RibeiroMenezes
O livro agora lançado por Filipe, o historiador, serve de pretexto para uma entrevista também com o pai, Pedro, embaixador jubilado, sobre a batalha de La Lys, onde há 100 anos o avô de um, e pai de outro, foi preso e acabou num campo de concentração alem
Batalha de La Lys faz 100 anos: as memórias do avô
Mário Ribeiro de Menezes escondia-se das memórias daquele 9 de Abril de 1918, quando perto de 400 portugueses morreram e entre 7 e 8 mil foram presos – ele, então capitão, foi dado como morto e esteve oito meses prisioneiro dos alemães. De Lisboa a La Lys, escrito pelo neto, o historiador Filipe Ribeiro de Menezes, compõe um século depois a sua história e a de todos os outros militares do Corpo Expedicionário Português (CEP).
Mário Menezes viveu até que ano?
Pedro Ribeiro de Menezes (PRM): Até 1953. Quando nasci, tinha o meu pai 59 anos. Faço 15 anos de diferença da minha irmã Cristina, que tem 94. Filipe Ribeiro de Menezes (FRM):
Houve esse enorme salto entre o meu avô e o meu pai. Eu nascido, em 69, tenho um avô que nasceu em 1880 e que já foi para a guerra, para França, com 37 anos. Não era um miúdo.
O seu pai falava sobre a guerra, a batalha, os meses na prisão?
PRM: Falava pouco sobre a parte militar da guerra, que tinha elementos que lhe desagradavam. O quê? Eu era muito pequeno para saber. Falava do 9 de Abril como um dia de apocalipse. Tinha muito o culto dos camaradas. Falava com liberdade de algumas inimizades e detalhava mais o seu tempo de campos de concentração, de prisioneiro e as dificuldades.
Ele e outros prisioneiros não estiveram sempre no mesmo campo?
FRM: Ele é capturado durante a batalha, a 9. E são soltos já em Dezembro, fim da guerra. São um pouco mais de 8 meses de cativeiro, tendo passado por várias fases e campos.
FRM: Sim. Ser feito prisioneiro no meio de uma enorme batalha é um momento, imagino, de puro terror, em que o soldado que nos captura tem o poder de vida ou de morte absoluto, porque ninguém lhe questionará as acções. Enquanto oficial era bastante mais bem tratado do que os soldados.
FRM: A expressão mais escandalosa dessas diferenças é a questão das licenças. Nós percebemos o porquê: havia falta de espaço nos navios e estar a organizar a licença de milhares de soldados causaria dificuldades logísticas tremendas. Mas não teria sido melhor para o moral das tropas impedir a licença dos oficiais em vez de permitir que viessem de licença?
É o início da I República, que tenta instituir-se. Mário Ribeiro de Menezes era monárquico. Como se justifica que aceite combater?
FRM: Porque é oficial do exército, é a sua profissão e vocação. E, não tendo saído do exército em 1910, 1911, aceitou as ordens, como aceitou na monarquia e depois do 28 de Maio. Que eu saiba, da história do avô, ele nunca alinhou em golpes de Estado.
PRM: Não. Eram três irmãos. O mais novo, o Ernesto, que diziam ser o mais prometedor de todos, morreu em 1915. Teve uma doença renal fulminante. O
“Entre os oficiais britânicos havia frustração com a adaptação do exército português” E por várias fases de dificuldade, que detalha no livro. Isso também se notava na guerra: os soldados não tinham o direito de vir a Portugal como os oficiais.
do meio, o meu tio [Vítor] era um promissor oficial de cavalaria, saiu do exército e juntou-se às forças revoltosas monárquicas que fizeram as incursões do Norte sobre o comando do Paiva Couceiro. Viveu exilado longos anos, tinha recursos financeiros para o fazer. O meu pai não e tinha de sustentar a mãe. Com formação tradicional, católica, monárquica, que tinha tido uma adesão intelectual de princípio ao Estado Novo, no fim da sua vida – isto são recordações de um rapaz com 14 anos – é bastante crítico de muitos aspectos da situação vigente. E achava a hipótese de uma restauração monárquica folclórica.
FRM: Mas não aderiu ao 28 de Maio. PRM: Isso seria ir contra o poder legítimo estabelecido.
FRM: Creio que sim, se bem que uma das consequências da nossa ida à guerra é o fosso que se cava entre o poder civil e o poder militar e os militares encabeçados, então, por Gomes da Costa que chegam à conclusão que com aquela República, com aquele sistema, já não é possível progredir e que é preciso serem eles a tomar as rédeas. Há uma ideia de que, sobretudo com a batalha de La Lys, o sofrimento do exército e as privações por que eles passam criam não só uma dívida do resto do País para com os militares, mas é um primeiro passo para a redenção nacional, que será o 28 de Maio, no entender deles. E é por isso que é tão importante ser Gomes da Costa o líder do 28 de Maio, porque era o general que comandava as forças em La Lys.
FRM: Contra o sistema político que os sacrificou, que os enviou para uma guerra que era desnecessária, por opções políticas que não achavam legítimas. Tinham cumprido o seu dever mas era altura de dizer basta: “Agora é a nossa vez. Porque fizemos este sacrifício.”
Quais são os principais motores para a entrada na guerra?
FRM: É preciso fazer uma distinção entre entrar na guerra e enviar o CEP para França. A entrada na guerra prende-se com alguns desígnios estratégicos, sobretudo a preservação das colónias. Mas acho que é também uma afirmação da República, pe-
“João Chagas escreveu: ‘Embora não se possa dizer, o nosso verdadeiro inimigo na guerra é a Inglaterra’” É a espinha dorsal de um militar. De certo modo é uma vingança.
a opinião internacional e doméstica. É preciso reforçar a jovem República, cuja vida estava a ser muito mais difícil do que se tinha previsto antes de 1910. Ir para a guerra não significava, porém, enviar o CEP para França. Há muito boa gente que entende que era possível estar em guerra e combater apenas nas colónias ou em alto-mar. Mas há um acelerar do processo por parte de figuras como Afonso Costa. Para eles é impossível estar na guerra sem estar a combater em França.
FRM: Têm que estar no centro e o centro é em França. FRM: Não é bem o reatar da amizade. É repor algum equilíbrio à aliança para que Portugal não continuasse a ser – e é algo que os alemães exploram no ultimato a Portugal e na declaração de guerra – um protectorado britânico. Ter uma verdadeira independência. Ter personalidade diplomática própria que, no entender de figuras como Chagas, não tinha. E o Chagas no diário, escreve: “Embora não se possa dizer, o nosso verdadeiro inimigo nesta guerra é a Inglaterra.” Há um paradoxo tremendo. Quanto mais Portugal se empenhou na guerra e mais homens foram enviados, mais dependentes nos tornávamos da Grã-Bretanha, porque era ela que abastecia as tropas, nos armava, assegurava o transporte; até o pagamento dos soldados.
FRM: E mais ainda. Eu há pouco referi a idade com que o meu avô foi para França. E era capitão. Um capitão no exército britânico estaria na casa dos 20, porque o pequeno exército profissional tinha aumentado brutalmente e tinham havido muitas baixas. A primeira coisa em que reparam os britânicos é a idade dos oficiais [portugueses]. São muito mais velhos do que eles próprios na mesma patente. E os conhecimentos que têm da guerra são de uma guerra ultrapassada. E começa então um processo de connhas versão e adaptação do exército português. Não correu bem.
FRM: É muito mais moroso, ainda por cima porque é decidido pelo exército português ou pelos políticos que irão aprender com portugueses. Os britânicos queriam que fossem treinados pelo seu exército.
Estas dificuldades de relacionamento passavam por brigas?
PRM: Ao nível de oficiais, e o meu pai convivia muito com o exército britânico. Havia grande clivagem entre os senhores encantadores, correctíssimos, competentíssimos e alguns que não estavam para nos aturar.
FRM: Ao nível de tropas, como relato no livro, nem sempre corria tudo bem e havia inimizades que nos parecem inexplicáveis entre portugueses e australianos. Entre oficiais, havia questões culturais, mas sobretudo alguma frustração com a lentidão da adaptação do exército português. E por nem todos os conselhos serem acatados. Acho que a ideia do exército britânico sobre a cooperação entre portugueses e britânicos era herdada das camparante napoleónicas: os ingleses mandam e os portugueses obedecem. E era isso que a República queria evitar. Quando o ministro da Guerra, o major Norton de Matos, vai a caminho de Londres, encontra-se com o marechal sirDouglas Haig, o comandante supremo das tropas britânicas em França. O Haig diz-lhe que um dos problemas é o seu chefe de Estado-maior, o major Roberto Baptista, que deve ser recambiado. Para o Haig fazer um juízo desses sobre um oficial, significa que na hora seguinte ele vai-se embora. Mas não. O Roberto Baptista é uma figura-chave do CEP, através da qual Lisboa controla o que se passa em França. Ele até acompanha Norton de Matos a Londres. Os ingleses decidem agir e fazem-no através da logística: cortam a ligação naval entre Lisboa e o CEP. Deixa de haver navios britânicos e reforços, mantimentos portugueses.
FRM: Exactamente. Eles não desesperam do CEP. Só desesperarão no CEP a partir de 9 de Abril. As baixas britânicas nessa altura estão no seu auge. Precisam do CEP. Acho que há
Sem estar no centro. Cita João Chagas, que diz que o envio das tropas se devia à necessidade de reatar a amizade com os ingleses, depois do século XIX. Enviámos homens sem formação, sem artilharia. “O que talvez explique o fogo entre aliados: a cor do uniforme português era mais próxima da do alemão que da do britânico” Não estavam preparados para aquela guerra. Vencê-los pelo cansaço.
esperança de que haja uma mudança de atitude em Portugal e que a colaboração passe a operar nos moldes desejados por Londres.
PRM: Eles diziam: “temos uma massa humana aproveitável, nem que seja” – estou a meter-me nos terrenos do Filipe – “para cavar trincheiras”.
FRM: E há um refrão das campanhas napoleónicas: “Os soldados são bons, os oficiais são maus.” É esse o ponto de vista com que o exército português é recebido em França. Enquanto as divisões britânicas vão mudando de sítio, o CEP não muda de sector. É difícil combater ali porque é quase impossível cavar, as trincheiras são muito rasas, à base de muros e sacos com terra. E até o simples avançar no terreno é difícil. Por isso é um ponto estável nas linhas. Curiosamente, em Março de 1918 a guerra começa a chegar a sério ao CEP; há uma série de pequenos ataques, os bombardeamentos tornam-se mais intensos e o exército porta-se bem. As ordens são obedecidas, os ataques alemães travados.
Percebe-se porquê?
FRM: A máquina funciona bem. Embora a questão moral estivesse a minar o CEP, eles estavam a ganhar prática e ainda havia reserva moral para aguentar esse último esforço. No fim desse mês, retira-se grande parte da 1ª divisão, fica só a 2ª e cria-se a expectativa de que todos irão para a retaguarda.
Como?
FRM: Era oficial. Passaram a noite de 8 para 9, até começar o ataque alemão às 4 da manhã, a encaixotar, a preparar munições, papéis e tudo para a retirada. Iam ser substituídos. Iam sair das trincheiras.
O seu pai falava do dia?
PRM: Não. Aos 14 anos, a farda, o tiro têm um ar romântico, queria saber e não encontrava. Havia um mecanismo de defesa de não querer voltar a uma realidade que o tinha marcado.
O dia ficou plasmado no diário?
FRM: Ele limita-se a reproduzir a declaração que fez quando regressou ao CEP depois do tempo como prisioneiro. Diz que já há algum tempo que não recebia ordens, não sabia o que se passava e que foi em direcção à retaguarda para procurar ser útil.
PRM: A minha querida irmã Teresa, de 3 anos, pôs um laçarote preto. E foi rezada missa por alma do meu pai, com base no testemunho de um militar. “O capitão Menezes morreu. Até lhe deitei uma manta.”
FRM: Com a ajuda da Cruz Vermelha ele pôde finalmente enviar um postal da Alemanha a dizer “estou vivo”.
PRM: Lembro-me de o meu pai contar que os alemães para desfazerem equívocos quanto ao destino das pessoas, [permitiam] um postal com uma única frase em francês: “Je suis prisionnier. Bonne santé.”
Não temos a memória do Mário sobre a batalha. Como é que foi?
FRM: Começa muito cedo, ainda é noite e é um dia de grande nevoeiro. A preparação dos portugueses era feita de acordo com uma rotina militar desenvolvida durante a guerra e já em 1918 ultrapassada. Isto é, os alemães são mais rápidos a inovar do que os aliados. Começam a atacar de uma maneira nova e inesperada. Em vez de passarem dias a bombardear o sítio onde iam atacar, denunciado o que ia acontecer, pouco depois do início da barragem de ar-
tilharia, começam a enviar tropas para o campo do inimigo. Vão-se infiltrando o mais possível entre os vários pontos da defesa, sobretudo, no ponto em que a divisão portuguesa encontra a divisão britânica. E só combatem lá?
FRM: Quando estão os portugueses à espera do fim da barragem para perceber o que aquilo é, já têm soldados alemães pelas costas criando a ideia de que estão cercados. Não estão necessariamente cercados, mas é inesperado. E cria uma situação de caos e pânico. A barragem foi extremamente bem-sucedida, cortou os pontos de comunicação com todos os postos de comando.
PRM: Uma frase que me impressionou muito do meu pai: “Eles apareceram-nos pelas costas.” Naquele esforço de juntar o seu grupo, nevoeiro, fumo aliado a nevoeiro… FRM: …e gases.
PRM: Que faziam uma massa sinistra. E que com o nevoeiro pioravam.
FRM: Ficavam concentrados. Criase uma grande discussão entre portugueses e britânicos sobre de quem é a culpa, quando acho que não é de ninguém. Há interpretações diferentes entre os historiadores. Os portugueses dizem: “foram os britânicos que cederam”. Os britânicos dizem que foram os portugueses. Foi toda a gente e talvez ninguém. Os alemães eram tropas de elite, conheciam o terreno, sabiam por onde avançar. E semeia-se o pânico e o caos. Ainda antes do principal assalto, que só vem lá para as 9 da manhã, comevozes
çou a retirada do CEP. Não há ordens nem contacto com o quartel-general, começa a debandada. Um britânico no livro The Men I Killed, que cita, diz que começaram as rajadas contra os portugueses para os obrigar a ficar.
FRM: Sim. Este livro é muito controverso porque o general Crozier se tornou um pacifista depois da guerra. É quase uma confissão: Os homens
que eu matei. Havia uma questão que talvez explique o fogo entre aliados: a cor do uniforme português era mais próxima do cinzento alemão do que do caqui britânico. Como há a sensação de que os alemães estão por toda a parte, então dispara-se.
A batalha, nefasta para Portugal, é só mais uma para os britânicos.
FRM: O que nós chamamos a Batalha de La Lys é o primeiro episódio de uma batalha que dura semanas e que os ingleses acabam por ganhar porque travam o avanço alemão. Há a sensação, com cada batalha, de que a Alemanha vai enfraquecendo, porque os Estados Unidos entraram na guerra os aliados não podem perder. É preciso aguentar. O que acontece ao CEP é um detalhe na campanha da Primavera de 1918. A nossa batalha acaba à hora do almoço. Seguir-seão semanas de combate feroz.
Como ficou a discussão política em Portugal no pós-9 de Abril?
FRM: Eu diria que havia uma relutância grande de Sidónio Pais em enviar mais tropas para França. Há que surgem no aparelho sidonista a dizer: “Temos que substituir o CEP. É a honra do exército, o brio da nação.” E começa uma dança entre o governo português e o britânico com o britânico, apoiado na opinião dos militares, a dizer que não quer mais portugueses. É tanta a insistência que os britânicos começam a ceder, mas tão devagar que, antes de se concretizar esse reforço, a guerra acabou. E o que é que se faz ao CEP que já lá está? É posto a trabalhar nas fortificações, a cavar trincheiras, a arranjar estradas. Isso é muito desprestigiante para o exército, que quer combater. Alguns oficiais conseguem que três ou quatro batalhões regressem à frente em Novembro. Mas é uma presença simbólica no fim da guerra.
Os portugueses estavam a fazer um sacrifício em nome de quê?
FRM: De uma ideia política. Muitos deles não comungavam dessa ideia.
E muitos eram germanófilos.
FRM: Isso eu não sei. Há muita acusação: se é monárquico é germanófilo.
PRM: Os oficiais monárquicos em França eram vistos como não dignos de toda a confiança pelos oficiais que emanavam da revolução. O meu pai que era um homem de humor britânico. Num livro descreve-se a chegada ao campo de concentração: “Um amigo, o capitão Mário Menezes, que comigo compartilhou metade de um catre e metade de uma manta, olhava à roda e dizia ‘sinto as minhas confissões germanófilas muito abaladas’” [risos].
FRM: Havia grandes divisões dentro do CEP. O meu avô refere algumas discussões entre oficiais.
Com pugilato?
FRM: Sim. Houve um oficial que ficou com uma perna partida. Mas se pensarmos na forma como o exército sai da guerra, cada vez mais unido e desconfiado da República, acho que talvez tenha havido uma aproximação dentro do CEP.
PRM: Tento buscar recordações. Todos os miúdos vão às carteiras dos pais. Havia um papelinho pequenino que era uma citação de um autor francês que desconheço: “Nada liga tanto os homens como ter olhado a morte de frente.” Que fantasmas é que ele tinha lá dentro?