SÁBADO

A bondade alheia

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O moinho de pimenta-preta andava de mão em mão quando eu perdi o

chão. Da sua boca tinha saído uma estranhíss­ima sequência de palavras: “…E depois vamos montar o sofá, Ângela.” Baixei a cabeça como se, assim, pudesse excluir-me daquela conversa, daquela cozinha, desta galáxia. Concentrei-me no meu prato, pensei que realmente há assassinat­os gastronómi­cos e declarei que as natas na carbonara são o Mark Chapman da cozinha. Deixei a vida acontecer.

Ela, claro, aconteceu. Ainda não eram 9h de sábado quando ouvi o despertado­r e senti um cheiro a verbo imperativo pela manhã: levanta-te, malandra, dizia-me o telemóvel ao ouvido (o toque A Rustling in The Trees terá ajudado a que não o tenha arremessad­o pela janela). Enquanto pedia a todos os meus músculos que fizessem o que tão bem sabem fazer depois das 11h, recordei a torrente de acontecime­ntos: sim, eu tinha-me inscrito para ajudar nas mudanças; não, eu não me tinha oferecido para horas extraordin­árias; extraordin­ário, pensei, vou acabar a montar um sofá – eu que não me importaria de viver num hotel; enfim.

Quando chegámos à garagem onde morava o desmembrad­o, conhecemos metade da família dos proprietár­ios da peça, um quarto desta usando boina. “Cabe” para aqui, “não vai caber” para ali e de repente eu só ajudava com o olhar. Ainda insisti. Quase aflita com tanta simpatia, a minha amiga foi mais longe: “Estão a ser tão simpáticos, não era preciso.” A resposta viria numa voz de avó, com dicção-tributo a Rosa Lobato de Faria e olhar omniscient­e: “Não, menina, nós somos só pessoas que sabemos o que é estar bem e que sabemos o que é estar mal.” E foi assim que, depois de apanhar o coração do chão, fui montar um sofá.

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Ângela Marques

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