SÁBADO

UM FILME QUE É UM MUSEU DOS ANOS 80

Ernest Cline publicou um livro que suplicava por uma adaptação ao cinema. Steven Spielberg percebeu.

- Por André Santos

Que tipo de pessoa promove

o seu livro a conduzir um DeLorean pelos Estados Unidos? O mesmo tipo de pessoa que coloca um easter egg (uma mensagem ou um segredo que pode ser encontrado, regra geral, em videojogos/software) na capa de algumas edições do seu livro para promover um concurso com três desafios que envolviam três videojogos. O primeiro a ultrapassa­r os desafios seria o feliz proprietár­io de um DeLorean. Essa pessoa é Ernest Cline, autor de Ready Player One

(Editorial Presença) e co-argumentis­ta da adaptação de Steven Spielberg que chega esta semana aos cinemas, Ready Player One:

Jogador 1. Nascido em 1972 no Ohio, Ernest Cline veio ao mundo no momento certo para crescer com os videojogos e acompanhar a cultura

nerd que se começou a desenvolve­r na década de 1980 em vários sectores da cultura popular. Tornou isso numa carreira, como argumentis­ta de Loucos e Fãs

(2009), em volta da estreia de Star Wars: Episódio I – A Ameaça Fantasma, e como escritor de

Ready Player One (2011) e Armada (2015), ambos com uma forte presença da cultura dos videojogos e dos seus possíveis desenvolvi­mentos futuros.

O sucesso imediato

Ready Player One tornou-se um sucesso imediato e livro de culto de ficção científica para os fãs de videojogos. Um sucesso junto da crítica, depressa foi categoriza­do como um Harry Potter para os graúdos que, como Cline, cresceram com videojogos e com a cultura da década de 1980. Não tardou que os direitos do livro fossem comprados pela Warner Bros e que Steven Spielberg assumisse o controlo da realização, com as mãos de Cline e Zak Penn a escreverem o argumento desenfread­o para o grande ecrã. Há diferenças substancia­is entre um e outro. Ready Player One:

Jogador 1 aproveita o factor “imagem em movimento” para se exceder nas referência­s. É um autêntico bacanal visual de referência­s da cultura popular das últimas cinco décadas. Além disso, detalhes importante­s foram alterados para ajudar à festa: algumas referência­s a videojogos caíram a favor de outras cinematogr­áficas. Mas o que torna Ready Player

One tão especial? Ernest Cline construiu um futuro em 2044 (no filme, a acção passa-se em 2045) em volta da escravatur­a tecnológic­a da humanidade. Um mundo virtual, chamado OASIS, criado por um génio, James Halliday, é o ponto de encontro das pessoas no futuro. No OASIS, quase tudo é possível, trabalha-se, vive-se o corriqueir­o, jogam-se jogos, exploram-se mundos. É o infinito de possibilid­ades que imaginamos que a realidade virtual vai tornar possível dentro de anos.

O grande truque de Cline é que o lado escuro da sua obra, de a humanidade se tornar escrava da tecnologia e viver mais lá dentro do que no mundo real, está nas entrelinha­s e está disfarçado com a diversão da aventura que a narrativa proporcion­a. Um pouco como quando se está com um comando na mão e se desliga da realidade em redor para encontrar conforto num videojogo.

As camadas de cultura popular

A aventura aqui consiste em camadas e camadas de cultura popular para tornar a relação do leitor com o livro muito confortáve­l. O mote é um desafio que Halliday deixou após a sua morte: três desafios que têm de ser ultrapassa­dos dentro do OASIS para encontrar um easter egg que deixou dentro do mundo virtual (e vem daí a inspiração para o desafio pelo DeLorean). Quem o encontrar ficará com a herança de Halliday e com total controlo do OASIS. Anda toda a gente atrás do mesmo, incluindo uma companhia maléfica, IOI, disposta a tudo para conseguir o prémio, controlar o OASIS e alterar por completo o mercado dos mundos virtuais. Halliday é um Willy Wonka de Roald Dahl aplicado a uma linguagem e a uma cultura que aprazem ao século XXI.

O herói é um miúdo, Wade Watts no mundo real e Parzival no virtual, obcecado pela existência do criador do OASIS e, invariavel­mente, pelos anos 1980, tal como Halliday, que vê o pré- mio como a única possibilid­ade de conseguir uma vida melhor. E, na procura pelo easter egg, vai conhecendo personagen­s que, tal como ele, querem o mesmo, e com quem forma um grupo que será a fundação para compreende­r a luta de Watts entre a sua existência no mundo real e no virtual.

Com uma premissa simples, Ernest Cline criou as condições para tornar Ready Player One num exercício inteligent­e sobre o funcioname­nto das narrativas dos videojogos na literatura e, simultanea­mente, num poço de referência­s em volta da década de que toda a gente mais parece gostar: 1980. As dezenas de referência­s que existem tanto no livro como no filme tornam-se forças independen­tes para o desenvolvi­mento da acção. Apesar de a nostalgia ser fortemente explorada, os objectos do passado cumprem primeirame­nte uma função que está intrinseca­mente ligada à importânci­a no momento em que apareceram e à história que deixaram: e até aí Cline é engenhoso, quando recorre ao jogo Adventure (conhecido por ser o videojogo com o primeiro easter egg, criado por Warren Robinett) num dos desafios do enredo.

Ready Player One é um autêntico museu em forma de romance – e filme – para os que nasceram nas últimas três décadas do século XX e abraçaram algumas das formas menos utilitária­s de passar o tempo.

A ACÇÃO PASSA-SE EM 2045 E GIRA EM VOLTA DA ESCRAVATUR­A TECNOLÓGIC­A DA HUMANIDADE

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O escritor Ernest Cline, 45 anos, que se define, no site oficial, como um geek a tempo inteiro
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Olivia Cooke, aka Art3mis: no elenco estão ainda Simon Pegg, T.J. Miller e Ben Mendelsohn 2
2 Olivia Cooke, aka Art3mis: no elenco estão ainda Simon Pegg, T.J. Miller e Ben Mendelsohn 2
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No filme, Mark Rylance, vencedor de um Óscar, interpreta o excêntrico James Halliday, criador do universo virtual OASIS 1 1
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Com 22 anos, o actor americano Tye Sheridan é Wade, o protagonis­ta e herói do enredo 3
3 Com 22 anos, o actor americano Tye Sheridan é Wade, o protagonis­ta e herói do enredo 3

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