Reportagem Todos os passos para fazer um frasco de Mokambo
Desde o armazém de cevada usada na bebida até à palete que chega ao supermercado, acompanhámos toda a produção.
Quando Vera Macieira começa a encher, com água a ferver, cada uma das 20 taças dispostas em cima de uma mesa redonda, a sala aquece e sente-se um cheiro intenso a café. A ideia é mesmo essa, libertar o aroma, e é também por isso que o primeiro passo da degustação é cheirar. Há quatro lugares à mesa, que tem quatro pequenas bacias com água corrente. Uma plataforma giratória garante que cada um dos degustadores vá cheirando e provando taça a taça. A prova de degustação consiste em testar todos os elementos em cada uma das fases da produção, das matérias-primas (neste caso, os cereais), aos extractos, produto semifabricado e produto terminado.
As provas acontecem duas vezes por dia: às 9h15, com o produto terminado do dia anterior; às 14h30, com as matérias-primas. Para cada uma das etapas há duas taças: uma com o padrão, que serve de guia e indica como o produto deve ser, e a outra com a amostra. É Humberto Oliveira, responsável de produção das bebidas de cereais da fábrica de Avanca, concelho de Estarreja, que começa a prova. Agita uma colher de sopa na água (só duas das taças com o produto final têm leite, meio-gordo, 150 mililitros) e aproxima tanto o nariz que quase o molha. Mas a parte mais curiosa do processo é mesmo o degustar: é preciso sorver; quanto mais rápido, melhor. Razão: “A ideia é que os odores e os sabores sejam captados por toda a língua como um todo”, explica à SÁBADO.
De taça para taça, os degustadores lavam a colher para não contaminar o sabor. Há umas mais agradáveis do que outras. A chicória é a menos consensual – é uma raiz e, ao contrário dos outros cereais, tem o aspecto de uma pequena pedra castanha. Humberto Oliveira acha que é o cereal que sabe pior porque “tem muitas partículas”.
A degustação demora em média 40 minutos e é preciso 80 por cento de aprovação para liberar o produto. Trata-se do primeiro passo do processo de produção de uma das mais conhecidas marcas de bebidas de cereais (com café) da Nestlé. Aquela cujo jingle perdura há 40 anos e que muito provavelmente faz, ou já fez, parte da sua mesa de pequeno-almoço. A mesma que promete que vai começar o dia bem-dis-
PARA DEGUSTAR É PRECISO SORVER. E TEM DE SER RÁPIDO PARA CAPTAR O SABOR
posto (ver caixa) – sim, estamos a falar do “Diga Bom Dia com Mokambo!”, o anúncio que esteve no ar mais de duas décadas. O Mokambo representa cerca de um terço do total das bebidas de cereais consumido ao nível nacional, segundo dados da Nestlé, sendo fabricados por ano cerca de três milhões de frascos. Não é um produto 100% nacional, porque Portugal não é um grande produtor de cereais, mas está muito perto disso. Tudo o resto é português: a transformação dos cereais e do café no aglomerado (uma das imagens da marca, já lá iremos) é feita na fábrica da Nestlé em Avanca; os frascos são produzidos na Marinha Grande pela BA Vidros e as tampas pela Logoplaste, em Estarreja.
A textura que potencia o cheiro
A SÁBADO acompanhou o processo de produção do lote com o número 80.490.301. Foram dois dias de reportagem, 20 horas e 1.103 quilómetros em viagens para rastear uma embalagem do início ao fim: desde o armazém que guarda a cevada (o cereal em maior quantidade que chega de barco) e que fica a 7 quilómetros do porto de Aveiro, até ao momento em que a palete com os
frascos é plastificada e sai para o centro de distribuição em Avanca. A fábrica da Nestlé em Avanca produz Mokambo, em média, a cada duas semanas. A ideia é manter os
stocks baixos e o produto fresco, “porque é vendido acabado de fabricar”, explica o director da fábrica, Miguel Neto. O aroma que se sente no exterior é agradável e denunciador – cerca de 20 por cento do produto é café. Acontece o mesmo, com um cheiro diferente, com as papas. A parte mais importante do processo foi na verdade a única que a
SÁBADO não pôde ver, por causa da tecnologia usada no fabrico, que a Nestlé quer manter confidencial. É a transformação do produto, que co- meça com a chegada de um camião com as diferentes matérias-primas verdes – a cevada, o centeio, a chicória e o café –, que passam por um sistema de limpeza antes de serem torradas. “Temos dois ímanes para identificar algum corpo estranho que possa vir com a matéria-prima”, explica Humberto Oliveira.
Para produzir o equivalente a 140 mil frascos são precisas 10 toneladas de café, 20 toneladas de cevada, 15 de chicória e cinco de centeio. Desde que os cereais são torrados até que sai o primeiro quilo de Mokambo passam pelo menos 20 horas, mas demora 36 horas até haver stock para o enchimento dos frascos. Durante esse período decorrem as dife-
A TRANSFORMAÇÃO DO PRODUTO, O FRASCO E A TAMPA SÃO FEITOS EM PORTUGAL
A CADA 15 MINUTOS É FEITA A CAÇA AO VIDRO NA ZONA DE ENCHIMENTO E TODA A EQUIPA PARTICIPA
rentes fases do processo: primeiro, torram-se os cereais “para potenciar o sabor de cada matéria-prima”, explica o especialista; depois, extrai-se a parte solúvel, que é a parte boa; e, por fim, procede-se à secagem. É então que o líquido ganha a textura de um pó que depois se converte em pequenas partículas e passa a um aglomerado. Esse é o processo mais difícil, assegura o responsável de produção das bebidas de cereais. “É esta textura que potencia o cheiro.” Há 28 pessoas a trabalhar na linha de produção de Mokambo (onde também se fazem as outras três bebidas de cereais da marca) e, por dia, são produzidas 110 mil embalagens. A zona de enchimento está dividida em quatro áreas: aquela em que se abastecem os frascos e põem as tampas; os silos do pó; a zona crítica onde acontece o enchimento do frasco e o embalamento. São colocados em linha entre 280 a 300 frascos por minuto e, para garantir que os embates do contacto entre eles não causam fissuras, há uma máquina que verifica o bucal, o fundo e as laterais de cada um individualmente. “A máquina só existe desde 2015. Anteriormente, era uma pessoa que tinha uma lupa e que inspeccionava frasco a frasco”, diz Humberto Oliveira. Antes de entrar na zona crítica é preciso passar um rolo adesivo na roupa. Razão: largamos cerca de 50 cabelos por dia e aquela é a parte mais delicada de todo o processo. Também se tem de lavar as mãos, pôr uma touca e um capacete. Ali, o barulho dos frascos a baterem uns contra os outros é ensurdecedor, o ruído acima de 89 decibéis tem de ser abafado por auscultadores. O chão está pintado de azul-céu, “porque é a cor em que mais facilmente se consegue identificar algum vidro”, explica o responsável. A cada 15 minutos é feita, literalmente, uma caça ao vidro junto da máquina de enchimento. Toda a equipa é chamada para fazer esta tarefa com uma lanterna específica para reflectir o vidro.
Uma cevada à prova de tudo
Um frasco de 860 mililitros leva 200 gramas de Mokambo e nesta fase do processo são enchidos entre 230 e 250 recipientes por minuto. Logo a seguir, seguem para uma máquina encapsuladora onde se coloca a tampa no frasco sem cola, só através de calor (o processo chama-se termo-soldagem por indução). Na verdade, é uma membrana de alumínio que fecha o frasco e são precisos apenas sete segundos até ficar completamente selado.
Do fim da produção voltamos ao
início: às matérias-primas. Tanto o café como os cereais são comprados na Europa. Por exemplo, a cevada (o cereal principal do Mokambo) tem de ter resistência física para o processo da torra. “Precisa de um largo período de produção e de ser sujeita a Invernos rigorosos para ganhar a resistência necessária e não explodir na torra”, explica à SÁBADO Nuno Veigas, do departamento de qualidade da Acembex, que fornece todas os meses em média 150 toneladas de cevada à Nestlé. O ano passado veio sobretudo do Reino Unido em navios que descarregam no Porto de Aveiro.
Entre 2014 e 2015, as embalagens de todas as bebidas de cereais da marca, incluindo o Mokambo, foram renovadas. Dantes, eram redondas e com tampa de rosca. Passaram a ter uma forma mais ergonómica, em que a espessura varia ao longo do frasco, e as tampas também mudaram. Os consumidores estranharam e a Nestlé até recebeu reclamações. “Havia pessoas a achar que a tampa não fechava bem [agora o que sela o frasco é a tal membrana]”, conta António Carvalho, da direcção de comunicação da Nestlé.
Na fábrica onde se produzem as embalagens de Mokambo, na Marinha Grande, há dois fornos, sete linhas de produção e fazem-se três milhões de frascos por dia. Quatro a seis vezes por ano, a BA Vidros produz embalagens de bebidas de cereais para a Nestlé. O vidro branco é o mais difícil de garantir porque a cor tem de ser afinada. “São os óxite dos que afinam a cor e só se pode usar casco branco”, explica Sónia Neto, chefe de serviço da qualidade.
Um substituto barato do café
O processo de produção dos frascos impressiona: da fusão das matérias-primas necessárias para o vidro (areia, sódio, calcário e casco) forma-se uma espécie de lava incandescente, a chamada gota, que é produzida a uma temperatura de 1.190 graus. Há uma pré-forma e depois um molde final em que o frasco ganha forma.
Já em Estarreja, onde se produzem as tampas, o ambiente é menos escuro e também menos quen- (na sala onde se produz o vidro, a temperatura ambiente no Inverno está acima dos 30 graus; no Verão chega aos 50). A Logoplaste tem três máquinas para a produção das tampas das bebidas de cereais da Nestlé (o primeiro cliente da empresa, fundada em 1976). As tampas são feitas com três matérias-primas – polipropileno, corante e vedante (o corante é português) – num molde e chegam a produzir-se 1.500 por hora. O material vem em grão, é aquecido e sai em líquido, depois faz-se a injecção dentro do molde com a forma predefinida. A seguir, segue para uma máquina de colocação do selo (a membrana que veda o frasco), embala-se e envia-se para a Nestlé – para Avanca, a principal fábrica da Nestlé no País, que faz agora 95 anos. O Mokambo não é tão antigo. A marca foi criada em 1972 como um substituto do café, que era então muito caro para a maioria da população. Na época era o grande concorrente da Tofina (que acabou por ser adquirida pela Nestlé mais tarde). O nome tem origem angolana, significa aldeia refúgio e existem várias referências ao mocambo (sem k) em Lisboa. Sabia que o bairro da Madragoa se chamava Mocambo? Ou que a rua das Trinas no Bairro Alto é a antiga Travessa do Mocambo?
QUANDO MUDARAM AS TAMPAS, OS CONSUMIDORES ESTRANHARAM E FIZERAM VÁRIAS RECLAMAÇÕES