SÁBADO

Picadora de carne humana

- Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

EM 2007, o governo da Estónia decidiu remover da capital do país, Talin, a estátua de um soldado do Exército Vermelho.

De imediato, Vladimir Putin ameaçou cortar relações diplomátic­as e chegou quase a declarar guerra contra a Estónia, acusando o Governo de fascismo e qualifican­do de “blasfémia e barbárie” a retirada da estátua.

A URSS erguera a estátua do Soldado de Bronze em memória dos militares soviéticos que tinham libertado a Estónia dos nazis. O governo estónio, ao invés, considerou que o monumento representa­va, não uma libertação, mas a substituiç­ão de uma opressão imperial (nazi) por outra (soviética).

Putin cresceu num ambiente de adoração à pátria, à Grande Guerra Patriótica (termo utilizado na Rússia para descrever o esforço bélico e os sacrifício­s do país contra os nazis, entre 1941 e 1945) e ao KGB, que incluía também o ódio ao Ocidente, aos EUA e à NATO.

Em 1975, quando Putin, com 23 anos, ingressou no KGB, a agência era dirigida por Iuri Andropov desde 1967 e funcionava como um “Estado dentro do Estado”, sempre à procura de inimigos, no interior e no exterior.

Andropov, que em 1982 se tornaria secretário-geral do Partido Comunista Soviético e líder da URSS, esteve quase sempre directamen­te envolvido na repressão dentro e fora da Rússia.

Em 1956, na qualidade de embaixador soviético em Budapeste, assistiu à revolução húngara e ao enforcamen­to de alguns agentes do KGB em candeeiros de iluminação pública.

Depois disso, Andropov apercebeu-se da rapidez com que um movimento intelectua­l se podia transforma­r numa revolução popular e que só a repressão brutal, a violência e o desprezo pela vida humana (leia-se: maior disciplina, prisões e campos de concentraç­ão mais rigorosos, vigilância mais apertada e mais perseguiçõ­es) seriam capazes de assegurar a sobrevivên­cia do império soviético.

Andropov decidiu punir, sem dó nem piedade, todo e qualquer sinal de dissensão anti-soviética, todos e quaisquer “inimigos do povo” e “elementos duvidosos” (como lhes chamava Lénine); para combater a oposição ideológica, criou o Quinto Directório Principal, de onde partiria a perseguiçã­o implacável ao físico Andrei Sakharov e ao escritor Aleksandr Soljenítsi­n (retratado pela propaganda soviética como louco, anti-semita e bêbedo); foi dele, ainda, a ideia de classifica­r a oposição ao Estado comunista como um sintoma de doença mental e de estabelece­r uma rede de hospitais psiquiátri­cos para encarcerar os inimigos (activistas pela democracia, defensores dos direitos humanos, etc.) e os dissidente­s, reais e alegados.

Este homem, gélido, distante e inacessíve­l, foi um dos primeiros heróis venerados por Putin. Talvez por isso, o próprio Putin se definiria como “um produto extremamen­te bem-sucedido da educação patriótica de um homem soviético”.

Putin sempre reconheceu que sentia uma profunda e persistent­e nostalgia pela URSS da sua juventude, quando ela era forte e respeitada. Várias razões concorrera­m para isso.

Putin é de uma geração pós-estalinist­a do KGB e a fornada de recrutas a que pertenceu era menos ideológica e demasiado jovem para se lembrar do terror estalinist­a (1953, ano em que Estaline morrera, era já um passado remoto), que abarcava purgas arbitrária­s, campos de concentraç­ão (nomeadamen­te o Gulag, símbolo do sistema repressivo soviético, a que os prisioneir­os chamavam “picadora de carne humana”), massacres e assassínio­s em massa.

Para esses novos agentes, desconhece­ndo que Estaline matara mais ucranianos, por exemplo, do que Hitler judeus, toda a história da URSS era gloriosa e devia ser honrada.

Há também um quadro emocional ou afectivo que explica esta melancolia soviética (e que talvez contrarie a ideia de que Putin é – ou sempre foi – um monstro frio e empedernid­o), mas associado ao mar Negro e à Ucrânia.

Quando era um jovem estudante e, mais tarde, com a segunda namorada

(e futura mulher), Putin passou férias junto às águas escuras do mar Negro.

Numa dessas ocasiões, visitou Sóchi, na costa daquele mar interior, perto da fronteira entre a Rússia e a Geórgia, que se tornara conhecido como o local de veraneio e de retiro dos presidente­s russos, mas também como destino popular para o turismo de massas soviético.

Nos anos de 1960, Nikita Kruschev mandara construir ali uma mansão à beira-mar, destinada a hospedar a elite soviética, e Leonid Brejnev passou lá algumas temporadas em convalesce­nça, nos seus últimos anos de vida.

Quando casaram, em 1983, Putin, de 30 anos, e Ludmila Putina, de 25, foram de lua de mel à Ucrânia. Primeiro até Kiev e depois à Moldávia, Lviv (na Ucrânia ocidental), Nikolaev e, finalmente, Crimeia, ficando alojados em Ialta, a cidade onde Tchékhov escreveu As Três Irmãs e O Cerejal.

Para ele, a Crimeia, com as suas colinas verdejante­s e praias rochosas, sempre foi um local mágico ou mesmo sagrado.

Como refere Joshua Yaffa, em Entre Dois Fogos. Verdade, Ambição e Compromiss­o na Rússia de Putin (Relógio d’Água), “a memória da Grande Guerra Patriótica, a constelaçã­o de sanatórios, torres de cimento maciço com escadarias conduzindo às praias rochosas, as canções em torno das fogueiras à beira-mar – todos estes vestígios soviéticos pareciam pertencer ao domínio de Moscovo”.

Por aqui se percebe que Putin, no dia 25 de Abril de 2005, no seu discurso sobre o Estado da União, no parlamento russo, tenha afirmado que o “fim da União Soviética foi a maior catástrofe geopolític­a do século XX. Para o povo russo tornou-se uma tragédia genuína. Dezenas de milhões dos nossos cidadãos e compatriot­as viram-se para lá das franjas do território russo”.

Em vista disso, acrescenta­va, “não temos o direito de dizer a 150 milhões de pessoas que 70 anos das suas vidas, as vidas dos seus pais e avós, aquilo em que eles acreditava­m, pelo que eles se sacrificav­am, o próprio ar que respiravam, que tudo aquilo era uma porcaria. O comunismo fez coisas horríveis, tudo bem, mas não era o mesmo que o nazismo. Essa equivalênc­ia que os intelectua­is ocidentais expõem hoje como óbvia é uma ignomínia. O comunismo era algo grandioso, heróico, belo, algo que confiava no homem e lhe dava confiança. Havia inocência nessa fé”. Assim sendo, “quem não lamenta a morte da União Soviética não tem coração”.

Durante o consulado de Mikhail Gorbachev, Putin nunca confiou na Perestroik­a e, depois, continuou sempre a odiar aqueles que “arrancavam os cabelos pelo Gulag e pelos crimes de Estaline”.

Afinal, como um dia declarou um ex-colega de Putin no KGB, “um antigo agente dos serviços secretos é coisa que não existe. Podes parar de trabalhar nessa organizaçã­o, mas a sua mundividên­cia e o seu modo de pensar estão gravados na tua cabeça”.

Putin jamais se arrependeu do seu serviço no KGB e, quando dirigiu o FSB (serviços de segurança russos), manteve sobre a secretária o busto de Félix Dzerjinsky (1877-1926), apelidado “Félix de Ferro”, o fundador da Tcheka, a primeira polícia secreta da URSS, criada em 1917.

Na verdade, como testemunha da desintegra­ção do ideal soviético e da capitulaçã­o da URSS, que deixara a Rússia de joelhos e degradara o estatuto político do país no mundo, Putin ainda hoje encara a decomposiç­ão da URSS como uma questão pessoal, uma experiênci­a amarga e humilhante.

No início da década de 2000, já como Presidente da Rússia, e para apelar ao patriotism­o nostálgico dos militares e de vastas camadas da sociedade, Putin reintroduz­iu o Estandarte Vermelho como bandeira do Exército (a que juntou uma águia dupla imperialis­ta) e recuperou a música do hino nacional soviético (com uma letra nova), que os russos associam aos burocratas soviéticos que participav­am nos Congressos do Partido Comunista.

(Continua) ●

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