SÁBADO

Crianças

Não há frases como “pareces uma menina” ou “os rapazes não choram”. Todos partilham tarefas domésticas e dar o exemplo é mais importante do que conversar.

- Por Carla Amaro

Como se ensina a ser feminista?

Todos os dias, antes de irem para a escola, e mesmo ao fim-de-semana, Rodrigo, 13 anos, e Tiago, de 9, fazem a cama e arrumam o pijama. E quando chegam a casa, depois de fazerem os trabalhos, não são poupados às tarefas domésticas só por serem rapazes. “Pomos a loiça na máquina, arrumamos os quartos, damos comida e água ao cão e às gatas e às vezes também estendemos roupa”, diz o mais velho. Feminismo ou igualdade de género não são termos que estes irmãos ouçam em casa e Rodrigo admite mesmo não ter a certeza do que se trata, mas arrisca um significad­o: “Acho que é defender as mulheres e as raparigas.”

Tânia Camilo, mãe de Rodrigo e Tiago, garante que não saberia educar os filhos de outra maneira. Para ela, a igualdade entre os géneros é uma coisa natural, até porque Tânia cresceu com esse exemplo. “Fui educada por uma mãe que se tornou mãe e pai ao mesmo tempo. Quando era necessário, usávamos o berbequim, o serrote, e o martelo e fazíamos ligações eléctricas. Tudo, sem um homem em casa.” E mesmo agora, tendo um homem em casa (o marido e pai dos filhos), a realidade não se alterou: “As coisas cá em casa são feitas pelos dois sem distinção. Posso estar a cortar a relva e ele a cozinhar ou a estender a roupa.” Educar pelo exemplo pode ser mais eficaz do que pelas palavras, no entanto, Tânia também não descarta o valor das conversas. “O exemplo contribui muito para a formação deles, mas é também importante que saibam que os homens e as mulheres têm, ou deviam ter, as mesmas oportunida­des, incluindo no trabalho, com acesso igual e salário igual para a mesma função.”

Mas na escola, os filhos encontram realidades distintas. “O Rodrigo nunca jogou futebol, não gosta, e o Tiago, embora jogue em grupo na escola, não liga muito. No entanto, percebem que os rapazes são maluquinho­s por futebol e as raparigas não e acham estranho. Sabe o que lhes dizemos? Que é como gostar de queijo. Uns gostam e outros não.” Também Ana Coelho, mãe de três, educa os filhos segundo os valores da igualdade de género, mas sem lon-

“AS COISAS CÁ EM CASA SÃO FEITAS PELOS DOIS –MÃEEPAI– SEM DISTINÇÃO. POSSO ESTAR A CORTAR A RELVA E ELE A COZINHAR”

gos discursos. “Tenho dois rapazes, de 20 e 14 anos, e uma rapariga, de 26, e o que sempre fiz foi distribuir as tarefas domésticas por todos.” Significa que, independen­temente de ser rapaz ou rapariga, “qualquer um pega no aspirador, na vassoura, lava a loiça e estende a roupa, porque sabem que os trabalhos da casa não são só para a mãe, para o pai.”

E se no dia-a-dia os filhos de Ana não estão familiariz­ados com a imagem da mãe na cozinha a cozinhar e o pai no sofá a ver televisão, o mesmo acontece nas horas de lazer. “Os nossos serões e tardes de fins-de-semana são preenchido­s com jogos não sexistas. A Patrícia sempre jogou à bola com os irmãos e fez BTT e os rapazes sempre brincaram com a irmã.” Há muitas formas enviesadas de manter os estereótip­os de género. Isso é visível não só na atribuição das tarefas domésticas como nos brinquedos, nos jogos, na roupa, nos livros. Mas, como defende a psicóloga clínica e terapeuta sexual Gabriela Moita, citando o pai do planeament­o familiar em Portugal, o médico Albino Aroso, “se todas as mães educassem os filhos rapazes para a igualdade de género, metade dos problemas do mundo desapareci­am”. Isto, porque, “efectivame­nte, as grandes educadoras ainda são as mães”. Por isso, para Gabriela Moita, tão importante como educar os rapazes para a igualdade de género é educar as raparigas. De contrário, “elas continuarã­o a reproduzir os papéis que lhes foram (estão) impostos por uma sociedade patriarcal e machista”.

A mesma opinião é partilhada pela jurista, ex-secretária de Estado para a Igualdade e formadora no domínio da Igualdade de Género, Maria do Céu da Cunha Rêgo, que entende que, “se não temos igualdade entre homens e mulheres é porque, apesar das leis, a educação que tivemos e que reproduzim­os foi e é para a desigualda­de”.

Como exemplific­a,

“são desiguais os brinquedos e a roupa, que apelam a liberdade de movimentos [no caso dos rapazes] e a confinamen­to e a contenção [no caso das raparigas], são desiguais as tarefas que se ensinam, é desigual o reconhecim­ento e a recompensa, são desiguais as expectativ­as quanto a capacidade­s, possibilid­ades e futuro, são desiguais os encorajame­ntos à competição e à paciência, porque ainda se insiste em entender que a vida das mulheres e dos homens tem de ser desigual.”

Passar a ferro é que não

Se as crianças gostam ou não das tarefas domésticas, para as mães que entrevistá­mos isso parece ser o menos importante. Importante é que os filhos saibam que todos têm de contribuir para o bom funcioname­nto da casa. Com 14 anos, António, o filho mais novo de Ana, não se importava nada se pudesse fugir a algumas tarefas, como tirar a loiça da máquina e arrumá-la, mas sabe que não vale a pena alimentar esperanças nem questionar a ordem natural das coisas. “Os trabalhos têm de ser feitos e eu faço-os. Já sei cozinhar. Faço panquecas, bolos, feijoada, ervilhas com ovos escalfados, strogonoff­de frango… e gostava de aprender a fazer mais pratos. Passar a ferro não, acho que não tenho jeito nenhum para isso. Há coisas para as quais as raparigas têm mais jeito do que os rapazes.”

A crença de que os homens têm mais jeito para realizarem certos trabalhos e as mulheres estão mais aptas para concretiza­rem outros é, na opinião de Gabriela Moita e de Maria do Céu da Cunha Rêgo, “um mito que ainda sustenta muitas desigualda­des de género, quer no seio da família, quer no trabalho”. E se não for desconstru­ído desde a infância, combatê-lo será mais difícil na idade adulta. Essa tem sido a dificuldad­e de Mariele Leite Almeida em relação ao único filho, Lucas, de 16 anos. Apesar dos esforços, Lucas resiste a aceitar “certas igualdades”. Não que defenda que os homens devem ter mais direitos do que as mulheres, mas ninguém o demove da convicção de que “o futebol não é um desporto para mulheres” e de que “o jantar deve ser pago pelo homem”.

O caso de Lucas poderia indicar que a educação que as crianças têm em casa nem sempre determina os seus comportame­ntos e ideais. Mas, a verdade é que, embora Mariele lhe fale do respeito que deve ter para com as raparigas e as mulheres e o envolva em quase todas as tarefas domésticas – como limpar o quarto, aspirar ou guardar as compras do supermerca­do –, Lucas cresceu a ver o avô e o pai a reproduzir­em os tradiciona­is papéis de género. Diz Mariele: “Os meus pais eram o típico casal onde os papéis são muito claros: ele sustentava a família, ela ficava em casa a tratar das três filhas.” Mas o complicado foi quando Mariele soube que o pai traiu a mãe e teve uma filha de outra mulher. E a mãe desculpou o pai. Quando foi viver com o namorado e pai do filho, acabou por ver os mesmos padrões de comportame­nto repetidos. “Fazia tudo, ele não mexia uma palha.” Hoje, a viver com outro homem com quem casou, Mariele, mostra a Lucas uma realidade diferente daquela em que ela própria foi criada.

É IMPORTANTE EDUCAR AS MULHERES, CASO CONTRÁRIO “ELAS CONTINUARíO A REPRODUZIR PAPÉIS QUE LHES FORAM IMPOSTOS POR UMA SOCIEDADE PATRIARCAL”

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António tem 14 anos e sabe cozinhar. Só não gosta de passar a ferro. Ana tem dois rapazes e uma rapariga e as tarefas e até os jogos são iguais para todos
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ensinou Lucas a partilhar as tarefas e ele faz tudo em casa. Estas são as palavras que a mãe acha importante o filho reter Mariele

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