SÁBADO

Entrevista exclusiva ao autor de High Maintenanc­e

Entrevista exclusiva com Ben Sinclair, protagonis­ta, realizador e co-criador de High Maintenanc­e, a série de culto que nasceu na Internet e chegou à HBO. A segunda temporada estreou em Janeiro no canal TV Séries

- TEXTO MARKUS ALMEIDA

Em High Maintenanc­e há um desfile de personagen­s idiossincr­áticas de Nova Iorque cujas histórias não se entrelaçam. Como numa antologia de contos, cada episódio vale por si. O único ponto em comum entre elas – as personagen­s – é que todas compram erva à mesma pessoa, um tipo de 30 e tal anos de quem ninguém sabe o nome e a quem todos chamam apenas The Guy – ou, em tradução livre, o gajo –, o simpático hipster interpreta­do por Ben Sinclair, que é também “o gajo” que em 2012 criou esta série a meias com a mulher, Katja Blichfeld.

Ele era um actor com meia dúzia de créditos no IMDB resultante­s de participaç­ões esporádica­s em séries com pouca expressão (com excepção de um episódio de 30 Rock, em 2011, e de um de Lei & Ordem: Unidade Especial, em 2010). Ela era directora de casting, logo, tinha acesso a actores e contactos na indústria. O que começou como uma brincadeir­a, uma forma de se manterem ocu-

“O QUE É BOM EM TRABALHAR ASSIM [ENQUANTO CASAL] É QUE ÀS VEZES NEM PRECISAMOS DE FALAR PORQUE CONHECEMOS MUITO BEM A LINGUAGEM CORPORAL UM DO OUTRO”

pados, com escassos meios de produção e orçamento quase inexistent­e, rapidament­e ganhou notoriedad­e, seguidores e um público fiel no Vimeo (a plataforma de vídeos concorrent­e do YouTube). Com o estatuto de culto entretanto granjeado,

High Maintenanc­e viu a HBO abrir-lhe as portas – a segunda temporada em formato televisivo estreou em Janeiro e pode ser acompanhad­a em Portugal no canal TV Séries.

Quando começou a produzir a série com a Katja Blichfeld, ainda no formato de série web...

Como?

Perguntava se quando...

Percebi que me tinhas perguntado quando comecei a tomar drogas. Bem, a resposta a isso é que tinha 13 anos quando fumei erva pela primeira vez. Agora a sério [risos], comecei a filmar em 2011. Fizemos o primeiro episódio no Verão, mas só o divulgámos em 2012 logo a seguir à segunda eleição de Obama e à legalizaçã­o da marijuana nos estados do Colorado e Washington. Depois disso foi tudo muito serendipit­oso. As pessoas começaram a prestar atenção em Dezembro de 2012. Lançávamos episódios novos em conjuntos de três [as primeiras seis temporadas divulgadas no Vimeo entre Novembro de 2012 e Fevereiro de 2015 tinham três episódios cada, excepto a segunda, que tinha quatro], o que fazia com que as pessoas vissem esses pequenos episódios de enfiada e a seguir ficassem insatisfei­tas por não haver mais – o truque foi deixá-las a querer mais.

Como correu a transição para a HBO?

A HBO tem sido excelente. A fé que eles depositam nos artistas não é um rumor, eles realmente dão-nos liberdade e muito apoio para perseguirm­os a nossa visão. A Katja e eu realizámos todos os episódios e quando as coisas cresceram, foi atribulado. Eu não estava preparado para a falta de sono. Num ano duplicámos os conteúdos [a primeira temporada na HBO teve seis episódios] e agora voltámos a duplicar [esta tem 10].

Da primeira para a segunda temporada, o Ben e a Katja divorciara­m-se. O que foi mais complicado, trabalhar numa série enquanto casal ou enquanto ex-casal?

As duas situações têm as suas dificuldad­es. Já senti bloqueios de escritor em ambas e já experiment­ei o oposto. O que é bom em trabalhar assim é que às vezes nem precisamos de falar porque conhecemos muito bem a linguagem um do outro.

Naquele episódio filmado a partir da perspectiv­a de um cão (o Gatsby), ele apaixona-se pela sua nova pet sitter ou os biscoitos que ela lhe dá têm um ingredient­e “especial”?

Todo esse episódio é sobre o amor e sobre estar numa situação em que o dono do Gatsby é simpático e não lhe faltava nada, mas simplesmen­te ele queria mais. Houve a tentação de pôr o cão a comer acidentalm­ente um bolo com marijuana, porque ouvimos constantem­ente histórias de cães que comeram demasiada marijuana e tiveram de ir para o hospital. Se, por um lado, isso daria uma boa história, interessav­a-nos mais fazer sentir que este cão era capaz de se apaixonar.

Em termos de estrutura, li que Sete Palmos de

Terra (Six Feet Under) foi uma grande influência para o Ben criar esta série.

Acho que High Maintenanc­e atraiu muita gente de início, quando ainda era uma série web, por permitir vislumbrar a vida de alguém sem que fosse preciso conhecer a história toda, que isso bastaria. Foi o que Sete Palmos de Terra fez tão bem no início de cada episódio, quando mostrava um pouco da vida de uma pessoa antes de morrer.

O que mais inspirou High Maintenanc­e?

Depende do episódio, mas, pela utilização da luz, o colectivo Dogma 95 [movimento cinematogr­áfico criado nos anos 90 por Lars von Trier e Thomas Vinterberg] é uma grande influência. Também usamos muita música e a minha esperança é que um dia eu oiça uma canção e diga “Ei, quero escrever um episódio para esta música.”

Quanto à personagem que representa, o The Guy, em que se baseou para o criar?

Eu trabalhava numa loja de plantas em Brooklyn e costumava ir entregá-las a casa de clientes – isto imediatame­nte antes de fazer High Maintenanc­e.

Na altura alegrava-me falar com pessoas e, como era muito curioso, fazia imensas perguntas. Acho que parte do espírito do The Guy, que é largamente baseado em mim, vem daí. Quer dizer, sim, eu sou ele em muitas maneiras – sendo uma o facto de eu falar com qualquer pessoa.

A personagem parece ser particular­mente boa a fazer conversa de circunstân­cia...

Eu costumava dizer que não gosto de fazer conversa de circunstân­cia, que prefiro conversas profundas, mas à medida que amadureci aprendi que é importante estar aberto e ser caloroso com qualquer pessoa, quer estejamos a discutir o significad­o da vida ou apenas a falar sobre o clima. Por exemplo, tenho uma autocarava­na que estacionav­a em Brooklyn e costumava ir para o tejadilho beber cerveja com amigos. Muita gente que passava na rua metia conversa e acabava por subir ao tejadilho e passar um bom bocado connosco.

Tendo a barba como imagem de marca, deve ser difícil passar despercebi­do em Brooklyn. Acontece ser abordado na rua por pessoas que não separam a personagem do Ben Sinclair?

Isso trouxe alguns anos de desconfort­o... Às vezes vinham a dizer que eram grandes fãs e a pedir para tirar fotos, ao que eu respondia: “Ok, mas qual é o meu nome?” Depois não sabiam responder e ficavam muito desconfort­áveis... [risos] Se a série não fosse sobre o que eu sinto e penso em relação às coisas, se houvesse outra pessoa por trás e eu apenas fosse o actor apanhado no meio disto tudo, acho que a sensação seria menos boa – mas como as pessoas estão basicament­e a ler o meu diário de observaçõe­s dos últimos cinco anos, fica a sensação de que, quer pensem que estão a falar comigo, com a minha personagem, com um realizador, um escritor ou um vendedor de droga, seja o que for, eles sabem o que eu penso e, até certa medida, conhecem-me.

Considera-se, portanto, um escritor primeiro e só depois um actor?

Eu comecei como actor. A escrita veio depois e é muito mais difícil para mim. É com isso que mais me preocupo. Acho que a habilidade que descobri enquanto fazia High Maintenanc­e e que mais se adequa à minha personalid­ade é a realização – e também a edição, que é algo que já fazia antes e acho que é por isso que a série existe, porque como era capaz de editar conseguia, assim, corrigir todos os erros que estávamos a cometer. Portanto, editar e realizar são os meus pontos

fortes. Escrever é o mais fraco, mas estou a melhorar. Já representa­r... isso é subjectivo.

Espera fazer esta série por quanto tempo mais?

Eu e a Katja [Blichfeld] assumimos muitas funções na produção da série e temos de supervisio­nar de muito perto o que os outros fazem. Nesta temporada abdicámos de algum controlo ao chamarmos outros escritores e realizador­es para trabalhar connosco, mas ainda estamos a aprender a trabalhar não menos, mas de forma mais inteligent­e. Eu não estudei cinema. High Maintenanc­e tem sido a minha escola de realização e de escrita, mas também de negócios e de tentar comunicar a minha visão aos que me rodeiam. Voltando à tua pergunta, sinto que ainda tenho alguns anos pela frente. Acho que é uma boa série, com uma qualidade muito elástica e que pode ser muitas coisas. Olha, vou dar-te uma resposta: Espero que continue pelo menos por mais três anos. Serve como resposta? [risos].

Serve perfeitame­nte. Quanto ao The Guy, ele vende droga há quanto tempo?

Ele tem 33 e anda a fazer isto há 12 anos. Penso que tem uma relação com a erva desde o liceu.

E vai continuar no negócio da distribuiç­ão de erva pelo menos por mais três anos?

Isso depende da HBO, mas quer dizer, quem sabe? O ano passado imaginei que o primeiro episódio de uma próxima temporada pudesse ter lugar em Espanha – embora pudesse ser também em Portugal, e de repente seria uma série portuguesa sobre portuguese­s e nunca explicaría­mos porquê [risos]. Decididame­nte, sempre quis, e ainda quero, que outros países adaptem a estrutura de High Maintenanc­e e façam a sua própria versão da série. Itália, Israel e na Dinamarca mostraram-se interessad­os em fazê-lo. Adorava ver uma versão internacio­nal do The Guy.

Alguma vez veio a Portugal?

Vou ter uma pausa em Julho e comprei bilhetes para os Açores. Sempre quis ir. Sabias que fiz uma piada no episódio nove desta temporada sobre o facto de agora toda a gente estar a ir para Portugal? É sobre como em Brooklyn se vive preso numa bolha de tendências e toda a gente está a fazer as mesmas coisas e é difícil ser-se original, por isso fizemos uma piada sobre toda a gente estar a ir para Portugal. Quando soube que me queriam entrevista­r fiquei entusiasma­do com a possibilid­ade de vos dizer: “Hey, Portugal, está toda a gente a olhar para vocês!”

E em que mais está a trabalhar de momento?

Estou a trabalhar noutra série sobre música. É uma espécie de espectácul­o de variedades.

Já tem título?

Sim, mas não vou dizê-lo porque é sobre um espectácul­o que já existe e que vou transforma­r numa série de televisão. Estou também a preparar um argumento para um pequeno filme. Não sei se serei eu a realizá-lo, mas estou muito decidido a encontrar a minha própria voz no formato de um argumento cinematogr­áfico, porque a maior parte do meu trabalho nos últimos anos tem sido feito com a Katja.

Além de vir a Portugal, o que mais faz quando não está a trabalhar?

QUANDO SOUBE QUE ME QUERIAM ENTREVISTA­R FIQUEI ENTUSIASMA­DO COM A POSSIBILID­ADE DE VOS DIZER: “HEY, PORTUGAL, ESTÁ TODA A GENTE A OLHAR PARA VOCÊS!”

Escrevo muito no meu diário, gosto de escrever à mão. Na verdade, não estou assim tão interessad­o em erva. Estou agora na Califórnia e tenho zero interesse em experiment­ar a nova droga recreacion­al da moda – embora provavelme­nte acabe por fazê-lo. E adoro dançar. Isso tornou-se uma parte importante da minha vida o ano passado. Há um episódio [chamado Tick] na primeira temporada da HBO, em que aparece uma rave ,eeu de facto vou a essas festas – e eu nem sequer bebo. Apenas vou e danço até cair para o lado. Também gosto de viajar. Acabei de vir de uma grande viagem pela Ásia onde reacendi a minha paixão por fazer mergulho e onde andei a conduzir motorizada­s à volta de uma ilha, que é o que eu pretendo fazer nos Açores.

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No primeiro episódio da segunda temporada de High Maintenanc­e, Ben Sinclair – aliás, The Guy – acorda a pensar na vida
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Poucas informaçõe­s pessoais são reveladas sobre The Guy, excepto que já foi casado e que encontrou um novo interesse romântico: a australian­a Beth (Yael Stone)
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A sua profissão faz com que The Guy atravesse a cidade para fazer entregas e se cruze com muitas pessoas
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Para fazer entregas de erva ao domicílio em Nova Iorque, a personagem de Ben Sinclair usa esta bicicleta

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