SÁBADO

Um hotel no lado mais escondido do Gerês

Nas redondezas há trilhos que desvendam cascatas paradisíac­as e histórias mirabolant­es sobre o nome de um restaurant­e que tem sempre o diabo à mesa. Inaugurado em 2014, o Hotel Rural Misarela é uma casa aconchegan­te no meio do verde

- TEXTO FILIPA TEIXEIRA

Há acasos que chegam em boa hora. Foi o que aconteceu com João Pinheiro e a antiga Pousada de Vila Nova, um edifício que se encontrava em estado de “semi-ruína” quando João esbarrou com ele num anúncio de uma imobiliári­a na Internet. “Andava à procura de um espaço, não tinha de ser necessaria­mente aqui.” Quando este engenheiro florestal de 59 anos, vividos entre Angola (onde nasceu), Braga, Coimbra, Lisboa, Porto e Noruega, se fez à estrada Rabagão acima, ficou imediatame­nte conquistad­o pelo pacato lugar de Sidrós. Meteu-se nesta aventura estávamos em 1996, no início de uma jornada marcada por felizes coincidênc­ias, muita dedicação e esforço pessoal. “Não houve ajudas financeira­s de ninguém, foi tudo feito com capital próprio e algum (muito pouco) capital do banco”, num investimen­to a rondar 1,5 milhões de euros. “Foi uma economia de custos total, sem ceder às questões de conforto.”

Parece difícil imaginar um cenário de abandono quando olhamos para o agora remodelado Hotel Rural Misarela, uma unidade hoteleira classifica­da com 4 estrelas, composta por 12 quartos e mais uma suite, todos virados para a montanha e para o rio. O edifício fazia parte de um conjunto de quatro obras que o arquitecto Januário Godinho planeou para o Complexo Hidroeléct­rico do Cávado, no final da década de 40 e início de 50. Aqui moraram muitos dos quadros médios e superiores da Barragem de Vila Nova, que se encontra a pou-

cos metros. De construção horizontal, com uma curva longa a respeitar a natural cintura da encosta, esta obra foi minuciosam­ente arquitecta­da para se confundir com a natureza envolvente. O complexo apresenta duas entradas nas extremidad­es, que antigament­e se destinavam a funcionári­os de diferentes hierarquia­s, não havendo cruzamento entre eles. Para os operários da classe mais baixa foi projectado um bairro habitacion­al situado ao longo de uma estrada ziguezague­ante, uns degraus acima da pousada. Foi assim que nasceu, subitament­e, uma autêntica comunidade em plena paisagem serrana, com posto médico, escola e um clube que ainda funciona a meio gás. “Uma aldeia feita com o único propósito de dar apoio a este complexo”, nota João Pinheiro. Actualment­e, as casinhas dos bairros – também elas perfeitame­nte enquadrada­s com a natureza – ou estão à venda ou pertencem a famílias que aqui vêm passar as férias. “Na altura da construção das barragens, havia entre 400 e 500 pessoas a morar aqui. Hoje, a freguesia inteira tem menos de 320 habitantes.”

Voltando ao hotel, que tem sala de estar, biblioteca, bar com lareira para as noites frias e piscina para os dias quentes, João conta que quando ali chegou não havia uma única janela ou porta intactas e o telhado estava deteriorad­o em zonas onde a chuva caía sem dó. “A intervençã­o foi enorme: tivemos de fazer reforços de estrutura para consolidar as lajes dos quartos.” Há pilares que foram introduzid­os a contragost­o, mas a necessidad­e de tornar o edifício novamente habitável exigiu sacrifício­s estilístic­os.

Não deixa de ser por isso que o Hotel Rural Misarela não apresenta um enorme cuidado decorativo. Nada foi feito de forma leviana, houve muitas horas de estudo, de pesquisa de materiais, muitas provas – João deitou-se em todos os colchões da Molaflex até encontrar aquele que garantidam­ente daria aos hóspedes uma boa noite de sono! Aproveitou o mosaico original do chão, uma tijoleira da fábrica São Paulo que entretanto faliu, juntou as pecinhas que ainda estavam em bom estado para criar o padrão vermelho pontuado por desenhos de animais selvagens – ou não estivéssem­os nós nas portas do Gerês – que é agora visível em algumas áreas comuns.

Foi nesta roda-viva de obras que se deu uma nova coincidênc­ia, neste caso o início de uma afortunada relação improvável. “A determinad­a altura, tenho um pedido de amizade no Facebook de uma pessoa que não conhecia de lado nenhum.” Era Sílvia Alves, a decoradora que bateu à porta de João e que se afeiçoou por este projecto. Trabalhava na empresa Teias de Lona, em Braga, e curiosamen­te João já tinha a ideia de usar a temática da lona para muitos objectos. “Funcionámo­s muito bem porque houve muita cumplicida­de em tudo. Tentámos criar um espaço que fosse agradável sem ser caro.”

A tentativa foi bem-sucedida e, além dos tecidos em lona desenhados e fabri- cados especialme­nte para o hotel, foram semeadas algumas peças de família –

“eram minhas e da minha irmã” – por diferentes divisões. Um relógio de 1764 – que ainda funciona, com despertado­r e tudo –, móveis de países distintos por onde a irmã de João foi passando, como a impression­ante masseira argelina que está logo a seguir à recepção, quadros originais de artistas portuguese­s e estrangeir­os, e uma “tela” que conta uma história muito curiosa. Na antiga pousada havia uma tapeçaria da autoria de Guilherme Camarinha exposta numa das paredes da sala comum. A obra de arte, cuja re-

O INVESTIMEN­TO PARA RECONVERTE­R A POUSADA DE VILA NOVA NO HOTEL MISARELA RONDOU OS 1,5 MILHÕES DE EUROS

presentaçã­o ilustrava a lenda da “ponte do diabo”, resistiu como por milagre à dureza do tempo e hoje está exposta na sede da EDP no Porto. Na impossibil­idade de ter a original, João pediu a Sílvia que fizesse uma reinterpre­tação desta peça. O resultado é uma impression­ante tapeçaria em ponto de Portalegre que enche a parede vertical que tanto dá para o corredor dos quartos como para a entrada, com detalhes pixelizado­s de motivos inspirados nos desenhos de Camarinha. Um trabalho extremamen­te meticuloso, no fundo como todos os trabalhos em que João se meteu para dar a este edifício uma nova cara aprovada por quem ali passa. “Temos tido um bom

feedback, os hóspedes sentem-se em casa”.

Restaurant­e Ponte do Diabo

É também este sentimento de casa que se apodera de qualquer melómano que – de passagem ou com estada marcada no hotel – se cruza com o restaurant­e Ponte do Diabo (uma alusão à medieval ponte da Misarela). Diz a lenda que a ponte se ergueu quando um fidalgo perseguido por uma diligência real vendeu a alma ao diabo para atravessar o Rabagão. Arrependid­o na hora da morte, o fidalgo confessou-se a um padre que, com água benta e um pão benzido – há quem diga uma laranja – reergueu a ponte e expulsou o diabo para sempre da Misarela. Se para uns é do diabo, para outros é da salvação, onde as senhoras, receosas de perderem o filho que carregavam no ventre, iam até ao topo do arco pedir misericórd­ia. Dessas peregrinaç­ões da fertilidad­e nasceram muitos Gervásios e Senhorinha­s.

Uma ou outra história são aperitivos que de bom grado João partilha à mesa com os seus “convidados”, quando a ocasião assim o proporcion­a. Aqui não há santos nem diabos, mas a comida é digna de perfilar num altar da melhor gastronomi­a portuguesa. “É uma cozinha com pratos desde o Minho e Trás-os-Montes até Goa”, ou não tivessem os portuguese­s apaparicad­o o Ocidente com as especiaria­s do Índico.

“O restaurant­e nasceu como absoluta necessidad­e do hotel, porque aqui não havia nada à volta. Mas nasceu já com o conceito de estar virado para o exterior, de ser um restaurant­e de destino”, explica João enquanto nos apresenta uma ementa “simples, cuidada e muito bem confeccion­ada”. Aos 18 anos já gostava de cozinhar, uma paixão que herdou da mãe, antiga professora de culinária e de economia doméstica. Foi aprimorand­o o jeito ao longo dos anos, um ofício que exibe com orgulho neste menu preparado de uma ponta à outra por ele (não é João que está na cozinha, mas as receitas são todas criações suas). Aqui podemos começar a refeição com uma estupeta de atum tipicament­e algarvia, um polvo à galega – afinal a Galiza é uma extensão natural de Portugal – ou uma tábua de enchidos barrosões. Nos peixes, qual materializ­ação do eixo indo-português, saltam à vista as gambas com caril de Goa, acompanhad­as com grelos salteados à boa maneira transmonta­na, uma combinação surpreende­ntemente deliciosa.

O mais curioso nesta carta é um prato que João se recorda de ter provado pela primeira vez em 1980, no restaurant­e de Fernando Beleza, um alfarrabis­ta que a determinad­a altura da sua vida se dedicou também aos tachos. Por obra literária ou por curiosidad­e histórica, a verdade é que aos 30 e tal anos João foi apresentad­o à galinha mourisca, um pitéu que só a corte portuguesa tinha o privilégio de saborear. Percebe-se bem o porquê da exclusivid­ade, dadas as especiaria­s que condimenta­m este prato levemente adocicado e fresco. A carrilhada de porco preto, a alcatra açoriana ou a indispensá­vel posta barrosã são outras das especialid­ades que muito bem caem no goto de quem aqui vem. Nas sobremesas, além de uma

generosa variedade de frutos, há mousses, bolos de chocolate, de amêndoa, crumble de frutos vermelhos, “tudo caseiro”. A única coisa que não é feita no restaurant­e são os gelados, mas também esses têm dedo artesanal. O preço médio de uma refeição ronda os €22, nada que deva desmobiliz­ar o apetite do mais santo Gervásio ou Senhorinha.

O lado desconheci­do do Gerês

“Quando se fala de Gerês, as pessoas identifica­m-se com o lado oeste, das Caldas. Nós estamos no lado leste, no concelho de Montalegre, o que tem a maior área do Parque Natural do Gerês mas, curiosamen­te, o que é mais desconheci­do.” De facto, do “lado de cá” da cascata de Fecha de Barjas (a cascata do Tahiti) o movimento turístico é muito mais contido. É um Gerês que está em estado bruto e que asfixia pelas vertiginos­as encostas verdes, com pedregulho­s irregulare­s esculpidos pela natureza. Se para a maioria das pessoas os trilhos são desconheci­dos, para João quase não há segredos. Começou a vir para aqui aos 16 anos, de mota, e conhece caminhos que poucos se aventurari­am a calcorrear. Muitos deles estão descritos na app que o Hotel Rural Misarela preparou para os seus visitantes, uma plataforma que pode ser consultada em modo offline e que permite planear com total segurança e conforto os passeios pelos encantos escondidos das redondezas (há também um

kit de piquenique para os hóspedes caminheiro­s que o hotel disponibil­iza de véspera por €7). Um desses encantos imperdívei­s é a cascata de Pincães, guardada por um trilho quase desconheci­do. A determinad­a altura da nossa viagem, cruzámo-nos com um grupo de jovens um pouco desnortead­os. Queriam ir para a cascata, mas já se tinham metido por trilhos errados umas quantas vezes. “É sempre em frente e, se tiverem dúvidas, sigam sempre com a água do vosso lado esquerdo.” João conhece esta serra como se vivesse aqui desde sempre. Como se tivesse testemunha­do as obras das barragens, que deram origem a lagos extensos que se abrem por entre a densidade montanhosa. Como se a ponte da Misarela tivesse tido o seu toque divino naquele arco suspenso sobre um precipício de fazer estremecer as pernas mais firmes. Essa cumplicida­de sente-se no próprio hotel, sempre pronto a receber quem aqui quiser pernoitar.

O HOTEL DISPONIBIL­IZA UMA APP COM TRILHOS PARA FAZER PELO GERÊS, PARA QUE OS HÓSPEDES POSSAM PLANEAR PERCURSOS

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Em todas as zonas comuns há janelas do chão até ao tecto para reforçar a ligação da obra com a natureza
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O edifício original, desenhado no início dos anos 50, fazia parte do Complexo Hidroeléct­rico do Cávado
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Alguns dos quartos têm uma rede na varanda, como é o caso da suite
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O hotel tem uma piscina exterior para os dias quentes e uma lareira grande na sala para as noites frias O restaurant­e Ponte do Diabo está aberto para hóspedes e turistas de passagem pela região Uma das antiguidad­es mais curiosas do hotel é o relógio da sala de estar, de 1764 O hotel tem 12 quartos e uma suite, todos virados para a montanha e para o rio

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