SÁBADO

Jonathan Safran Foer: “A liberdade é ser-se aquilo que se é”

O escritor norte-americano regressa aos romances 11 anos depois do último, Extremamen­te Alto, Incrivelme­nte Perto. Aqui Estou tem quase 700 páginas e é sobre o fim de uma família e de um país. Pretexto de conversa.

- TEXTO ÁGATA XAVIER

“Porco árabe, chinoca, puta, paneleiro, monhé, porco judeu e nigger.” Foram estas as palavras que Sam, miúdo de 13 anos, e judeu à espera de um bar mitzvá que não compreende, terá escrito num papel descoberto por um professor. Os pais, Jacob e Julia, chamados ao gabinete do director, dividem-se: o pai não acredita que tenha sido o filho, enquanto a mãe acha que sim. A meio da discussão, tão exasperant­e quando divertida, há um spoiler de Instinto Fatal. Jonathan Safran Foer está de regresso ao fim de 11 anos, dois filhos, um divórcio, um ensaio, de nome Comer Animais (2009), e um exercício literário-artístico, Tree of Codes (2010), no qual “escavou” palavras de Bruno Schulz. Longe ficaram os dois romances anteriores: Está Tudo Iluminado

(2002), adaptado ao cinema por Liev Schreiber e com Elijah Wood no papel principal, e Extremamen­te Alto, Incrivelme­nte Perto (2005), também adaptado ao grande ecrã, mas por Stephen Daldry, com Tom Hanks e Sandra Bullock no elenco.

Aqui Estou, cuja versão em português surge agora publicada pela Alfaguara, é o aguardado romance de um dos autores mais queridos dos norte-americanos (e não só). O primeiro romance, publicado quando tinha apenas 25 anos, catapultou-o para a esfera do escritor-celebridad­e – estatuto consolidad­o pela The New Yorker quando o integrou, em 2010, na lista 20 under 40, uma espécie de manual sagrado dos jovens escritores a seguir.

Com humor e sarcasmo, Foer escreve sobre o divórcio iminente do casal Bloch, a queda de Israel e o que é isso de ser-se judeu na diáspora: será “respeitar o sabat (...) com o chalá [pão comido no sabat e na sacola judaica] da Whole Foods, sumo de uva Kedem e velas de cera de abelhas em vias de extinção em candelabro­s de prata de antepassad­os extintos”, como se lê no início do livro? O escritor estava em casa num dia de neve – “É mais bonito do que estar só a chover, eu sei”, diz, do outro lado do telefone (e do Atlântico) –, ao conversar com o GPS sobre o que é ser um judeu não religioso, como se escrevem 680 páginas “sem querer” ou se sobrevive a um bar mitzvá.

Também teve um bar mitzvá? Como correu?

Foi assustador! Ainda por cima eu era um miúdo que andava sempre assustado e nervoso [Foer fala com frequência de um acidente que teve numa aula de Química, no qual se queimou, e como esse episódio lhe marcou a infância]. Não teve muito a ver com a experiênci­a do Sam, do livro, mas também não era algo que quisesse fazer. Nunca compreendi o significad­o de tudo aquilo, mas acabou por ser uma experiênci­a importante.

Faz sentido para um miúdo de 13 anos a viver em Washington ter uma experiênci­a desse tipo, carregada de secularida­de e tradição que não compreende?

De certa forma, toda a gente se debate entre o mundo moderno e a tradição, no modo como a história condiciona, por exemplo, a família que se tem, carregada de tradições e de uma certa identidade nacional – é como definir aquilo que é ser-se português, por exemplo. O judaísmo destaca-se ainda mais porque as tradições são tão antigas e pouco modernas que se tornam, ao mesmo tempo, atractivas e entusiasma­ntes. Parte daquilo que, para mim, torna a tradição valiosa é a sua falta de sentido. É como um salto de fé que não existe noutros contextos. Não sou uma pessoas religiosa, nem absorvo ou pratico rituais que impliquem a interacção entre realidades modernas e antigas.

A certa altura, Sam diz que a sua identidade judaica é uma farsa. Como moldou a sua?

A maior parte das vezes concordo com ele. Não choca com os meus valores e crenças, mas tenho uma história dual, em que uma avó é judia e a outra não. A minha mãe nasceu na Europa e há um forte choque cultural, por um lado, com valores judaicos que sobreviver­am durante milhares de anos – e vejo isso como algo positivo e valioso. Mas também tenho muitas perguntas e resistênci­as por crescer na modernidad­e. No fundo, há muito para aprender com esses valores.

Uma das coisas que Sam agradece é não ser filho único, porque o amor dos pais seria um fardo demasiado pesado para suportar sozinho. Agora que é pai, o que acha que é mais complicado: ser pai ou ser filho?

NASCEU EM WASHINGTON A21DE FEVEREIRO DE 1977. AOS 25 ANOS PUBLICOU O PRIMEIRO LIVRO, ESTÁ TUDO ILUMINADO

São mundos tão diferentes. No fundo é como tentar perceber se é mais difícil ser novo ou velho. Quando somos novos não temos a capacidade de exprimir por palavras aquilo que sentimos, o cérebro ainda não está totalmente alinhado e isso pode trazer muita frustração e a sensação de dependênci­a dos pais – o que traz alguma alienação e vulnerabil­idade. Por outro lado, quando se é adulto há toda uma série de preocupaçõ­es, como o confronto com a própria mortalidad­e, a noção de que outros dependem de nós, que temos responsabi­lidades, o desejo de fazer as coisas bem, ter uma vida boa.

Em Aqui Estou faz coincidir um divórcio e um terramoto. Podem ser ambos destruidor­es, mas, ao mesmo tempo, garantem que algo de novo – bom ou mau – nascerá a partir daí...

É isso, não significan­do o fim necessaria­mente um início. De certa forma, podemos ver este livro como sendo depressivo, pessimista e com diferentes tipos de destruição: o fim de um casamento, o fim de uma família, o fim de um país, de uma relação cultural. Ou vê-lo como algo carregado de esperança. Podemos ver a história de Jacob [o pai] como sendo de esperança. Não está claro se é o fim se o princípio, se é deprimente ou esperanços­o, creio que é ambos.

Alguns críticos e leitores dizem que os Bloch lembram a família Glass de À Espera no Centeio, porque os miúdos são todos brilhantes. Também podem lembrar a família Foer, vocês são três rapazes e todos são escritores...

Não estava decididame­nte a pensar na família Glass quando escrevi o livro, mas li o Salinger, claro, por isso ele estará presente de alguma maneira. Há algumas semelhança­s com a minha família, mas são muito superficia­is. Sim, somos três rapazes, só que pouco mais há além disso. Não conseguimo­s evitar escrever a partir das nossas experiênci­as, quer tenham sido vividas por alguém que conhecemos, quer tenham sido vividas por nós. Não fiz um esforço para isso, mas também não vejo razões para não usar a minha “caixa de ferramenta­s” emocional.

É o primeiro romance que escreve na terceira pessoa e, ao mesmo tempo, aquele em que se tentam encontrar mais semelhança­s com a sua vida. Já referiu que o humor que usa neste livro é muito semelhante ao seu...

É autobiográ­fico em termos de sensibilid­ade. Divorciei-me [de Nicole Krauss, também escritora], não vou fingir que isso não me aconteceu, mas não teve nada a ver com o divórcio do livro, nem com o que aconteceu a seguir. Nunca escrevi nada, nem mesmo neste livro, em que as pessoas que conheço se revejam. Nunca ninguém me disse “como foste capaz?” ou “como conseguist­e escrever sobre mim?”. Percebo a curiosidad­e dos leitores, só que não penso muito nisso.

Está cansado de responder a essa questão?

Nem por isso, também o queria saber se não fosse eu [ri]. Consigo perceber o interesse e não é algo sobre que me aborreça falar.

Publicou o primeiro livro aos 25 anos e em 2010 fez parte da lista 20 Under 40 da The New

Yorker. Como foi alcançar o sucesso tão novo e o que fez isso por si e pela sua escrita?

Tive muita sorte quando era novo e grande parte disso aconteceu precisamen­te por ser novo. Seria naïf ou ingénuo achar o contrário. Quando o meu primeiro livro saiu, em todas as entrevista­s, críticas e perfis, a minha idade era o foco. Nunca quis que assim fosse, queria escrever um livro de que gostasse e que fosse esse o assunto. Mas não posso negar que beneficiei disso. Estou feliz por já ter passado, por agora ser lido pelo que escrevo e não pelo que sou, mas não tem piada nenhuma envelhecer. É assustador e triste.

Mas pode ser libertador...

Absolutame­nte. A liberdade não é apenas viajar pelo mundo, fazer o seu próprio horário ou ter de pagar contas. A liberdade é ser-se aquilo que se é. O que por vezes pode trazer limitações também... os miúdos, por exemplo, tiram-me uma quantidade enorme de tempo, mas ajudam-me a ser quem sou.

Escreveu o primeiro livro numa mesa de costura na Polónia e o segundo na Biblioteca de Nova Iorque. Aqui Estou foi escrito em casa, de computador sobre os joelhos e uma manta “a proteger os tomates”, como escreveu numa crónica do The Guardian. Conseguiu escrever o seu maior livro [são quase 700 páginas] na mais desconfort­ável das posições...

Aprendi a escrever em casa, sobretudo. Antes achava que tinha de o fazer noutro lado. Andava sempre à procura do sítio perfeito, da secretária certa, estava constantem­ente a mexer-me. Mudei muito com este livro – e mereci essa mudança. Se fosse um actor ia precisar de um guião de um filme, se fosse músico ia precisar das minhas partituras, ou de outros músicos até. Como escritor, só preciso de mim. Com este livro quis de forma consciente assumir a responsabi­lidade por completo e, literalmen­te, trazê-lo para casa.

Vive em Nova Iorque há muitos anos mas já disse que, por vezes, se arrependia de não ter ficado a morar em Washington com a família. Onde é que se sente mais em casa?

É muito difícil viver longe dos pais e dos irmãos. No entanto, há algo de extremamen­te poderoso

AQUI ESTOU FOI A RESPOSTA DE ABRAÃO QUANDO DEUS LHE PEDIU PARA SACRIFICAR O FILHO. TAMBÉM FOI O QUE DISSE A ISAAC, O SEU FILHO, QUANDO ESTE O CHAMOU

em viver no sítio onde crescemos enquanto pessoa. Já vivo em Nova Iorque há 20 anos, foi toda a minha vida adulta.

Esteve 11 anos sem publicar um romance. O que andou a fazer?

Muitas coisas. Publiquei um livro de não ficção a que dediquei muito tempo e pelo qual tenho um carinho especial [refere-se a Comer Animais ,um ensaio sobre a indústria alimentar norte-americana]. Fui pai de dois rapazes. Dou aulas [em Princeton]. Fiz muitas coisas, só não escrevei um romance durante grande parte desse tempo – fi-lo nos últimos dois ou três anos, quando percebi que este era o livro que queria escrever.

Algumas vez pensou que iria escrever tanto?

Nunca. Foi tudo muito estranho porque não tinha esse objectivo. Aconteceu [ri]. Acho que é um livro muito rápido e acessível, mas é longo.

Está carregado de humor e sarcasmo. Alguma vez sentiu que estava a pisar o risco?

Claro. Eu gosto de pisar o risco! Não para ser irreverent­e mas para acordar sensações e novas maneiras de ver as coisas.

Como pai e professor como vê a ideia de armar os professore­s nas salas de aula?

É uma medida maluca e imoral que não expressa o que as pessoas querem ou são. 97% das pessoas querem medidas mais apertadas no controlo de armas e no acesso aos antecedent­es criminais de quem quer comprar uma arma. É uma loucura e gostava de dizer que essa medida não vai passar, mas ando constantem­ente a ser surpreendi­do pelo que se passa aqui.

A certa altura, Sam e Samatha (o seu avatar no jogo Outra Vida) falam sobre várias cidades e referem Lisboa. O que sabe sobre Portugal?

Muito pouco, além de que estou cheio de vontade de ir aí. Tenho família no Brasil e vou lá muitas vezes e eles estão sempre a falar-me de Portugal. Nos Estados Unidos, Lisboa é vista como o sítio onde se deve estar – é a cidade do momento.

Não usa redes sociais. Porquê?

Não o faço, simplesmen­te.

E os miúdos não o chateiam com isso?

São muito novos, ainda não faz parte da vida deles. Quero mantê-los assim o máximo de tempo possível [ri].

Aqui Estou foi a resposta de Abraão a Deus quando lhe pediu para sacrificar o filho, e também a Isaac, o filho, quando perguntou pelo pai. O que faria no lugar de Abraão?

Dizê-lo a Deus e ao filho que se vai sacrificar é um paradoxo. Não consigo imaginar que Deus exista e me peça algo, nem consigo imaginar uma situação em que não protegesse os meus filhos.

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O escritor de 41 anos tem três romances publicados, um ensaio e um objecto literário-artístico

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