A versão portuguesa do último livro de Margaret Atwood (autora de The Handmaid’s Tale, transformado em série) já chegou às livrarias, com o título Semente de Bruxa
A mais conhecida autora canadiana recria um clássico do maior autor britânico. Margaret Atwood pegou em A Tempestade de Shakespeare e criou Semente de Bruxa. A ironia, a tragédia e o humor andam de mãos dadas
SEMENTE DE BRUXA, DE 2016, TEM AGORA A SUA VERSÃO PORTUGUESA. ATWOOD RECRIA A TEMPESTADE DE SHAKESPEARE
Oleitor entra numa livraria, espreita a zona das novidades e repara que em todos os livros (ou quase todos) o título surge maior do que o nome do autor – geralmente remetido para a parte superior. Pára ao pé de um com capa vermelha e lê, em letras brancas e com um ligeiro relevo, Margaret Atwood. Mais a baixo, e num tamanho menor, está o título: Semente de Bruxa. Há muito que o nome da escritora canadiana surge em destaque, reorientando o design gráfico, sobretudo desde que História de
uma Serva (de 1985) foi adaptado com um sucesso estrondoso pela Netflix. Desde então, Atwood tem estado nas notícias quase todas as semanas, quer seja para comentar a série (da qual não recebe nada, esclareceu em entrevista ao The Guardian – ganha, sim, com o aumento de vendas dos livros), para falar sobre os prémios que o elenco tem recebido ou até para ser atacada por ter defendido que um colega e amigo acusado de assédio deve ser julgado de forma transparente e não pela opinião pública.
Ei-la, de novo, desta vez por causa de um livro que integra a colecção Vintage’s Hogarth Shakespeare, que convida escritores a reinterpretar clássicos do dramaturgo inglês (precederam-lhe Jeanette Winterson, Howard Jacobson e Anne Tyler – cujo volume inclui ainda textos de Gillian Flynn, Tracy Chevalier, Jo Nesbo e Edward St Aubyn).
Semente de Bruxa, publicado originalmente em 2016, chegou agora a Portugal e conta a história de Felix, um encenador que se vê forçado a abandonar o festival de teatro que dirige, o de Makeshiweg, a meio da encenação de A Tempestade de Shakespeare. Traído pelo assistente, refugia-se no campo, numa casa que não era habitada (ou tinha sequer condições para tal), escondida do mundo. Recria-se como se fosse uma personagem, ao mesmo tempo que tenta cohabitar com outra tragédia: a perda da filha e da mulher. Depois de 12 anos de isolamento toma a decisão de encontrar um trabalho. Atwood descreve com algum detalhe a compra de um computador e a instalação à rede através de um modem e um cabo Ethernet. No admirável mundo novo, Felix, agora reinventado como Senhor Duke, encontra algumas ofertas de emprego e acaba por se propor para leccionar no estabelecimento prisional de Fletcher. Em pouco tempo, e contornando a disciplina que tem para ensinar, está a encenar peças de Shakespeare com um grupo de proscritos aos quais garante uma única liberdade: dizerem os palavrões que estão nas falas das personagens criadas pelo poeta inglês. “Shakespeare tem qualquer coisa para toda a gente, pois era esse o seu público: toda a gente, do ponto mais alto da escala social ao mais baixo e vice-versa. (...) Mas trabalhamos como uma equipa. Cada homem terá um papel essencial a desempenhar, e, se alguém tiver dificuldades, deverá ser apoiado pelos colegas de equipa, porque a nossa peça só será tão forte quanto o elo mais fraco: se um de nós falhar, falhamos todos em conjunto”, diz. a certa altura, o encenador.
Todos os anos o grupo treina uma peça diferente, até ao dia em que Felix percebe que o estabelecimento vai ser visitado por dois ministros, Anthony e Sal, os responsáveis pela sua saída forçada do festival. A partir dessa altura, a vingança toma-lhe o corpo e Shakespeare a alma. Felix, que no fundo é Próspero, o pai no centro de A Tempestade, cria a sua própria agitação atmosférica (que também é moral e de espírito), para enterrar os demónios do passado – e, por fim, enterrar a filha (que se chama Miranda, tal como a de Próspero).