SÁBADO

Viagens Som Sistema

De que forma é que funk brasileiro, trap electrónic­o, cúmbia, highlife e hiplife entram nas nossas vidas? E quais são as suas origens? Foi o que Branko quis saber, nos quatros cantos do mundo, em Club Atlas

- TEXTO ANDRÉ SANTOS

Numa cozinha cabem muitas cozinhas. Comidas de toda a parte do mundo cabem em muitos menus, alguns mais aventureir­os conseguem mesmo enfiar vários países num prato. O mesmo acontece com a música, numa altura em que viajar é mais fácil, em que os produtores têm pessoas (isto é, dealers) em diferentes zonas do globo que lhes arranjam discos para inventar o beat-dos-beats, é natural que uma canção beba de diferentes influência­s. Enquanto num restaurant­e podemos ter a ajuda da descrição do menu, ou do empregado, para guiar a viagem gastronómi­ca, numa música a descoberta de um código genético pode ser uma coisa bem mais complicada: principalm­ente agora, quando todo o tipo de sons e de influência­s invadem a música pop. Foi com a intenção de mapear alguma da música electrónic­a que se faz na actualidad­e que Branko (João Barbosa, que conhecemos dos Buraka Som Sistema) teve a ideia para Club Atlas, que

estreia na RTP2, na madrugada de segunda-feira, 19 de Fevereiro, para terça-feira, 20, e é, segundo o próprio, “um programa de viagens sobre música”. Se os programas de viagens sobre comida existem aos magotes, o que poderia impedir Branko de tentar a sua sorte com a música? De facto, é algo que o fascina: como músico/produtor, seja a solo, com os Buraka Som Sistema ou no universo Enchufada, João Barbosa faz da sua vida a procura de sons de todo o mundo e usa-os para criar a sua visão. Além disso, também lhe interessa que as pessoas saibam de onde vem a música que ouvem: “É fácil continuarm­os todos a fazer música sem informação cultural ligada a ela. Só que era mais interessan­te se pudéssemos falar na música, se pudéssemos contar histórias e perceber de onde as coisas vêm.” Branko sente que se fala pouco sobre música, de que, no fundo, toda a efervescên­cia que sente e vê à sua volta, seja dos amigos produtores ou daque- les que são só apaixonado­s por música e dão um passo mais além, não chega ao ouvinte menos preparado: “Como a música fica fechada nela própria e as pessoas da música falam umas com as outras, pressupõe-se que toda a gente sabe tudo, mas não. A ideia passava por romper com isso, quis fazer um programa pensado para uma audiência generalist­a de televisão. Mas, honestamen­te, não faço ideia de quem se vai sentar no sofá a ver isto.”

A ideia deu os primeiros passos em 2015, quando Branko lançou o álbum Atlas, projecto que tinha como base cinco viagens a cinco cidades diferentes, onde o produtor passava uma semana num estúdio a trabalhar com músicos/produtores locais. Na altura, João Retorta acompanhou-o nessas andanças e isso resultou numa websérie com o patrocínio da Red Bull chamada Atlas Unfolded.

Não ficou satisfeito. “Queria mais”, ir ao fundo na partilha das origens dos ritmos e das ideias tradiciona­is que entram na sua música – para si e porque se enquadrava também no universo dos Buraka Som Sistema/Enchufada.

Lançou a ideia aos seus companheir­os e começaram a cozinhar Club Atlas: “Em vez de estarmos a falar sobre música só com as pessoas na Internet, os geeks da música, como eu, queria contar essa história de uma forma relativame­nte abrangente e que fosse compreensí­vel para todas as pessoas. Da mesma forma que as pessoas se apaixonara­m pelo ceviche [que é uma especialid­ade gastronómi­ca peruana], queria que se apaixonass­em pela cúmbia electrónic­a de Lima.”

Lá está, a relação entre comida e música. Faz sentido. “No fundo, esse é o pontapé de saída. Pensei num programa de viagens sobre música. Foi a ideia que tive e que decidi levar avante.”

Como? Foi apresentar a ideia à RTP2, concorreu ao concurso anual de conteúdos que a estação tem, pôs-se a fazer figas e... ganhou o projecto. Era para avançar. Só a partir daí é que os bilhetes para estas

“DA MESMA FORMA QUE AS PESSOAS SE APAIXONARA­M PELO CEVICHE, QUERIA QUE SE APAIXONASS­EM PELA CÚMBIA ELECTRÓNIC­A DE LIMA”, DIZ O AUTOR DE CLUB ATLAS

viagens começaram a ser comprados, com início em Lisboa, cidade-natal de Branko e, segundo ele, um “episódio zero” para explicar o plano de intenções do programa, daí seguindo para Lima (Peru), Bombaim e Goa (Índia), Acra (Gana), Montreal (Canadá), São Paulo (Brasil) e Cidade da Praia e Mindelo (Cabo Verde). Oito episódios, com cerca de 30 minutos cada, onde Branko explora fenómenos musicais locais que, de alguma forma, se expandiram por todo o mundo e hoje se fazem sentir em muita da música electrónic­a, de dança, e não só, que se ouve. Branko e o realizador João Pedro Moreira passaram boa parte da primeira metade de 2017 a viajar. Branko quis controlar todo o processo, trabalhar com amigos e, através dos seus contactos e dos deles, conseguir chegar a pessoas nos locais que o ajudassem a produzir cada episódio. Já tinha uma direcção: “Conhecia as pessoas que queria que fossem os nossos produtores locais, sabia com que artistas queria falar e não queria estar a juntar mais pessoas e a complicar um processo que estava a ser bem direcciona­do e bastante directo. Foi importante ter à nossa volta uma equipa de gente que estivesse sempre perto e conseguiss­e fazer tudo.”

Assim, se no episódio lisboeta fala com Doutorado Pro, Slow J, Rodrigo Leão e Diogo Clemente, músicos de universos afastados, o que foi Branko à procura em locais tão distintos como Montreal e Acra? Ou porque é que há programas com duas cidades? Uma coisa de cada vez. Comece-se por esta última: “Tínhamos planeado ir à Cidade da Praia, mas quando lá fomos estava a acontecer o Carnaval no Mindelo e uma das pessoas com que queríamos falar era responsáve­l pela parte musical toda do Carnaval e, na altura, para nós, fez sentido juntar duas numa. O mesmo aconteceu em Bombaim, tivemos de ir fazer uma escapadinh­a a Goa”.

A escolha destes oito locais tem uma justificaç­ão simples: “São cidades que, a meu ver, têm uma produção musical única, fazem música que não se faz em mais lado algum do mundo. E queria cidades que não fossem óbvias, não queria ir à procura do hip-hop a Brooklyn, mas de sonoridade­s sobre as quais ainda não se abriu tanto a cortina. Queria perceber o passado, a história, os pontos de contacto, as tradições, as migrações que justificam estas cenas musicais electrónic­as a acontecer nestas cidades todas. Há sempre uma base, uma justificaç­ão, e essa é a história de cada episódio.

O desejo de perceber a origem de movimentos musicais únicos e locais e a forma como se expandiram para o mundo é, pois, o fio condutor que une Montreal e Acra em Club Atlas.

“Montreal tem uma energia única, junta o melhor da América do Norte com a Europa. Há uma cena de beats, que nasceu com uma noite chamada Piu Piu e foi daí que se começou a ouvir falar de nomes como Kaytranada, Lunice ou High Klassified, que nos últimos anos reinventar­am o hip-hop via electrónic­a. Toda esta ideia do trap como música de dança nasceu através dessa cena. E muitos desses músicos têm um passado no Haiti e quis perceber melhor essa herança cultural e o que está na origem de uma cena de beats tão fortes. Porque ninguém pôs lá uma bandeirinh­a, mas acaba por ser a capital do trap electrónic­o.

Em Acra, Branko foi à procura da cena do highlife, tentar perceber porque é que hoje em dia WizKid colabora com Drake ou porque é que um artista como Burna Boy assina pela Atlantic: “Toda essa cena da costa Oeste de África teve uma grande afirmação via Nigéria, mas tem um início muito forte em Acra. Era uma história que queria contar, de como a

“QUERIA PERCEBER A HISTÓRIA, AS TRADIÇÕES, AS MIGRAÇÕES QUE JUSTIFICAM ESTAS CENAS MUSICAIS ELECTRÓNIC­AS A ACONTECER NESTAS CIDADES”

música foi inovando, de como o highlife passou para o hiplife e depois o hiplife criou um instrument­al do dancehall, do house, do afrohouse, e a pop americana mergulhou de cabeça nisso.”

São viagens que Branko dificilmen­te vai esquecer, seja pela descoberta de música afro-peruana numa vila a duas horas de Lima, com base em sapateado e ritmos únicos, pelas suas conversas sobre hip-hop português com Rincon Sapiência, em São Paulo, ou pelo momento em que João Parahyba, também em São Paulo, lhe deu um workshop de cinco minutos sobre as razões pelas quais a bateria brasileira tem um som completame­nte diferente das outras. Situações normais em programas de viagens, enfim, e, se a cozinha de Branko é o estúdio, não há qualquer problema em dizer que Club Atlas é o seu “Não Aceitamos Reservas”. Mas será que Branko aguenta tanto o álcool como Anthony Bourdain?

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 ??  ?? Club Atlas estreia na RTP2 na madrugada de segunda, 19 de Fevereiro, para terça, às 0h45
Club Atlas estreia na RTP2 na madrugada de segunda, 19 de Fevereiro, para terça, às 0h45
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O primeiro episódio, uma espécie de “piloto” viaja por Lisboa, a cidade de Branko
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