Genética
O estudo dos genes permite saber quais são os melhores alimentos para cada pessoa ou os exercícios físicos mais indicados. Novas terapias curam doenças raras, retardam o envelhecimento e eliminam tipos de cancro. A manipulação genética auspicia uma nova e
Os mais recentes avanços e as aplicações práticas
erwin e Nicole Almeida apaixonaram-se pelo filho, Matteo Lucas, ainda antes de ele nascer. “CostuDmava
falar com a barriga da Nicole e acariciá-la, à espera que o Matteo respondesse com um pontapé”, diz à SÁBADO, por videoconferência, Derwin Almeida. Como a mulher, é um cubano em Miami, EUA, com antepassados ibéricos. Uma herança genética na aparência inofensiva. Só na aparência. Saudáveis, jamais imaginaram que Matteo pudesse nascer doente. Nem quando a irmã de Derwin, grávida de cinco meses, lhe disse que era portadora de um defeito no gene SMN1, potencial causador de Atrofia Muscular Espinhal (AME), uma doença rara que afecta os neurónios motores – os bebés nascem flácidos, incapazes de se sentarem sozinhos, andarem, comerem e, finalmente, de respirarem. Morrem quase todos antes dos 2 anos. No caso deles, era preciso que Nicole também fosse portadora para que a descendência tivesse um risco de 25% de nascer com a patologia. Decidiram avançar com a gravidez. Nos primeiros meses de gestação, Nicole soube que também era portadora da mutação. “Ficámos nervosos, mas toda a gente nos dizia para sermos optimistas. Havia 75% de hipóteses de tudo correr bem”, lembra Nicole. A má notícia chegou ao quarto mês: Matteo padecia do tipo 1 de AME, o mais grave. Morreria antes do primeiro aniversário. “Foi um inferno. Estávamos a chorar e o médico começou a explicar-nos os procedimentos para o aborto. Mas desistir não era opção. Decidimos ir até ao fim e proporcionar-lhe o melhor ano de vida possível, levá-lo à praia e à Disneyland… Queríamos que ele experimentasse a felicidade, mesmo sabendo que tudo acabaria em dor”, diz a mãe. A 10 de Julho de 2015, Nicole deu à luz uma criança rara – 1 em cada 8.000 nascimentos tem AME –, condenada à morte pela biologia.
19 de Março de 2018: a meio da videochamada, uma criança entra em campo. Salta e corre à volta da mesa.
“Como te llamas?”, pergunta Nicole. “Matteo Almeida!”, responde o miúdo. A meses de completar 3 anos, Matteo está vivo. E senta-se, anda, corre, salta, trepa e come sozinho. Já foi à Disney e à praia. “Está a atingir todas as etapas de desenvolvimento e não tem qualquer limitação. O pediatra diz que não saberia que ele nasceu com AME se não lhe tivéssemos contado”, diz Derwin. Orgulhoso, mostra vídeos do filho a jogar básquete e num escorrega. Há não muito tempo haveria a tentação de usar a palavra “milagre” para descrever o que aconteceu. Hoje, chama-se terapia génica.
Ouvido o diagnóstico, Nicole consumiu toda a informação disponível na Internet, contactou associações e mães de crianças com AME. Por uma delas soube de um ensaio que ia ser realizado no Nationwide Children’s Hospital, em Columbus, Ohio, liderado pelo neurologista Jerry Mendell. Em termos muito simples, era isto: um vírus manipulado para conter um gene terapêutico seria injectado no bebé e transportaria a carga ao sistema nervoso central, passando a antes intransponível barreira hematoencefálica. Seria reposta a produção de uma proteína, o neurónio motor
(SMN), que alimenta os neurónios espinhais ao longo da vida. Matteo foi inoculado aos 27 dias de vida.
A terapia fora testada em ratinhos, com resultados positivos. Ninguém lhes tinha falado de cura. Os Almeida foram seguindo cada movimento do bebé. Respirava bem, comia bem, mexia-se normalmente, mas a cada queda ou gesto fora do comum os alarmes soavam: “Estava paranóica. Se caísse a gatinhar, se enrolasse a língua, se não segurasse bem o pescoço... ficava com medo que fosse a doença a manifestar-se”, confessa Nicole. Uma noite, Matteo ergueu-se e deu os primeiros passos. “Estávamos no sofá a ver um filme. Nem dissemos nada... Abraçámo-nos um ao outro e desatámos a chorar.”
Nas outras 14 crianças testadas, os efeitos também são positivos: estão todas vivas para lá da esperança inicial, 11 sentam-se, comem e falam sem ajuda e só oito precisam de máscara para respirar. Matteo é o que está melhor porque foi o que recebeu o tratamento mais cedo. “É provavelmente o maior sucesso de sempre ao nível das doenças do cérebro”, sentencia Luís Pereira de Almeida, investigador principal do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra. Levou mais investigadores a usar terapias génicas administradas por via intravenosa ou na espinha para tratar doenças neurológicas e musculares raras na infância e distúrbios comuns em adultos, como a doença de Parkinson. “Isto não é uma evolução modesta. É uma mudança revolucionária. É o que nós sempre esperámos que um tratamento genético pudesse ser”, resumiu James Wilson, da Universidade da Pennsylvania, à revista Science. Ninguém sabe até quando o tratamento vai funcionar: os efeitos podem perder-se com a reprodução celular e há o risco do aparecimento de cancro no fígado. “O Matteo é um ratinho de laboratório através do qual os cientistas estão a aprender”, reconhece Derwin. Mas não há qualquer sinal de regressão. “Acreditamos que somos os pais da primeira criança com AME totalmente curada.”
Estes resultados juntam-se a uma lista de novas revelações extraordinárias no campo da genética. Terapias génicas para um tipo de leucemia e para uma forma hereditária de cegueira foram aprovadas nos EUA; na Europa, um novo tratamento já autorizado combate uma doença imunitária potencialmente letal, fármacos de precisão aumentam a sobrevida a diversos tipos de cancro e vírus manipulados activam a produção dos factores 8 e 9 em doentes hemofílicos. Há estudos que galopam para pôr fim a doenças cardiovasculares hereditárias e há avanços no campo da saúde mental, da esquizofrenia e do autismo. Hoje, potencialmente, não há doenças incuráveis porque, compreendidas as suas falhas genéticas, será passível corrigi-las. Pode demorar anos, décadas. Pode acontecer que as esperanças caiam por terra quando se conhecerem efeitos a longo prazo. Mas, para já, a genética entra no quotidiano: testes indicam-nos os alimentos mais indicados para cada organismo e quais são os exercícios físicos mais adequados a cada um. Geram receitas contra a queda de cabelo, indicam os cosméticos que retardam o enrugamento da pele. Não é ficção. O Homem, que sempre procurou no exterior as explicações para o mundo, voltou-se para dentro. Eis o que já encontrou e poderá encontrar.
Tratar de problemas do cérebro
A última década de Luís Pereira de Almeida, investigador principal do CNC, foi dedicada ao estudo aprofundado da doença de Machado-Joseph – uma patologia genética rara e hereditária que provoca a degeneração contínua do sistema nervoso, a perda de equilíbrio e de coordenação muscular. Nos Açores, onde tem uma grande prevalência, chamam-lhe a “doença do tropeção”. “Surge após os 30 anos e, progressivamente, os doentes acabam por ficar numa cadeira de rodas, começam a ter dificuldade em todos os movimentos voluntários, na articulação da voz e na deglutição”, explica Pereira de Almeida. Em termos simples, existe devido à mutação de um gene que provoca a produção excessiva de uma proteína. A equipa do CNC engendrou estratégias para combater a patologia. Duas aguardam aprovação e financiamento de ensaios clínicos que poderão resultar em sucessos semelhantes ao alcançado no Ohio com o tratamento para a AME. “Numa delas, procuramos impedir que a proteína seja produzida através do silenciamento do gene.” A segunda terapia está relacionada com o uso de um fármaco. Os investigadores descobriram que a restrição calórica produzia melhorias nos roedores testados, por induzir à reactivação da autofagia, um mecanismo endógeno que limpa os agregados de proteínas nas células, conduzindo, neste caso, a um alívio da enfermidade. “Como muitos dos doentes com Machado-Joseph ficam demasiado magros
NINGUÉM SABE SE OS AVANÇOS NA ATROFIA MUSCULAR ESPINHAL SE VÃO PERDER COM A REPRODUÇÃO CELULAR
para abdicarem de calorias, a droga afigura-se como a única opção para obter os efeitos pretendidos”, diz o investigador. A terceira via terapêutica envolve células estaminais.
O que sair daqui poderá ser aplicado em distúrbios neurodegenerativos mais prevalentes, como Parkinson, Alzheimer ou a doença de Huntington. “Achamos que é uma boa estratégia investir nas doenças raras com uma causa genética bem definida, como a de Machado-Joseph, do que nas mais prevalentes, como Parkinson, que têm causas multifactoriais”, explica Pereira de Almeida. “Há mais probabilidades de sermos bem-sucedidos no desenvolvimento de uma terapia, que depois poderá ser aplicada no tratamento de Alzheimer ou de Parkinson.”
A indústria tem conseguido importantes avanços na compreensão das doenças do cére- bro. Uma área em explosão é a respeitante às doenças neuropsiquiátricas. “Hoje sabemos que muitas delas têm causas genéticas e têm-se vindo a associar a uma série de alterações em genes que, embora não as causando directamente, podem predispor as pessoas a esse tipo de doenças”, diz o chefe do CNC, que tem uma linha de investigação nesta área.
“A área da saúde mental é mais complexa e é menos frequente encontrar uma causa genética que explique tudo. Tem a ver com a interacção de vários genes, o que torna mais difícil avaliar a importância de cada um, e com factores ambientais”, alerta Jorge Saraiva, director do Departamento Pediátrico e do Serviço de Genética Médica do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. “A maioria das esquizofrenias, por exemplo, não tem uma causa genética bem identificada e resulta de múltiplos genes, mas sabe-se que 1% dos adultos com esquizofrenia tem uma pequena deleção num cromossoma, embora a maioria dos que têm essa deleção não desenvolva a doença. Já no autismo, sabe-se que não há causa genética, mas uma predisposição. São factores genéticos que ainda não foram identificados.”
E são muitos os que ainda não se conhecem. Veja-se as doenças raras; se, por um lado, quem sofre da síndroma de Hutchinson-Gilford (doença de envelhecimento acelerado representada no filme Benjamin Button) conheceu nos últimos anos tratamentos que lhes aumentaram três anos de esperança de vida, por outro, há doenças que permanecem envoltas em mistério. “Perante o entusiasmo causado pela edição genética, lembro o que se passou há 20 anos, quando foi identificado o gene responsável pela fibrose quística, a mais frequente entre as doenças raras. Nessa altura, falou-se muito da cura. Já se passaram mais de 20 anos e nada aconteceu”, diz Jorge Saraiva.
Escolher como são os filhos que temos
A discussão estalou em Agosto de 2017 quando, recorrendo à técnica de edição de genoma CRISPR (ver caixa), cientistas norte-americanos divulgaram na Nature os resultados da primeira intervenção genética num embrião realizada no Ocidente (já tinham sido feitos três na China). O consórcio reparou uma mutação genética responsável pela cardiomiopatia hipertrófica, uma doença cardíaca hereditária causadora de morte súbita – que vitimou, por exemplo, em 2004, sabe-se hoje, o jogador do Benfica Miklós Féher. A descoberta devia ter suscitado apenas esperança; mas também despertou medo. Vai ser possível no futuro eliminar todas as doenças logo no feto? Escolher a altura, a cor dos olhos e do cabelo e até o grau de inteligência de cada ser humano? Um ditador poderá “fabricar” um exército de super-homens?
A questão não preocupa em demasia Alberto Barros, de 61 anos, professor catedrático de Genética na Universidade do Porto e especialista em Medicina de Reprodução. Não só não crê que a manipulação genética consiga proximamente pôr fim a todas
FOI UMA DOENÇA CARDÍACA HEREDITÁRIA QUE VITIMOU EM 2004 O JOGADOR DO BENFICA MIKLÓS FEHÉR
as doenças hereditárias como, muito menos, na definição das características dos bebés: “Há muito folclore informativo em redor deste assunto”, diz. “Quando falamos de altura ou inteligência, estamos a falar de características com uma base multifactorial – poligénica e ambiental –, que nunca vamos controlar em absoluto.” Já para Maria do Carmo Fonseca, presidente do Instituto de Medicina Molecular (IMM) João Lobo Antunes, temos de nos preparar mesmo para utilizações menos éticas das ferramentas de edição genética: “A escolha dos genes de um bebé vai ser inevitável... Vai ser complexo, caro, vão aparecer leis que a vão proibir, talvez vá ter de ser feita às escondidas. Mas estou certa de que vão surgir níveis regulatórios que impeçam que se faça de forma massificada.” O húngaro Bertalan Meskó, um “médico futurista”, diz ter a certeza do surgimento desse cenário: “O meu medo é que acontecerá quando eu puder usar o teste genético para o meu bebé que ainda não nasceu e você não, só porque eu consigo pagá-lo.” A intervenção genética nos embriões ainda está num estágio muito inicial. “Neste momento é preciso ter a certeza de que quando fazemos a edição não introduzimos erros nos genes, que só alteramos as letras do código genético num sítio específico. É preciso muito controlo para garantir que não se vai estragar outra parte do genoma. É por isso que as coisas não avançam rapidamente”, diz Carmo Fonseca. Para evitar a transmissão de uma doença genética grave à descendência há um método aprovado há mais de uma década – o diagnóstico genético pré-implantação (DGPI). Só se aplica a doenças – mais de meia centena – listadas como graves pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida e carece de aprovação desta instituição. “O DGPI exige um processo de fertilização in vitro, em que no laboratório realizamos a remoção de células dos embriões ao 3º ou 5º dia de desenvolvimento, com posterior diagnóstico de uma doença génica ou cromossómica”, explica Alberto Barros. Depois, entre os embriões gerados laboratorialmente, identificam-se os que têm ou não têm a alteração genética responsável pela patologia. “O objectivo é a transferência de embriões geneticamente normais no que respeita àquela doença em concreto para o útero materno.” O DGPI tem uma elevada taxa de sucesso e é o melhor método existente para que portadores de genes alterados previnam o nascimento de filhos doentes. Apesar de possibilitar a escolha do sexo do bebé, Alberto Barros nunca acedeu a usar a terapia com outro objectivo que não a eliminação da doença. “Mesmo antes de 2006, quando ainda não havia em Portugal legislação que impedisse a escolha do género, aceitei fazer isso mesmo quando os pais me pediram. É contra as minhas convicções”, diz.
Sobreviver ao cancro
Luís Andrade (nome alterado a pedido do próprio), de 62 anos, costumava gabar-se de ser um tipo saudável: deixara o vício do tabaco há mais de 20 anos, ia ao ginásio duas vezes por semana e jogava ténis todos os sábados. “Até chateava os meus amigos para não fumarem à minha frente. No fim de 2015, teve de parar uma das suas partidas de ténis com falta de ar. No trabalho, sempre que se deslocava para fazer auditorias, passava o dia a arfar. E tossia muito. “Depois de alguns exames, disseram-me que tinha um tumor maligno no pulmão esquerdo”, recorda.
“Para mim, foi como uma sentença... Eu ia morrer.” Há uns anos, o cancro do pulmão podia matar em oito meses.
Mas actualmente um diagnóstico genético pode encontrar formas de tratamento direccionado. Quando o médico lhe colocou a hipótese de analisar os genes, Luís nem sabia do que se tratava.
Mas aceitou. Tinha uma mutação no gene EGFR – causa de
18 a 20% dos tumores pulmonares
–, um anticorpo membranar cujas alterações genéticas fazem com que o receptor se torne hiperactivo e produza células descontroladamente, desencadeando a formação do cancro. “No início, pareciam más notícias porque me disseram que quem tem este tipo de cancro não pode fazer quimioterapia”, diz. “Mas depois disseram-me que havia comprimidos aprovados e que só tinha de tomar um por dia, como se tivesse tensão alta ou um problema cardíaco.” Vive há dois anos sob o efeito desta droga, que entra na célula para inactivar o receptor danificado. O tumor não está a progredir e as análises genéticas ao sangue indicam que não houve metástases. Vários tipos de cancro já contam hoje com várias frentes de combate, dos métodos mais convencionais, como a radioterapia, a quimioterapia e as cirurgias, até à administração de fármacos de precisão ou imunoterapias inovadoras. O tempo médio de sobrevida a um cancro do pulmão está hoje nos 36 meses.
O TEMPO MÉDIO DE SOBREVIDA A UM CANCRO DE PULMÃO ESTÁ HOJE NOS 36 MESES
As evoluções na luta contra o cancro registam-se fundamentalmente em duas frentes: diagnóstico e tratamento. Quanto aos testes, umas das principais introduções recentes foi a biópsia líquida, que prevê a análise do tumor não através de uma amostra de tecidos mas de uma simples recolha de sangue. “Quando o tumor se espalha, não era possível ir cirurgicamente a todos os pontos em que o cancro se instalou. Hoje conseguimos distinguir o ADN tumoral através do sangue”, diz Carmo Fonseca. Esses despistes não foram possíveis exclusivamente pelo progresso científico mas também graças a enormes desenvolvimentos informáticos – com recurso a supercomputadores. Na detecção de cancros hereditários – 5 a 10% do total – também houve desenvolvimentos notáveis. “Ninguém pode através de testes genéticos saber se vai ou não ter cancro, mesmo nos casos de alteração genética hereditária”, diz Sérgio Castedo, responsável pela consulta de cancro familiar da Fundação Champalimaud e da consulta oncogenética do Hospital de São João. “Pode saber se tem um risco elevado ou aumentado relativamente ao da população geral. Mas não temos o destino traçado nos genes.”
Na área da terapia, o ritmo das inovações é diabólico. O ano passado surgiram tratamentos vanguardistas em tipos de cancro do pulmão, da mama, da próstata e leucemias. Só em 2017, a Agência Europeia do Medicamento aprovou 11 medicamentos novos para o cancro e a indústria farmacêutica investiu mais de 1.000 milhões de euros no sector. Mais de metade (53%) dos ensaios clínicos em marcha desenrola-se no campo da oncologia. “A medicina de precisão apareceu com a tomada de consciência de que os doentes não são todos iguais e que é possível dividi-los em subgrupos afectados pelas mesmas alterações biológicas”, diz José Carlos Machado, responsável pela área de Patologia Molecular do IPATIMUP. Há meia dúzia de genes que dominam o panorama das alterações genéticas oncológicas: o KRAS e o P53 são dois deles e já há medicamentos aprovados contra os efeitos das duas disfunções. Paralelamente, há resultados cada vez mais satisfatórios de imunoterapias – métodos que se focam na resposta do sistema imunitário à presença de células tumorais. “Os tumores tendem a esconder-se do sistema imunitário e estas terapias visam fazer com que este se reactive e possa actuar sobre a patologia”, explica José Carlos Machado. Em Agosto foi aprovada nos EUA a primeira terapia genética contra o cancro (leucemia linfóide aguda), chamada Kymriah, que utiliza as células do sistema imunitário, mais precisamente os linfócitos T, presentes no corpo do doente. São extraídas e enviadas para um laboratório onde são geneticamente modificadas através de um vírus, ganhando informação que lhes permite identificar e aniquilar as células cancerosas. Depois, são reintroduzidas no corpo do doente. Em Cantanhede, à frente de uma equipa com oito pessoas, é isso que faz o investigador Filipe Pereira: reprogramar células para induzir uma resposta do sistema imunitário à presença de células tumorais. “No desenvolvimento das imunoterapias poderão estar novas formas de tratamento do cancro, bem como de doenças virais, como a sida ou o Zika”, diz Filipe Pereira.
Em várias aplicações destas terapêuticas, o tumor desapareceu. Mas José Carlos Machado prefere não falar em “cura”: “O que podemos dizer é que o cancro era uma catástrofe e hoje em dia já está catalogado como uma doença crónica. E isso já é uma grande vitória.”
Escolher dietas e treinos
Depois de muitas tentativas para perder peso, uma mulher, no início da meia-idade, consultou Roni Moya, especialista em Imunogenética e Medicina Antienvelhecimento e director clínico da Clínica Regenera. Tinha sido atleta profissional de artes marciais, e mesmo nos tempos de competição nunca se tinha conseguido livrar da massa gorda. Nem com dietas loucas nem com horas de exercício. “Era muito estranho porque ela alimentava-se correctamente e tinha hábitos saudáveis”, recorda Moya, de 41 anos. “Submetemo-la à avaliação genética mais completa e notámos que havia um gene que remontava à idade paleolítica, responsável por uma resistência ao exercício físico, que a obrigava a queimar 4 mil calorias por dia para ter a mesma resposta que outra pessoa. Havia ainda um gene que dificultava a produção de energia a partir do açúcar e fazia com que engordasse mais facilmente”, conta o especialista. Os dados apontavam para uma predisposição genética para a obesidade, principalmente ao nível abdominal. A revelação tornou-se libertadora para a ex-lutadora. “Ela entendeu que pode trabalhar para não ser obesa, mas que nunca vai ser magra como uma modelo. Isso ajudou-a a deixar as dietas radicais e a não tomar medicamentos contra-indicados para pessoas com o seu perfil. Hoje é saudável e está bem com o seu corpo”, conclui Moya.
Centenas de pessoas já recorrem à nutrigenética – o estudo de como os genes podem ser influenciados pela alimentação – não só para encontrar a dieta mais adequada como para prevenir doenças. “Dependendo das características genéticas, uma pessoa pode lidar bem com a digestão de carnes vermelhas, enquanto outra não, o que significa que posso prescrever carne vermelha à primeira e à segunda não. A mesma coisa com os lacticínios ou a metabolização do açúcar, dependendo de uma maior ou menor predisposição genética para a diabetes”, diz Moya.
As análises recorrem a amostras de sangue ou saliva e são precedidas por um questionário sobre o estilo de vida. Incidem na procura de pequenas alterações em dezenas de genes importantes para a saúde geral, os SNPs (Single Nucleotide Polymorphisms). “Existe um gene, o PPARI, que é muito estudado porque determina o nível de inflamação que uma pessoa tem. Quanto mais inflamação, mais doenças graves: Alzheimer, Parkinson, diabetes... a inflamação é a base de qualquer doença”, diz Moya. Podem custar entre 600 e 1.500 euros, dependendo do número de polimorfismos estudados.
Moya mostra no computador um exemplo de um diagnóstico interpretativo de um teste genético: gráficos simples divididos por doença ou característica do organismo que indicam, por exemplo, se o indivíduo tem uma apetência maior, menor ou na média para colesterol, hipertensão ou obesidade, entre centenas de factores. A partir dali, recorrendo a uma equipa multifacetada que integra nutricionistas e preparadores físicos, o cliente recebe um esquema multidisciplinar de nutrição funcional e ortomolecular que lhe indica os passos a tomar, os alimentos a ingerir e o tipo de treino adequado aos seus genes.
Estes testes começam a ser populares entre desportistas. Através deles, podem conhecer as suas lacunas genéticas e apostar num treino direccionado para as colmatar. “Apura, por exemplo, qual é a susceptibilidade para as lesões, sejam tendinosas ou articulares, levando o atleta a fazer precocemente um trabalho de prevenção. Também nos dá dados sobre as características físicas da pessoa, indicando o seu potencial a nível de força e resistência”, explica o imunogeneticista.
CADA CLIENTE RECEBE UM ESQUEMA COM OS ALIMENTOS A INGERIR E O TIPO DE TREINO ADEQUADO AOS SEUS GENES
As aplicações estendem-se à cosmética – através do estudo de certos genes, é possível saber quais são os melhores produtos para adiar as rugas ou a queda de cabelo. “Determina-se a qualidade de hidratação e a sensibilidade da pele, quão rápido essa pele envelhece e enruga, como é que ela perde água, gordura ou colagénio, e com essa base recomendam-se as melhores soluções”, diz Moya.
O húngaro Bertalan Meskó, um guru da Medicina, Genética e Tecnologia que é seguido por centenas de milhares através da sua página Medical Futurist, acredita que num futuro próximo até vamos ter óculos de realidade aumentada que nos dirão os melhores alimentos para o nosso perfil genético: “Quero ter a hipótese de comer de modo mais saudável ao conhecer o meu
background, mas quero ser eu a decidir. Ou seja, se os meus óculos me derem informação sobre um bife e uma salada e eu quiser comer o bife porque me sabe melhor, não quero que isso cause o aumento do meu seguro de saúde”, diz, em entrevista à SÁBADO.
Adiar o envelhecimento
O Homem procura a juventude eterna desde os primórdios. Está um bocadinho mais perto graças a uma investigação liderada por Maria do Carmo Fonseca e Bruno de Jesus no Instituto de Medicina Molecular (IMM) João Lobo Antunes. “Tínhamos como objectivo obter uma maneira de reverter as características moleculares das células envelhecidas”, diz Carmo Fonseca à
SÁBADO, no seu gabinete. “Começámos por comparar células de ratinhos jovens com as de animais que iam envelhecendo. Identificámos características de moléculas e de genes que estavam a funcionar de forma diferente. Depois, manipulámos um desses genes que vimos que estava a produzir demasiado nos ratos mais velhos e bloqueámos a produção.” Resultado: a célula da cobaia mais velha passou a ter características semelhantes à jovem. “Isto é um princípio de que, por manipulação genética, conseguimos reverter características de envelhecimento ao nível das células”, diz a cientista, Prémio Pessoa em 2010. Fica aberta a próxima etapa do estudo, já publicado na
Nature Communications. Ao reduzir o gene expresso nas células dos ratinhos velhos, os cientistas reverteram células adultas em células estaminais (capazes de se diferenciarem noutras células). Visto que estas se podem renovar e diferenciar, o próximo passo será perceber se podem substituir células destruídas e regenerar tecidos. “Acredito que podemos retardar o envelhecimento. Acho mesmo que o conceito de imortalidade é estatístico. Quando olhamos para a esperança média de vida, que em 1850 era entre os 25 e os 30 anos, demos um salto enorme. A questão é até onde vamos conseguir ganhar. Há baleias que duram 200 anos. Se há outros seres vivos que aguentam, nós também devemos conseguir lá chegar. E, se chegarmos aos 200, o que nos impede de continuar? No limite, estamos a caminhar para a imortalidade”, observa Carmo Fonseca.