Fomos conhecer a nova Taberna Fina de André Magalhães
O mais célebre taberneiro da Rua das Flores, em Lisboa, levou até ao Largo de Camões uma versão extra-refinada da sua cozinha, servida em menu degustação de 10 momentos. Nesta Taberna Fina não se escolhe, confia-se. Em André Magalhães, claro está
Até há meia dúzia de anos, falar-se de uma hipotética Taberna Fina seria motivo suficiente para ver franzir as sobrancelhas de quem ouvisse. Taberna? Fina? De todos os adjectivos passíveis de aplicar a uma taberna, fina talvez fosse o mais improvável. Contraditório, até, se pensarmos nas tradicionais tabernas lisboetas, nascidas pelas mãos dos carvoeiros – muitos deles galegos – para entreter o estômago e matar a sede da clientela.
O que mudou, então, em meia dúzia de anos? Muita coisa em geral e uma em particular: em Março de 2012 nasceu, na Rua das Flores, ao Chiado, uma taberna contemporânea que não só veio
honrar a memória das suas congéneres de outros tempos, como veio provar que é possível actualizar e refinar a cozinha que nelas se praticava. A Taberna da Rua das Flores foi a taberna fina antes da Taberna Fina. E aconteceu quase por acaso. André Magalhães estivera os sete anos anteriores à frente do Clube de Jornalistas, numa época em que, pesem as boas críticas, a cidade ainda não era meiga para quem apostava numa cozinha autoral, como a dele. “Apanhei uma tareia bem grande. No fim, tive de vender a casa para pagar as dívidas”, recorda hoje.
Certo dia, ao passar pelo Chiado, viu descarregarem o antigo armazém da farmácia da vizinha Rua do Alecrim. André sentia ainda os efeitos da ressaca do negócio anterior: “Não tinha pressa nenhuma para abrir um restaurante, estava até a pensar tirar um ano sabático”, garante. Mas o espaço intrigou-o. E o recheio ainda mais: o mosaico hidráulico, as madeiras e o antigo laboratório, ao fundo. A dona da farmácia, que ele até conhecia, pô-lo em contacto com o senhorio e a ideia de parar por uns tempos esfumou-se num instante. “Não tinha dinheiro, por isso pedi seis meses de carência de renda enquanto fazia as obras. Passei esses seis meses fechado no espaço a construir os móveis e a pensar no que seria a Taberna”, lembra. Entretanto, juntaram-se ao projecto dois sócios: Adriano Jordão, que já trabalhara com André no Clube de Jornalistas e Bárbara Matos, do bar-conserveira Sol e Pesca.
O investimento inicial foi mínimo — abriram a cozinhar com dois Camping Gaz e apenas com um par de frigoríficos domésticos para armazenar matéria-prima. Problema: abriram a servir 60 refeições por dia num restaurante com pouco mais de 20 lugares. André não mais largaria a sua boina de taberneiro. “Assim, um bocadinho sem saber como, criámos um monstro”, reconhece hoje. Foi esse monstro que apaixonou François Blot, o francês responsável pelo hotel-galeria de arte Le Consulat. Adepto e cliente da Taberna da Rua das Flores, François sofria, como todos os seus adeptos e clientes, com a dificuldade de arranjar mesa — não se fazem reservas e a fila de interessados começa a formar-se bem cedo. Decidiu, assim, adaptar à sua realidade o velho ditado de Maomé
EM 2012, ANDRÉ MAGALHÃES ABRIU A TABERNA DA RUA DAS FLORES, UMA TABERNA CONTEMPORÂNEA
e da montanha: se François não vai à Taberna (porque não tem mesa), a Taberna vai até François. Ou melhor, até ao hotel de François. O convite surgiu em excelente altura. “Tínhamos um espaço para a Taberna Fina na Rua das Flores. Só que estávamos com muitas dificuldades de licenciamento, porque havia uma capela na cozinha”, conta André Magalhães, que aceitou o desafio de François e adaptou aquilo que queria fazer à filosofia do Le Consulat. O restaurante abriu portas em meados de Dezembro.
Os princípios são os mesmos da Taberna primordial, muda apenas a abordagem, que é de fine dining. Há um menu com 10 momentos (€56, sem
vinhos), pensado com a mesma lógica dos menus kaiseki japoneses, em que nada surge por acaso. “Os snacks têm ingredientes que activam a salivação. O pão surge depois, porque as amilases abrem o apetite”, explica André Magalhães, que tem o apoio, na cozinha, do chef residente Guilherme Spalk. A palavra-chave é flexibilidade: flexibilidade para mudar o menu, diária ou semanalmente; flexibilidade para evitar desperdícios; flexibilidade para pensar fora da caixa e aproveitar produtos como os surpreendentes figos do mar, trazidos recentemente pelo seu fornecedor de mexilhões. “São uma espécie invasora que cobre as cordas onde os mexilhões se fixam e deixam-nos sem nutrientes”, ensina o chef. O nome português deve-se à forma, que se assemelha à do figo. Quando se abre, esguicha água – o que explica o nome por que é conhecido em inglês, sea squirt (esguicho de mar). Por dentro tem uma polpa alaranjada com um sabor marítimo muito pronunciado, a
O MENU ESTÁ EM CONSTANTE MUDANÇA. A SAZONALIDADE, O CONTACTO COM OS FORNECEDORES E A VONTADE DE MOSTRAR PRODUTOS NOVOS A ISSO OBRIGAM
lembrar ouriço-do-mar. Serviu-os com polvo e moreia – terá sido a primeira vez que se comeu figo do mar num restaurante em Portugal. Quem for à Taberna Fina tanto pode apanhá-los como não. O menu de degustação está em constante mutação. “Imprimimos sempre a data para se perceber que há uma temporalidade limitada”, afirma o chef. A sazonalidade, o contacto directo com os fornecedores e a vontade de dar a provar produtos novos, invulgares, a isso o obrigam. “Se um pescador me arranja oito barbos, eu tenho de os partilhar com os meus clientes, mesmo que isso implique servi-los apenas nessa noite.” Palavra de taberneiro.