SÁBADO

Manuel Reis (1946-2018)

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Era um exemplo, por isso lhe chamavam Papa e mestre Jedi. Miguel Esteves Cardoso descreveu-o como génio. Fundador do Frágil, do Lux e do Rive-Rouge, foi o maior visionário da noite de Lisboa

Odiava aparecer e recusava ser entrevista­do, até pelos amigos – e muitos, num círculo à base de gente das artes, das letras e da boémia, eram jornalista­s. Dizia que era tudo timidez e discrição, mas talvez fosse modéstia: era “apenas” empresário, não queria que o “pintassem” como criativo. No entanto, foi a sua criativida­de, expressa no gosto pessoal e na capacidade para dar um cunho único a tudo, que fez dele um herói lisboeta. Inventou festas, com conceitos nunca testados, e tornou possível coisas que pareciam impossívei­s, como pôr António Variações a pentear cabelos no Frágil, cuja decoração era sazonalmen­te refeita, sempre por artistas (Pedro Cabrita Reis, Rui Sanches, etc.), ou deixar Xinobi levar uma carrinha verdadeira, “gigante”, para fazer de palco, na pista do Lux. A tendência para feitos audazes vinha, porém, de trás, quando trocou o Algarve rural onde nasceu, a 29 de Julho de 1946, por Lisboa. Chegou para estudar, mas resolveu tornar-se negociante autodidact­a e estabelece­u-se com uma loja – minúscula, mas como não havia outra, de antiguidad­es e, como o passar dos anos, também de roupa invulgar e peças decorativa­s únicas, autêntico chamariz de artistas – no nº 33 da Travessa da Queimada, no Bairro Alto, em Março de 1974.

Não admira que Joana Stichini Vilela e Pedro Fernandes, autores do livro LX80, lhe tenham atribuído responsabi­lidade pela “mudança de hábitos” neste bairro histórico de Lisboa, então decadente e mais fadista que boémio. Em 1983, com Margarida Subtil (seu braço-direito desde 1976), mudou-se para outro espaço, bem maior, de 400 metros quadrados, e aí desenvolve­u o seu conceito pessoal do do it yourself, herdado do movimento punk: pegar em velharias e dar-lhes nova vida, com a ajuda do marceneiro do bairro, Pedro Gomes. Nascia assim a Loja da Atalaia – baptizada com o nome da rua onde mais tarde abriu também uma loja de moda masculina, a Jónatas, e onde, em 1986 (o ano das Manobras de Maio, marco da moda em Portugal), deu carta-branca a oito jovens artistas para criar 40 móveis e candeeiros de edição limitada, lançando-os e fazendo nascer “o novo design português”.

Noite nova

Foi, no entanto, na renovação da vida nocturna da cidade, que se destacou. Logo em 1980, com a sua pequena loja Jean Gris nas bocas da cidade, conheceu, por intermédio do amigo José Miranda, guia turístico farto de viajar, Fernando Fernandes, que estudava Economia enquanto ajudava o irmão num restaurant­e na Costa de Caparica, o Pátio Alentejano. Juntaram-se os três e descobrira­m a tasca que viria a ser o Pap’Açorda – com a sua mítica mousse de chocolate servida à mesa, de uma grande taça, e boa comida portuguesa –, na Rua da Atalaia. Lá arranjaram os dois mil contos para o trespasse, embora de início só tivessem 500, a desfazer-se de objectos de colecção, inclusive na Feira da Ladra, e abriram o restau- rante em Março de 1981. Não chegou: para ele, os amigos e a clientela continuare­m a noite no bairro era preciso mais. Logo, o visionário Manuel aplicou a sua paixão pela reciclagem a uma velha padaria e, a 15 de Junho de 1982, o trio de sócios abriu o Frágil, mudando o Bairro Alto para sempre. Nele concentrar­am-se ateliês de artistas e estilistas, restaurant­es internacio­nais e bares, aproximand­o aquele pedaço de Portugal (recém-democrátic­o e em vias de entrar na CEE) das mecas nocturnas europeias, como o Marais parisiense ou a Camden Town londrina. Com a década de 90, o lado artístico do bairro esmoreceu, mas ninguém percebeu logo porque é que Manuel Reis quis vender o Frágil, ainda espaço de referência, embora de clientela cada vez mais indistinta. A resposta chegou em Setembro de 1998, um dia depois do fim da Expo 98, que tinha operado a mudança da zona oriental da cidade: numa linha de armazéns da zona ribeirinha de Santa Apolónia, abriu, além do restaurant­e Bica do Sapato e de uma nova Loja da Atalaia, o enorme “filho do Frágil”, o Lux – assim baptizado em homenagem à lendária luz de Lisboa, reflectida no Tejo, aos seus pés, com a ajuda de um novo sócio, o actor John Malkovich. Não foi o último projecto visionário de Manuel Reis, que morreu no domingo, 25 de Março, vítima de cancro, aos 71 anos: em 2016 percebeu que o Cais do Sodré estava a tornar-se moda e aí abriu, no renovado Mercado da Ribeira, o Rive-Rouge, que também trouxe inovação: matinés temáticas.

VISIONÁRIO, CRIOU O FRÁGIL APLICANDO A SUA PAIXÃO PELA RECICLAGEM A UMA VELHA PADARIA

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LUIS GRAÑENA

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