Interrogatório
Suspeito de ter sido corrompido pela Octapharma e por Lalanda e Castro, o ex-director da ARSLVT falou durante vários dias. A juíza não acreditou nas explicações.
O homem que deu milhões a ganhar à Octapharma
Dezembro de 2016. Na manhã do dia 13, quando passavam apenas cinco minutos das 7 horas, a Equipa 2 da Polícia Judiciária (PJ) chegou ao 4º piso do número 186 da Av. do Brasil, em Lisboa, o apartamento então alugado pelo ex-presidente da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT), Luís Cunha Ribeiro. Os três inspectores actuaram de forma sincronizada com os elementos da Equipa 1, que no Porto entraram também na outra casa do médico. Nesse dia, as buscas da Operação O Negativo não ficaram por ali: os alvos previstos distribuíam-se por 27 residências, locais de trabalho e departamentos ou hospitais do Estado. Em Portugal e no estrangeiro, porque um pedido de duas buscas seguira antes através de uma carta rogatória enviada às autoridades judiciais da Suíça – o país onde residia o gestor Paulo Lalanda e Castro e também o local em que a farmacêutica Octapharma AG tinha (e ainda tem) a sede. Preparada ao pormenor após muitos meses de trabalho da Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC) da PJ – com milhares de horas de gravações telefónicas, análises de concursos públicos e vigilâncias no terreno a suspeitos –, a acção do caso dos milionários negócios de plasma humano teve ainda outro objectivo imediato, que foi além das tradicionais apreensões de documentação e dados informáticos: a detenção de Cunha Ribeiro. O Ministério Público (MP) queria que ele ficasse preventivamente preso por crimes de corrupção passiva, branqueamento de capitais e recebimento indevido de vantagem cometido no exercício de funções públicas. O MP achava que o médico recebera do grupo Octapharma e de Lalanda e Castro centenas de milhares de euros sob a forma da propriedade/utilização de dois imóveis, bem como o uso de um carro de luxo, um telemóvel e um iPad. Isso e pagamentos de viagens ao Japão, França, Itália, EUA (e outros destinos), de alojamentos, refeições e até entregas em dinheiro vivo. Tudo recebido directamente ou através de intermediários, como familiares (a irmã e o cunhado)
A PJ ENTROU NA CASA DE CUNHA RIBEIRO ÀS 7 HORAS DA MANHÃ. PARA FAZER UMA BUSCA E DETÊ-LO
do próprio médico.
E o que é que alegadamente Cunha Ribeiro dera em troca a Lalanda e Castro, o gestor de quem se tornara amigo em 1998? Segundo o documento do MP de 95 páginas que justificou a detenção do médico para interrogatório judicial, e a que a SÁBADO teve acesso, os dois homens teriam criado “um esquema que a ambos” dera “benefícios económicos muito relevantes, no sentido de obterem a adjudicação quase exclusiva, para o mercado português, de produtos hemoderivados e plasma humano inactivado, à Octapharma, Produtos Farmacêuticos, Lda., e à sociedade suíça Octapharma AG”. Estes produtos são um dispendioso recurso clínico essencial para hemofílicos, para infectados com o vírus do VIH, bem como para doentes de cancro e para os que sofreram queimaduras graves. Por isso, e devido ao quase monopólio conseguido nos negócios com o Estado português, o esquema teria dado muitos milhões de euros a ganhar à Octapharma. Mas o documento da indiciação do MP não contabilizou o montante em causa, optando antes por revelar que o período dos alegados crimes teria ocorrido entre 1998 e 2015, precisamente quando o médico integrara dois júris de concursos (em 1998 e 2000) e desempenhara sucessivas funções de chefia “no Centro Hospital de São João, na ARSLVT, no Infarmed, no INEM e em unidades de saúde…”
Juíza não acreditou no médico
A autêntica maratona em que se tornou o interrogatório de Cunha Ribeiro perante a juíza Cláudia Pina – prolongou-se por três dias e mais de 15 horas de declarações gravadas na 1ª Secção de Instrução Criminal da Comarca de Lisboa – veio comprovar que nesta fase eram muito fortes os indícios que visavam o médico. A começar pela questão dos dois apartamentos que habitara, no Porto e em Lisboa, e que eram da Convida, uma empresa detida por Lalanda e Castro. No primeiro caso, tratava-se de um dúplex com dois lugares de garagem. Um imóvel que Cunha Ribeiro terá começado por alugar quando fez parte dos júris dos concursos de plasma e exerceu as funções de director clínico do Hospital de S. João, no Porto. Depois, em 2003, terá comprado o imóvel por 300 mil euros. No entanto, a PJ analisou e cruzou as movimentações das contas bancárias do médico e da empresa Convida e não detectou os pagamentos que o médico garantiu ter feito. Ou seja, não havia rasto do pagamento dos alugueres (cerca de 1.000 euros mensais), da posterior compra e até do então obrigatório imposto da sisa (no valor de 13 mil euros). Perante a juíza, Cunha Ribeiro justificou-se que tinha pago o apartamento do Porto ao amigo Lalanda com o dinheiro da venda de um imóvel que o pai lhe dera (cerca de 95 mil euros) e um parecer científico sobre lipossomas (bolhas minúsculas semelhantes a membranas celulares) avaliado em 100 mil euros que fizera para uma empresa israelita. “Esta versão é absurda e inverosímil”, começou por referir a juíza no despacho judicial, que justificou a prisão domiciliária de Cunha Ribeiro, especificando que era de todo estranho que, quando fazia parte de concursos públicos, o médico alugasse e comprasse um imóvel a um amigo concorrente. E também que deixasse ao cuidado do amigo o pagamento de burocracias como a sisa.
“Mais estranho ainda é que lhe fosse prometida informalmente a quantia de 100 mil euros, sem existir qualquer documento que suporte a sua prestação de serviços e remuneração de valor tão elevado e que tal quantia nunca lhe fosse paga ficando ‘à guarda do Paulo’ [Lalanda e Castro], tendo ambos acordado que seria deduzida no valor da casa”, salientou a juíza antes de concluir: “O que se retira desta explicação inusitada é que tal pagamento nunca existiu.” De seguida, e ainda segundo o despacho a que a SÁBADO acedeu, a juíza passou à questão da segunda habitação de Lisboa, outro apartamento de luxo de Lalanda que Cunha Ribeiro terá começado a habitar em 2004. O médico garantiu que pagou o aluguer do imóvel através de cheques, transferências bancárias e até em dinheiro vivo (1.500 euros/mês) e justificou que depois de 2008 deixou de usar o imóvel com regularidade dado que viajava muito. Disse ainda que mantinha até um diferendo com Lalanda devido ao montante de alugueres em dívida, um documento que realmente
O MINISTÉRIO PÚBLICO SUSPEITA QUE CUNHA RIBEIRO FABRICOU JUSTIFICAÇÕES ANTES DE SER DETIDO
existia, mas a que o tribunal não atribuiu credibilidade.
A juíza começou por alegar que a PJ também não encontrara nas contas do médico as saídas daquele dinheiro para a empresa Convida. Com excepção de dois cheques que foram realmente depositados em Abril e Maio de 2013 – um total de 3.530,08 euros –, precisamente quando a história do apartamento de Lisboa (no mesmo edifício onde morava José Sócrates) foi tornada pública pelo jornal Correio da Manhã. Nas perícias financeiras cruzadas realizadas no processo pela PJ, os inspectores encontraram, isso sim, outro dinheiro: um conjunto de transferências da Suíça, com origem num offshore de Lalanda e com destino à Convida.
O dinheiro suspeito
Só entre 2010/14, este montante ascendeu a cerca de 97 mil euros, que a Convida registou na contabilidade como pagamentos de clientes, “no caso de Luís Cunha Ribeiro”. Só que o próprio médico reconheceu no interrogatório que aquele dinheiro não era dele e a juíza concluiu: “(...) afigura-se que o arguido nunca pagou nem pretendeu pagar ao Paulo [Lalanda e Castro], porque este ofereceu a utilização como contrapartida da actuação do arguido nos concursos e em situações posteriores (...) e que ambos procuraram dissimular este acto através da actuação de advogados, quando confrontados com a existência da investigação pela comunicação social e por Paula Ferrei- rinha”. A juíza referiu-se à intervenção da então jornalista da TVI que tinha sido assessora no Ministério da Saúde e que em 2015 avisou Cunha Ribeiro de que a PJ tinha ido ao Ministério recolher informação sobre o caso do plasma.
O primeiro despacho de indiciação do MP e a promoção judicial da detenção preventiva de Cunha Ribeiro (o médico já se encontra em liberdade desde Março de 2017) revelam outros dados importantes de um processo que ainda não está concluído. Um deles é o facto de o médico poder ter actuado de forma encoberta como “sócio e gerente” da ILS. Uma empresa controlada por Lalanda e que tinha vários projectos em carteira: a instalação de uma maternidade em Timor, o fornecimento a Angola de 15 unidades móveis de saúde e a exploração dos centros de atendimento Saúde 24.
Foi precisamente na ILS que Cunha Ribeiro usou um Audi A5 que a empresa vendeu quando em 2013 foram também publicadas notícias sobre o caso. No entanto, a PJ identificou várias multas de trânsito aplicadas ao médico que comprovam o uso da viatura. E a Judiciária anotou outro pormenor: no que seria uma manobra de disfarce, um mês antes da venda do Audi da ILS Cunha Ribeiro comprou um carro próprio – precisamente um Audi. Na investigação, a Judiciária encontrou ainda inúmeros registos e até facturas referentes a pagamentos que o grupo Octapharma/Lalanda terá feito a Cunha Ribeiro. De um iPad da Apple a um telemóvel Samsung Galaxy e muitos milhares de euros em viagens e refeições. Além disso, nas contas do médico entraram dezenas de milhares de euros em numerário. “(…) a conduta do arguido, médico e pessoa com especiais deveres de zelo pelo bem público, participou na lesão do património do Estado em milhões de euros e a sua conduta é chocante, descredibilizando a autoridade pública e o zelo exigido aos profissionais de saúde que participam na aquisição de produtos farmacêuticos, essenciais ao bem-estar e até à sobrevivência de inúmeras pessoas”, concluiu a juíza Cláudia Pina.
JUÍZA DO PROCESSO DISSE QUE AS JUSTIFICAÇÕES DE CUNHA RIBEIRO ERAM “ABSURDAS”