SÁBADO

Entrevista: os livros, a independên­cia, a Biologia

É branco e fala português mas não permite que o incluam num “grupo” que não seja o dos moçambican­os. Para Mia Couto, isso nunca foi uma escolha, e continua a converter a teimosia em optimismo, na vida e na escrita, até porque a luta pela independên­cia lhe

- MIA COUTO Por Catarina Homem Marques

No momento em que põe o último ponto final naquele que foi o seu projecto literário mais vasto até ao momento, a trilogia moçambican­a As Areias do Imperador– que o ocupou durante mais de três anos –, Mia Couto já está muito distante dos tempos em que o convidavam para eventos e ficavam à espera de receber “uma mulher negra”, como brinca às vezes em relação ao seu nome e ao seu estado de periferia literária africana.

Agora, já detentor de um Prémio Camões, que recebeu em 2013 (o mais relevante da língua portuguesa), e no seguimento de um crescente reconhecim­ento internacio­nal, foi finalista do prémio Man Booker. Passou ainda um ano a fazer mentoria ao brasileiro Julián Fuks – que venceu este ano o Prémio Saramago –, no âmbito de um projecto internacio­nal de apoio às artes patrocinad­o pela Rolex (antes dele, o mesmo convite tinha sido feito a escritores como Toni Morrison, Vargas Llosa, Margaret Atwood e Michael Ondaatje). O novo livro, O Bebedor de Horizontes (Caminho) – que chega agora às livrarias –, conclui uma longa viagem no rasto de Gungunhana, o último Rei moçambican­o, seguindo-o até ao exílio nos Açores, onde terminou os seus dias. Esta trilogia é a obra de Mia Couto mais “presa” à história de Moçambique, o país de onde não se imagina a sair, e onde é escritor, biólogo, tem uma fundação, a família, a confiança dos condutores dos “chapas”, lutou pela independên­cia e aprendeu a atravessar a rua para encontrar “outros” e poder continuar a “traduzir mundos”.

Chegou ao fim da trilogia, foi difícil despedir-se de Gungunhana?

Já não aguentava mais o homem [risos]. Este foi, dos três, o livro que me deu mais trabalho e mais prazer. Imaginava-me sempre como alguém a fazer tranças numa cabeleira: já está tudo ali, é só arranjar uma forma de arrumar. Passei três anos a deixar crescer esta árvore, a deixar que surgissem cada vez mais ramos, mas chega uma altura em que é mesmo preciso encontrar o desfecho. Reescrevi o livro umas 20 vezes. Até pensei deixar a conclusão para o próximo ano, mas já havia outra história com apelo dentro de mim.

Está a ser assim tão fácil avançar para um projecto novo?

Talvez esteja a ser mais fácil porque esta outra história me surgiu quando ainda estava a concluir, e vai ser um livro completame­nte diferente: autobiográ­fico, na minha cidade de nascença [Beira], cheio de episódios que me ocuparam a infância. Serviu quase como tábua de salvação.

Já está a escrever?

Sim, e estou muito divertido. É uma história mais solta. A trilogia tinha aquela disciplina das fontes, das leituras, nunca me libertei completame­nte da referência à história real.

No último volume, com a partida de Gungunhana e de todos os prisioneir­os para os Açores, teve de lidar mais de frente com a perspectiv­a do desenraiza­mento?

Só pensei nisso depois. Mas o facto de eles terem saído de Moçambique, de se confrontar­em com a

“A ideia de haverjoven­s brancosno movimento de independên­cia era tão impensável que éramos odiados”

de viver num espaço tão pequeno como é um barco, foi um bom laboratóri­o e uma experiment­ação muito feliz para mim. O sofrimento foi só o de fazer escolhas. O meu problema é sempre o facto de qualquer convite da imaginação me parecer extraordin­ário. Deixo-me ir facilmente, e depois tenho de fazer o caminho inverso. Mas pôr um ponto final não tem de ser trágico. É um gesto criativo.

A trilogia tem tido impacto junto dos moçambican­os?

Sou a pior pessoa para falar nisso, mas há pessoas que se aproximam de mim na rua para me dizer como tem sido importante para elas: descendem de uma ou de outra etnia e, de certa forma, reencontra­m-se com isso através destas personagen­s. No outro dia, um senhor mais velho disse-me que se entendia melhor agora, depois de ter lido os livros, porque é de uma família que acha que é do Sul, mas que na verdade chegou ali com o Gungunhana.

Passou um ano a fazer mentoria de um escritor mais jovem, brasileiro. Agora, ele [Julián Fuks] acaba de ganhar o Prémio Saramago…

Fiquei muito feliz. Já é um amigo, alguém que conheço e respeito muito. Ele merece que aconteça este reconhecim­ento fora do Brasil.

Como surgiu o papel de mentor?

Na primeira vez que fui abordado pela Rolex olhei para isto com uma certa relutância. Não acredito, em geral, que se possa ser tutor de alguém em literatura. Eu tenho os meus mestres, mas são por via da leitura. Tenho também uma reserva grande em relação a oficinas de escrita literária. Mas Moçambique tem-me feito mudar de atitude. Num certo momento na vida de jovens que não têm outra possibilid­ade, quando eles me batem à porta com um texto dizendo: “está aqui a minha vida...” como é que posso dizer que não estou disponível? Tenho feito isso, e a Fundação [Fernando Leite Couto] que criámos em Maputo, eu e os meus irmãos, destina-se a dar esse apoio a jovens.

Como foi o trabalho com Fuks?

Acabou em Abril. O que decidimos foi que ele também tinha de ser meu tutor. Andei a mostrar-lhe o meu trabalho numa fase preliminar. Ele recebia o meu texto com erros, anotações, com os meus medos, e isso permitia que ele entrasse dentro do meu processo. Ele fez o mesmo comigo. Percebi que fica paralisado perante a possibilid­ade de estar a fazer mal, e a única coisa que tentei mesmo fazer com ele foi desarrumá-lo. Só quero que ele deixe entrar mais o erro. Eu, por outro lado, sou muito delirante, é uma esnecessid­ade crita muito invadida pela poesia, e ele também me ajuda a saber quando parar. Gosto muito dele, é uma pessoa honesta, séria, empenhadís­simo em ser escritor. Acabámos por nos tornar amigos e sabemos que vamos continuar esta troca, coisa rara entre escritores.

Partilhar?

Sim, nesta fase tão preliminar. Faço isso apenas com um outro escritor, o [José Eduardo] Agualusa.

Tem uma empresa na área da Biologia. O que faz com que se mantenha fiel a essa ocupação?

Não é só o prazer que ainda me dá. Eu cada vez sou menos biólogo, sou mais gestor, mas parece que tenho medo de me entregar completame­nte à escrita, por ser um amor tão devorador. Depois posso não voltar, desaparece­r. A literatura continua a ser uma casa aonde vou para sonhar, mas não vivo lá. Preciso de ter outras identidade­s. Eu olho o mundo como um escritor, mas não quero ser olhado pelo mundo só como um escritor, quero ser mais plural. Já me aborrece muito aquilo de me estarem sempre a perguntar como vai ser o meu próximo livro. Quando falo com um dentista não lhe pergunto pela próxima consulta [risos]. Isso afunila, limita a relação com os outros.

Há pessoas que ambicionam poder viver só da escrita.

Cada um tem a sua maneira de resolver isso. Esta é a minha. Nunca estou inteiramen­te num lugar só. Lembro-me das anotações que a minha professora da escola primária man-

“Não acredito, em geral, que se possa ser tutorde alguém em literatura. Eu tenho os meus mestres, mas são por via da leitura”

dava aos meus pais: “Este menino nunca está realmente na escola.” Isso não me atrapalha, pelo contrário.

Do país que conheceu em criança, é isso que ainda hoje o marca?

É difícil, porque eu vivo tanto nesse estado de infância, para mal dos meus amigos e da minha família, que gostariam que eu fosse mais maduro. Mas acho que o sentimento que ainda sobrevive como um dado de cultura quase essencial é a capacidade de contar histórias, de as fabricar, que está muito ligada ao domínio da oralidade em Moçambique. Isso não mudou muito nas pessoas.

Sempre teve esse contacto, apesar de estar na cidade?

Estava na cidade, mas a cidade da Beira, onde vivi até aos 17 anos, mais do que qualquer outra cidade, escapou à lógica colonial de empurrar África para a periferia. Era um pântano, ia sendo ocupado, mas havia bolsas de África que ficavam no meio da cidade. Durante muito tempo, do outro lado da rua estavam os outros meninos, de outra raça, com outra língua. E isso foi uma bênção. Aprendi o gosto de atravessar a rua.

Para encontrar os outros?

E para que os outros entrassem também na minha casa. Os meus pais encorajava­m muito isso. Saíram de Portugal já marcados por uma opção política. Sabiam para onde iam, sabiam que havia colonizaçã­o.

Ninguém foi apanhado de surpresa?

Pelo contrário. Eu tinha 12, 13 anos e tinha o meu pai a tentar apanhar a Voz da Frelimo, que se captava de maneira clandestin­a. Ficávamos ali sentados a ouvir aquela coisa, e era quase um jogo secreto, de estarmos ali escondidos numa sala a ouvir baixinho. Não era uma família típica.

No momento em que se dá a independên­cia, quando foi preciso escolher, estava tudo muito claro?

Nessa altura já eu estava de um lado. Eu militei, e até militei na clandestin­idade. Quando fui para Lourenço Marques, para a universida­de, sabia que não ia estudar. Nós olhamos de maneira diferente para a Revolução dos Cravos, porque Portugal celebra isso como o fim de alguma coisa, e para nós esse fim não foi imediato. Demorou algum tempo até à aceitação daquilo que era a razão para a luta, que era a independên­cia. Mas aí pela primeira vez percebi, e percebi com tristeza, que aqueles que eram o sustentácu­lo do regime em Moçambique, os portuguese­s mais pobres, tinham um completo desconheci­mento da História. Para eles era genuíno pensar que Moçambique ia ser vendido aos comunistas, ou que Mário Soares era um traidor. Essa visão tão distorcida e simplista para eles era a única verdade.

Sentiu-se isso ainda mais na altura da independên­cia?

Sim, e a ideia de haver jovens brancos, como eu, que se juntaram ao movimento da independên­cia era uma coisa de tal maneira impensável que éramos profundame­nte odiados, éramos traidores. Era o laço da origem lusitana – para esta gente isso era tão forte que só se podia perceber o outro demonizand­oo. Quando a luta passou a ser mais às claras, quando houve uma tentativa de golpe no 7 de Setembro de 1974, extremou-se muito. Esse grupo que não aceitava a inde-

pendência tomou a rádio, tomou a cidade, e queria apelar a uma intervençã­o da África do Sul do

apartheid. Havia ali uma ignorância confranged­ora, que era alimentada não só pelo regime em Portugal mas pelas vizinhança­s. Aquilo é que era a norma. Nós estávamos a desarranja­r o mundo, a querer algo caótico. Acho que essa visão ainda prevalece muito em Portugal. A descoloniz­ação é um termo que nem se usa em Moçambique, ninguém descoloniz­a outro. Descoloniz­ação é uma palavra muito portuguesa. Nós libertámo-nos, tornámo-nos independen­tes. A Guerra Colonial para nós é a Guerra da Libertação. Isso é normal, isso acontece, mas acho que ainda hoje continua a parecer que foi tudo uma tragédia, que podia ter sido feito de outra forma, grande erro, como se a gente pudesse olhar a História assim.

Ouviu-se falar muito nisso com a morte de Mário Soares.

Fiquei surpreso. É como se aquilo que correu mal em Moçambique ou Angola fosse responsabi­lidade dos portuguese­s. Como se houvesse essa hipótese de se ter tido mais tempo, de se ter feito com mais calma. Não, os moçambican­os não queriam, e são responsáve­is pelos erros, pelo que foi bem feito, pela sequência dos eventos. Não foi feito por um lado só. E a partir do momento em que há um país independen­te ele tem de assumir o seu rumo.

Foi bom que a independên­cia se metesse no seu caminho – e o afastasse, por exemplo, de Medicina?

Tive uma grande sorte. Foi um momento muito privilegia­do. Aquilo criou uma ilusão. Mesmo quando estava na clandestin­idade sentia que o que fazia valia alguma coisa, mesmo que não valesse nada. A coisa só foi mais séria quando trabalhámo­s junto de soldados moçambican­os que estavam no exército português, e aí fazíamos panfletos a convidar à deserção, para que não lutassem contra os seus irmãos. Isso era sério. De resto, trabalhar entre os estudantes universitá­rios… a maior parte não queria saber, mas nós tínhamos a ideia de que estávamos a mudar o mundo.

Sentia que fazia parte de algo maior?

Sempre contestei esse esforço de estar a trabalhar politicame­nte junto da comunidade estudantil. Havia uma minoria de moçambican­os negros. Na Faculdade de Medicina, quando eu entrei, éramos uns 120 no meu ano e havia apenas oito ou nove negros. E eles muitas vezes não estavam nada disponívei­s para se distrair com política. Era um risco enorme para a aposta que a família tinha feito. Mas, mesmo que seja ilusório, cria um sentido que é um vício, uma embriaguez que fica para a vida inteira – pensares que podes ser importante, podes não ser só mais um. Não vou voltar a pensar que sou simplesmen­te um número, ou que não vale a pena. Continuo a achar que é ilusório, mas se conseguir ter 10 amigos no mundo, se conseguir ser feliz com essa gente e com a minha família, e se conseguir continuar a poder dizer o que penso...

Deixou de estar envolvido com a Frelimo e com política?

Sim, mas essa mesma Frelimo da qual me tornei distante e crítico nunca me deu qualquer sinal de que poderia estar descontent­e ao ponto de me querer silenciar. Isso faz uma enorme diferença e espero que não mude.

E não há anticorpos em Moçambique por ser um homem branco?

É muito raro. Só em situações muito específica­s, em que haja uma porta muito estreita e seja preciso escolher quem passa. De resto, acho que a maneira como sou abordado na rua pelo cidadão comum é algo que me reassegura sempre – tu és nosso, estás-nos a representa­r bem.

Como se fosse um símbolo?

É mais uma espécie de “vai lá, conta a nossa história”. Aquela ideia de quem entrega alguma responsabi­lidade ao outro. Prefiro isto de longe àquele conceito do ídolo. A maior parte das pessoas tem uma história para me contar, algo que pensa que eu depois posso partilhar.

Nunca pôs a hipótese de sair de Moçambique?

Nunca me ocorreu, nem nos períodos mais difíceis, da guerra. Às vezes, perguntam-me se escolhi ficar, mas nunca achei que fosse uma escolha. Se algum dia for empurrado para sair, como acontece na relação de poder que há em Angola, vou sair para continuar a brigar para voltar. Nunca conseguire­i escrever sobre qualquer outra coisa, sequer. Mesmo o Agualusa, mandou-me o novo romance e também não sai de Angola. Claro que, ao escrever sobre Moçambique, estou a escrever sobre o mundo, se não o livro não está bem feito...

Vê a CPLP a surgir como uma forma de criar um império?

Sim, em que o centro é Portugal, disputado pelo Brasil. Em Moçambique somos sempre a periferia. Há os africanos, que são indiferenc­iados. É um triângulo falseado, porque não é cada um com a sua existência. Há cinco países que são vistos como iguais. E há tantas diferenças. Quando se quer falar a sério, é preciso perceber que cada um é cada um. Eu teria uma certa facilidade em ter um outro passaporte para viajar, a lei permite, mas eu não me sinto bem. Acho que estas coisas não derivam de conveniênc­ia, e é mesmo cada vez mais difícil e grave entrar na Europa com um passaporte africano.

“A maior parte das pessoas tem uma história para me contar, algo que pensa que eu posso depois partilhar”

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Toda a infância foi passada na Beira, onde nasceu, com “os meninos de outra raça do outro lado da rua”
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A paixão pelo futebol em Lisboa. Ele já escreveu: “O mais belo num jogo é o que não se converte em pontos de classifica­ção, é aquilo que escapa ao relatador da rádio”
 ??  ?? A festa da independên­cia: “Os jovens brancos eram profundame­nte odiados, éramos traidores”
A festa da independên­cia: “Os jovens brancos eram profundame­nte odiados, éramos traidores”

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