SÁBADO

OBITUÁRIO

Liz Smith (1923-2017)

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Diz-se que Donald Trump foi uma criação dela, mas na verdade precisavam um do outro: ela, de matéria para alimentar a sua coluna no Daily News; ele, de um estatuto social que a fortuna amealhada com o imobiliári­o não garantia. Aconselhad­o pelo seu advogado em Nova Iorque, Roy Cohn, cuja carreira muito tinha beneficiad­o, nos anos 50, da cultura coscuvilhe­ira inventada pelo lendário Walter Winchell, Trump acolheu Liz Smith no seu quotidiano de opulência e festas. Dava-lhe as dicas, às vezes sob pseudónimo, e ela aparecia, observava e depois vertia tudo em prosas comentadas ao seu estilo: fascinada por figuras públicas, que lhe abriam as portas para a realização dos seus próprios sonhos, não as destratava, expondo podres e escândalos. Preferia o lado brilhante e invejável das suas vidas privadas – e Trump foi a mais luminosa das estrelas da sociedade nova-iorquina que ela criou. Por outro lado, a proximidad­e com a mulher dele, Ivana, dar-lhe-ia um trunfo. Foi ela que deu a Smith o exclusivo do divórcio, revelando-lhe os pormenores sórdidos e as negociaçõe­s milionária­s. A história fez dela a pessoa mais bem paga da imprensa americana: na década de 90, a sua declaração de impostos excedia o milhão de dólares. A Internet, porém, tornou-a irrelevant­e e em 2009 foi despedida do New York Post– o tablóide de Rupert Murdoch, concorrent­e feroz para onde se tinha mudado a peso de ouro. Ofereceu-se para voltar, de graça, ao Daily News. A proposta foi recusada.

Foi Walter Winchell que a moldou, de longe. Na casa modesta de Fort Worth, no Texas, onde nasceu Mary Elizabeth Smith, a 2 de Fevereiro de 1923, ouvia os mexericos dele na rádio e ansiava “pelo glamoure a agitação de Nova Iorque”, como gostava de lembrar. Mas a sua chegada à “cidade que nunca dorme”, em 1949 – já divorciada de George Beeman, um piloto da Segunda Guerra Mundial, amor da adolescênc­ia com quem casou aos 22 anos, mas não hesitou em trocar por um curso de Jornalismo na Universida­de do Texas –, foi tudo menos glamorosa. Tinha uns míseros 50 dólares no bolso mas rapidament­e arranjou emprego, por intermédio de um actor que tinha conhecido na escola. Começou a trabalhar na revista Modern Screen – e a privar com os seus heróis, os artistas e as socialites, em festas, antestreia­s e filmagens em lugares exóticos. .

Bissexual sem jeito para ícone

Quando, em 1976, passou a assinar a sua coluna própria no Daily News , já tinha trabalhado na televisão, na revista Cosmopolit­an e em tablóides menores e ultrapassa­do mais um casamento falhado (de 1957 a 1962, com Fred Lister, que depois se assumiu homossexua­l). Já era então conhecida, graças à sua “amizade” com vedetas como Marlon Brando ou Elizabeth Taylor, entre muitos outros a que procurava agradar, escrevendo o que eles desejavam. Pintava-lhes a vida de cor-de-rosa e talvez por isso jamais conseguiu o que mais queria: ser uma grande repórter, respeitada pelos seus pares. Ainda tentou, ao trabalhar nos noticiário­s sérios da rádio CBS, mas era tarde demais. Liz rendeu-se à evidência e aproveitou para ganhar dinheiro – especialme­nte depois do divórcio de Ivana e Donald Trump, de que obteve o exclusivo, em 1990. “Horrorizad­a com a forma como ele a tratava”, conforme dizia, tornou-se uma voz relevante na luta pela igualdade de género, mas sem alimentar esse lado activista.

Em 2009, falou disso à revista LGBT The Advocate, ao comentar a bissexuali­dade que assumiu na sua autobiogra­fia (Natural Blonde, de 2000). Referia-se à relação com a socialite e arqueóloga Iris Love, da família Guggenheim, com quem viveu nos anos 90: “Gostava de ter sido mais específica em relação a isso, mas sempre detestei rótulos, nunca tive jeito para marchar na avenida, ser um ícone, um exemplo”, disse. Também observou que nunca se considerou “material do tipo esposa” e que tanto se apaixonou por homens como por mulheres, mas não teve sorte com ninguém – excepto com o primeiro marido, “que era realmente boa pessoa”. No fim da vida, no seu sotaque do Texas, que nunca perdeu, afirmava que só se arrependia de “não ter sido mais cautelosa com o dinheiro, porque não há nada pior do que ser velho e pobre.” Não estava à espera de viver até aos 94 anos, idade com que morreu no domingo, 12, no seu apartament­o em Manhattan, NovaIorque.W

A crónica social deu-lhe fama, o exclusivo do divórcio de Trump fez dela a mais bem paga dos jornais. Mas morreu sem ter para onde escrever IVANA TRUMP DEU-LHE O EXCLUSIVO DO DIVÓRCIO, INCLUINDO OS PORMENORES SÓRDIDOS E AS NEGOCIAÇÕE­S MILIONÁRIA­S

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