Finanças pessoais
Depressões, familiares em ruptura e amigos de costas voltadas. O verbo afiançar pode ser sinónimo de pesadelo e penhora do ordenado. Muitos recorrem à ajuda financeira.
As piores histórias de fiadores que ficam com os prejuízos
São 15 anos de pesadelos, noites mal dormidas e a ser bombardeada com notificações do banco e ameaças de penhora. O fantasma da execução ao património de Maria Fernandes – já de si escasso – persegue-a desde 2003, um ano depois de ter assinado uma escritura. Maria é fiadora, amarrada ao crédito à habitação dos tios, perto de Coimbra. Tantas vezes falham sem razão aparente, como a dívida e os juros crescem, implacáveis, para 95 mil euros, mais 7 mil que o valor inicial do empréstimo. “Tudo isto causou-me instabilidade emocional. Isolei-me, com receio do presente e do futuro”, queixa-se à SÁBADO, enquanto folheia a pilha de dívidas arquivadas num dossiê. Sem a perspectiva de soluções a curto prazo, a professora de liceu, solteira de 50 anos e sem filhos, fecha-se em casa de baixa médica por depressão. Há 10 anos que vive na sombra, receando que a qualquer momento lhe tirem o apartamento (hipotecado em 2001, no mesmo banco onde os tios contraíram empréstimo). Os pagamentos por multibanco são outra fonte de ansiedade, pois teme ficar sem saldo. Nestas ocasiões, pode ter tonturas, suar das mãos e os batimentos cardíacos dispararem. Dramas financeiros idênticos aos de Maria chegam “às centenas” à empresa de renegociação de créditos de Florbela Oliveira, que acompanha o caso dela. E mais virão com o boom imobiliário, prevê à SÁBADO a economista. “Brevemente teremos problemas sérios com o cumprimento desses créditos, o que se vai re-
COM O BOOM IMOBILIÁRIO, A ECONOMISTA DIZ QUE “TEREMOS PROBLEMAS SÉRIOS”
flectir negativamente nas famílias.” Foi numa noite do início de 2002, que Maria aceitou, sem hesitar, ser fiadora dos tios, ele motorista e ela ex-empregada hoteleira. Desconhecia os riscos, quando a tia, à época com 45 anos e um emprego estável, lhe fez o pedido por telefone. Enumerou-lhe os problemas estruturais da casa antiga, arrendada, até chegar ao ponto-chave. “Estavam desesperados. Já tinham avançado com o contrato de promessa, o processo de empréstimo estava em andamento e não tinham mais ninguém a quem recorrer”, recorda. Lamenta a sua ingenuidade: “Os meus pais avisaramme que o passado deles não era fa-
moso em dívidas. Mas confiei, achei que não me iriam prejudicar se as coisas corressem mal.”
Tudo descarrilou a partir de Agosto de 2003, quando Maria recebeu uma carta do banco de um montante em falta (80 euros). Outros se sucederam nos meses e anos seguintes. As dificuldades de resolução do problema agravam-se
pelo facto de a devedora e a fiadora terem créditos no mesmo banco. “Esta circunstância limita um pouco as negociações. Mas podem retardar os efeitos de um eventual ataque ao seu património pessoal”, explica Florbela Oliveira. Mas há fiadores em apuros com finais felizes (dadas as circunstâncias, claro). A fórmula? Liquidez imediata. O perdão de parte significativa da dívida pode acontecer desta forma, como exemplifica a economista: “A negociação durou um mês, foi árdua, mas conseguimos. A possibilidade de entrega imediata de um montante facilita, em parte, a negociação. Embora pareça implicar um esforço inicial adicional, este revela-se compensador.”
Perdão de parte da dívida
Cristina Machado, 41 anos, acreditou nas negociações conduzidas pela equipa de Florbela Oliveira. Tirou a corda da garganta em Maio passado, quando deixou de ser fiadora da sobrinha e se libertou das penhoras em curso: há ano e meio que lhe tiravam, todos os meses, o subsídio de refeição de 100 euros e os de férias e de Natal, o reembolso do IRS e parte do salário do marido. Depois de muitas conversações, o banco credor deu-lhe 48 horas para pagar 16.500 euros (perdoavam-lhe parte substancial da dívida, que já ia nos 70 mil euros). “Recolhi tudo das contas-poupança, o que acumulei numa vida inteira, mas livrei-me deste pesadelo”, conta à SÁBADO. Sente-se mais aliviada, embora desiludida com a devedora original. “Enviei um SMS à minha sobrinha a informar que o caso estava resolvido e do valor que me devia. Respondeu-me que teria de ir novamente à televisão – porque expus o caso no programa da Júlia Pinheiro – pedir-lhe desculpas publicamente por ter difamado o seu bom-nome.” Cristina Machado resolveu não alimentar polémicas. A casa em dívida – um T2 na Maia, com uma suíte, varandas e lugar de garagem – foi executada pelo banco. Negociar é o verbo certo com as entidades credoras. Bem pode dizêlo Fernando (nome fictício), 46 anos, mais um fiador, que em Julho passado recebeu uma carta registada com ameaça de penhora dos seus bens imobiliários e financeiros. “Assusteime. Poderia ficar sem casa”, conta à SÁBADO. Os prejuízos iriam atingir a filha mais velha, a estudar no Porto: “Teria de voltar sem acabar o curso.” Um amigo dos tempos de liceu, ex-colega numa empresa de moldes, foi a causa dos problemas. “Não mantenho a amizade com ele, porque deixou o processo chegar àquele ponto sem nunca ter tido uma conversa comigo”, lamenta Fernando. Aceitou ser fiador em Junho de 2015, para um crédito de sete anos. O banco iria financiar-lhe o sonho de quatro rodas (uma carrinha para a família), no valor de 19.788 euros, mas não contava que a empresa onde trabalhava fosse à falência. Deixou de pagar o crédito no início de 2018. Fernando recorreu ao Doutor Finanças, como é conhecido Rui Bairrada. “Liquidou a dívida em Setembro de 2018, depois de fazer a transferência do seu crédito à habitação para outro banco, com o reforço de hipoteca de 15.000 euros”, explica à SÁBADO o CEO daquela consultora financeira. Deixa um aviso aos potenciais fiadores: não se esqueçam da protecção prevista na lei, o benefício da excussão prévia, “ou seja, o banco só poderá exigir ao fiador o pagamento da dívida depois de esgotar as hipóteses de pagamento baseado no património do proponente ao crédito”.
“CONFIEI, ACHEI QUE NÃO ME IRIAM PREJUDICAR SE AS COISAS CORRESSEM MAL”, DIZ UMA FIADORA