SÁBADO

O megafone do capitão Maia

- Director-geral editorial adjunto Eduardo Dâmaso

O cronómetro que contava o tempo da maldita guerra acelerava por alturas do Natal. Um dia parou. Muito antes de chegar aos dias do desfile dos soldados que mandavam, no preto e branco da RTP, votos de boas festas para a família. Parou nessa inesperada primavera de alegrias ainda maiores. Parou quando o capitão Maia irrompeu com os seus tanques por Lisboa, também com um megafone na mão, a gritar que estava ali para nos fazer felizes. Logo não percebemos nada. Não percebemos o que se estava a passar, a não ser que algo se estava a passar, tais foram os primeiros cuidados dos nossos pais, que não nos deixaram sair de casa e ir brincar para os campos do adro da igreja ou do castelo. Péssima novidade para quem passava os dias e as tardes daquele Alentejo odemirense entre a planície, a serra e o mar, a jogar à bola, a brincar aos índios e cowboys. A estragar os matraquilh­os do clube ou a apurar a arte das três tabelas num velho bilhar com pano já muito fustigado pelos principian­tes. Para quem passava as longas tardes estivais a fazer jogos de caricas e corridas de bicicletas nos 100 metros de estrada antes de chegar ao jardim da Fonte Férrea. Sempre com uma ou outra cabeça partida, mas com a felicidade eterna de estar entregue a si próprio.

Pois o capitão Maia, homem inesperada­mente dotado para metáforas, para o humor e a gargalhada, como viria a perceber muitos anos depois, quando vi a entrevista histórica que deixou no projeto de história oral do Centro de Documentaç­ão 25 de Abril, da Universida­de de Coimbra, lá comandou umas operações de que não percebemos patavina. A única coisa em que reparámos foi que, nos dias a seguir a esse que trouxe uma primavera diferente, as pessoas andavam mais agitadas do que o costume. Muito mais expansivas. Falava-se de liberdade, de manifestaç­ões, de partidos, dos comunistas e dos outros, do Cunhal e do Soares, do Otelo e do Salgueiro Maia, de camionetas a abarrotar de gente que ia festejar o 1º de Maio a Lisboa, de eleições vindouras, da guerra que ia acabar. Tudo pedaços soltos de um quadro de novas e garridas cores mas que não conseguíam­os juntar para lhe dar uma qualquer visão de conjunto. Fixámos a liberdade e o alívio de perceber que já não íamos para a guerra. E dos nossos tenros anos pré-adolescent­es fixámos Salgueiro Maia, o homem das chaimites e do megafone, o herói que invadiu as nossas brincadeir­as. Foi pelas palavras de Salgueiro Maia, pela compreensã­o do que fez, pela pureza de regressar à sua vida e ao quartel, pela coragem do 25 de Abril e dos palcos da guerra na Guiné, quando enfrentou os caminhos da morte, com muitos outros, para libertar os que estavam reféns no quartel de Guidage, foi por ele que procurei construir a memória de um tempo que não vivi mas que dominava por completo a minha existência, o espectro da guerra e da ditadura. Foi pelos olhos e pela palavra de Salgueiro Maia que me construí, nos valores e na relação com Portugal e o mundo. Hoje, que vivemos já mais tempo em liberdade do que outrora em ditadura, saibamos honrar a memória de Salgueiro Maia. Saibamos reparar a ignomínia do que sofreu em democracia, aquela que ajudou a conquistar, quando um governo e um presidente da república o tentaram meter na arrecadaçã­o da história, valorizand­o mais o direito de um pide a uma pensão do que o herói mais puro de Abril.

 ?? ??
 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal