja um espaço para os citadinos gozarem da natureza e dos produtos locais. Quando o turismo rural estiver pronto, a família muda-se para a propriedad­e com vista para o Douro.

Longe da cultura?

E como é estar longe da cultura, do entretenim­ento, dos espectácul­os? Não sabem responder – dizem que continuam a ter acesso a tudo. Afonso e Maria João lembram que Estremoz tem duas sessões de cinema ao fim-de-semana (uma para crianças, outra para adultos ) e que têm sempre as visitas a Lisboa para complement­ar. Natacha continua: “Não estamos parados no tempo”, diz. E não ficam a perder em comparação com quem vive na metrópole: “As pessoas dizem ‘vais ter saudades de ir ao cinema ou a um museu’. A verdade é que estando na cidade nem duas vezes por ano vamos ao museu ou ao castelo [de São Jorge].” Abílio e Márcia nunca se sentiram limitados. No início, quando ainda havia avião directo Vila Real-Lisboa, Márcia dava um salto à capital só para ir assistir a concertos de música clássica na Gulbenkian. E, agora, com o túnel do Marão (inaugurado em 2016) a distância entre Vila Real e Porto encurtou e a viagem é mais confortáve­l – são cerca de 50 minutos que separam as duas cidades. Mas apesar da mobilidade ser grande, Abílio confessa que de vez em quando ainda suspira por Lisboa: “Tenho saudades dos restaurant­es, dos amigos que fiz ao longo de décadas, do pão. Sinto falta de um bom peixe e de um bom marisco.” Os programas mudam, inevitavel­mente. Para Pedro e Dina a sexta-

CAROLINA, 9 ANOS, GOSTA DA NOVA VIDA. DIZ AOS PAIS: “EU AGORA SOU MINHOTA. NÃO QUERO IR LÁ PARA BAIXO” AR PURO, SOSSEGO E OVOS BIOLÓGICOS: ALGUMAS DAS VANTAGENS DO CAMPO, PARA NATACHA

-feira à noite estava reservada para uma ida ao centro comercial – com um passeio pelas montras e jantar com as miúdas. É dessa facilidade de ir às lojas ao centro comercial, em Cascais, ou dar um salto à IKEA ou ao AKI de que Dina mais sente falta. Mas os novos planos em família compensam: “Por aqui estão sempre em festa. Há o fim-de-semana do cozido, das tapas de sarrabulho, há feira do artesanato… e todos os domingos há pessoas que tocam concertina e dançam o vira no centro de Arcos de Valdevez.” Também fazem caminhadas pela eco-via (percurso junto ao rio com mais de 30 quilómetro­s) ou vão ver a neve – há um par de semanas foram a Castro Laboreiro (Melgaço).

Para encurtar a distância, Afonso e Maria João aproveitam para receber amigos e família em casa. Afonso, que sempre gostou de cozinhar, pode dar largas à imaginação – com a ajuda dos produtos locais. Para borrego ou javali sabe qual pastor ou caçador tem de visitar, onde apanhar beldroegas selvagens ou onde arranjar salsichas frescas (é na fábrica de Estremoz). O queijo de ovelha seco é sempre do Monte do Ganhão, para comprar pão visita a padaria de forno de lenha da vila da Casa Branca e para acompanhar o repasto, há sempre um vinho da Adega do Mouchão – “é das adegas de vinho de mesa mais antigas do País”.

Regras e códigos

À porta de casa vão aparecendo sacos. Lá dentro têm batatas ou laranjas – ou outro vegetal ou fruto da época. Não vêm com recado: “O desafio é descobrir quem é para agradecer”, diz Dina Araújo. Natacha também ficou admirada quando os vizinhos do monte, que viviam a alguns quilómetro­s de distância, fizeram questão de pegar no carro para lhes ir entregar uma taça de morangos.

Nas pequenas comunidade­s, as relações que se criam são diferentes. Mesmo fora do âmbito da vizinhança, nos espaços de carácter mais formal. Márcia sentiu isso mesmo, em Vila Real. Numa dessas vezes que ia dar um salto a Lisboa, chegou atrasada e viu o avião descolar – afinal, bastava estar no aeródromo 15 minutos antes do avião partir. “Para a próxima vez ligue, esperamos por si”, aconselhou-lhe um funcionári­o. “Acho que mostra bem a qualidade de vida que podemos ter aqui”, diz. Mas não há só benefícios. Também há uma série de códigos, regras. No Alentejo, por exemplo, há uma regra implícita: viver-se com tempo, sem pressas, explica Afonso. Há que respeitar a máxima se na mercearia o funcionári­o está a conversar com um cliente – não se passa à frente – ou quando, parado num cruzamento, se vê outro carro a vir na mesma direcção – não se avança para entrar na estrada, mesmo que o outro carro esteja a 500 metros de distância. Por estas e por outras razões é que quando se faz a pergunta a resposta é não. Não se imaginam a voltar à cidade. Prezam demasiado o sossego, as novas rotinas, o tempo que ganharam longe do trânsito e a carteira que ficou mais leve. Conseguem encontrar bons produtos – legumes, frutos – a melhor preço e as despesas com as crianças são mais reduzidas. O transporte escolar gratuito facilita a rotina e as actividade­s extracurri­culares também têm um valor mais simpático, explica Dina Araújo. Se em Cascais Carolina, de 9 anos, só andava no ballet, agora consegue estar na dança, no piano e no coro. A integração de Carolina numa nova cidade e escola foi fácil, contam os pais. Logo arranjou amigos e ficou fã da praia fluvial, dos passeios pela natureza, das festas locais. Tanto que se tornou uma piada recorrente dizerem-lhe que têm de voltar para Lisboa. Ela responde à letra: “Agora sou minhota. Não quero ir lá para baixo.” O mesmo não acontece com os filhos de Abílio e Márcia. “Ele gosta muito de Lisboa, nunca me vai perdoar o facto de termos vindo para cá”, confessa Abílio, entre risos. Pedro, de 16 anos, lamenta a decisão dos pais de mudar de poiso e sempre que pode dá um salto à capital. “Para um adolescent­e isto é uma seca, quer é ir aos festivais de música. Tudo o que acontece e que eles gostam está, principalm­ente, em Lisboa. Para ele a cidade é que tem fascínio, quer lá saber dos morangos ou do vinho.” Já Margarida, de 12 anos, sonha mais alto – quer ir para Nova Iorque. Abílio admite que é preciso tempo e idade para apreciar o campo. “Para descobrir que isto é bom é preciso ter ido para outro lado, não é?”

“PARA A PRÓXIMA LIGUE, ESPERAMOS POR SI”, DISSERAM A MÁRCIA QUANDO PERDEU O AVIÃO, EM VILA REAL

OS FILHOS DE ABÍLIO E MÁRCIA SONHAM SAIR DALI: ELE QUER IR PARA LISBOA, ELA PARA NOVA IORQUE

 ??  ?? Maria João e Afonso posam com os animais de estimação da casa – Che e Rosa – no campo de aveia
Maria João e Afonso posam com os animais de estimação da casa – Che e Rosa – no campo de aveia
 ??  ?? João, de 8 anos, anda de bicicleta; Manuel, de 11, bate a bola de básquete. À direita, Maria João e Afonso
João, de 8 anos, anda de bicicleta; Manuel, de 11, bate a bola de básquete. À direita, Maria João e Afonso
 ??  ?? Alexandre, 34 anos, tinha um trabalho de escritório normal, em Lisboa. Agora vive na Covilhã e trabalha no terreno
Alexandre, 34 anos, tinha um trabalho de escritório normal, em Lisboa. Agora vive na Covilhã e trabalha no terreno
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 ??  ?? Abílio e Márcia com os filhos ao pé do morangal – e com o gato de estimação: Amadeus
Abílio e Márcia com os filhos ao pé do morangal – e com o gato de estimação: Amadeus

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