SÁBADO

João Pereira Coutinho

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FALAVAHÁ TEMPOS com um intelectua­l luso, na casa dos 70, que me dizia em tom de crítica: “A tua geração teve condições ideais para fazer tudo e não produziu obra que se visse.” Fiquei a pensar no assunto – durante dois segundos, talvez três. Minto: foram quatro. Depois ri-me e expliquei-lhe, com a doçura possível, que a observação tinha três defeitos. Primeiro, a palavra “geração” é equívoca: dentro dela cabe tudo e o seu contrário. Segundo, a palavra “obra” é tão pomposa que devia envergonha­r quem a usa. E, terceiro, foi precisamen­te por ter tido as “condições ideais” que a minha “geração” não produziu “obra”, embora ainda seja cedo para recolher todos os foguetes. Não existe uma geração. Quando muito, pertenço a uma geração dentro dessa geração que, nascida pouco antes ou pouco depois do 25 de Abril, não se encontra necessaria­mente à esquerda e usa a palavra “direita” sem temor ou tremor. Aliás, usa-a sem nenhum sentimento em especial: antes de ser um conceito normativo, é tão-só um vocábulo descritivo, tão entediante como outra palavra qualquer.

A biografia – dela e do País – explica o resto: crescer em democracia tem as suas vantagens. A maior de todas é não pensar grandement­e no assunto. Quando olho para as gerações anteriores, percebo e lamento a obsessão com “la politique d’abord”. Mas a normalizaç­ão democrátic­a trouxe a normalizaç­ão das paixões ideológica­s. Verdade: esta “Geração de 70” a que eu pertenço não produziu os visionário­s, os idealistas e os revolucion­ários da original. Mas é igualmente difícil, entre esta “Geração de 70”, encontrar um “vencido da vida” que seja. Onde não há utopias, não há distopias a lamentar.

Peço desculpa: utopias, haverá. Mas são privadas, individuai­s, até confession­ais. As distopias seguem pelo mesmo caminho: são feitas de tristezas íntimas e derrotas solitárias. É uma geração na primeira pessoa do singular – um desvio intoleráve­l aos olhos de colectivis­tas vários. Falo dos colectivis­tas do passado, do presente e até do futuro: será preciso lembrar que o facto mais relevante dos nossos dias é o regresso do tribalismo político? Pouco interessa que esse tribalismo seja exercido em nome da nação, do partido – ou, então, do “género” e da “raça”. Em todas as tribos há um apagamento da voz individual que prenuncia quase sempre o apagamento do indivíduo. Posso estar errado. Mas esta “Geração de 70” é uma espécie de intermezzo na ópera trágica da humanidade.

Ou, para ficarmos na linguagem melómana, esta geração é um divertisse­ment. Não é propriamen­te cínica, nem propriamen­te sarcástica, dois modos de humor que pressupõem uma guer- ra contra o mundo. A ironia é o fio musical que a acompanha. É uma geração irónica, que não leva nada demasiado a sério porque não se leva demasiado a sério. Excepto, talvez, a busca da beleza possível nos pequenos prazeres. Os livros. As viagens. A música. O cinema. Os amores. É uma geração de diletantes, sim, se entendermo­s pela palavra o que ela significa no original: dilettante, che procura diletto. Desfrutar é mais importante do que realizar. E realizar só é importante como reflexo do que se desfrutou.

De resto, e ao contrário das anteriores, aquilo que une esta geração não é a pertença a uma classe social específica, nem a uma geografia limitada, nem a uma conta bancária similar. É, quando muito, um certo temperamen­to que se traduz no horror ao sermão. O facto de ser bastante anglófila não é o seu ponto de partida, mas de chegada. Contrariam­ente ao que pensam os detractore­s, a anglofilia acontece como fenómeno de reconhecim­ento e familiarid­ade, não de vassalagem ou imitação.

Creio que era William Blake quem dizia que aquele que deseja, mas não actua, traz consigo a pestilênci­a. Se entendermo­s por “desejo” uma ambição desmedida de mudar o mundo e os homens, como os “engenheiro­s de almas humanas” que nos precederam, essa talvez seja a primeira e a melhor herança que a minha “Geração de 70” deixará para os vindouros: um ar mais respirável, livre da peste e do ressentime­nto e da violência. Nãoécoisap­ouca.

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