TV Guia

“SOFRI MUITO. CHAMAVAM-ME P ******** NA ESCOLA”

Numa grande entrevista – desejada por tantos, mas só dada à TV Guia –, o apresentad­or abre o livro da sua vida para falar de tudo. Das violentas guerras em casa. De ser vítima de bullying na escola, onde até lhe partiram um braço, por ser gordo e gostar d

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Oseu pai morreu há um mês, com um cancro, e dez dias depois assumiu publicamen­te a sua relação com João Caçador. Porquê? O luto serve para as pessoas pensarem, reflectire­m. Foi o que fiz. A minha vida mudou com a morte do meu pai. Passei a ser órfão. O amor de mãe é incondicio­nal, e o de pai tem de ser merecido,está sujeito a uma espécie de aprovação constante. Portanto, ao longo desse tempo, de um mês, que admito ter sido curto, repensei a minha posição como indivíduo, como ser social, e de qual seria o meu novo papel na família. Precisava de se assumir homossexua­l para se libertar?

[Fuma um cigarro] Também. Mas isso fez parte de um processo. Nós conhecemo-nos há mais de 20 anos, Paulo, na faculdade, eé preciso pôr aqui uma declaração de intenções: fizeste-me essa pergunta, várias vezes...

É verdade: sobre quando assumia... [Interrompe] Sim. Perguntava­s-me quando é que me assumiria, mas eu, para mim, sempre fui assumido.Soubem resolvido nas questões da sexualidad­e.

Mas essa assunção pública,que posso, e devo, ter como figura pública e como cidadão, era difícil enquanto o meu pai fosse vivo. Tinha vergonha? Ou medo da reacção dele? Não tinha medo nem vergonha, mas não queria que ele sofresse e passasse por isso. Mas qual isso? Ele não sabia que você é homossexua­l? O meu pais empre soube que eu eragay, porque tenho companheir­os desde os meus 20 e poucos anos. Saí de casa com 19, porque queria ter amin havida. Sabiaque os meus valores e a minha forma de ser não se enquadrava­m comum a visãomachi­sta e masculina que o meu pai tinha como mundo e comas relações. E também porque tinha uma mãe que era Testemunha de Jeová. Eu próprio fui Testemunha de Jeová até aos 18 anos, e ele, por questões ideológica­s e religiosas, não aceitava esse facto. Portanto, nunca escondendo essa exposição pública, quis poupar o meu pai.

Nunca escondeu, mas também nunca disse “pai, eu gosto de homens”, nem ele lhe perguntou se gostava de homens? Não. Ele nunca me perguntou, e eu nunca lho disse. Às vezes, as palavras sobram. Ma sele sabia. Semp retiver elaçõeslon­g as, de 7,9 anos ...

Ele nunca lhe tocou nesse assunto? Nunca. O meu pai deu-se bem com todos os meus namorados. A minha mãe, não tanto. Curiosamen­te, ele aceitava-os mais do que ela, por via da religião. Repara, havia só uma cama em minha casa. O meu pai sabia perfeitame­nte que aquelas pessoas eram meus companheir­os.Ao longo do tempo foi assim. Tenho 54 anos, portanto, foram 34 deles a viver quase sempre com alguém, porque, na realidade, nunca estive muito tempo sozinho. E o meu pai, para além de tacitament­e aceitar, era uma pessoa que tinha uma relação de enorme cumplicida­de com os meus namorados. Dava-lhe um desgosto, se lhe dissesse? Não. Era desnecessá­rio, e o convívio era tranquilo. Quanto a mim, nunca me senti diminuído por ser homossexua­l e de não o dizer ao meu pai. Talvez apenas triste. Sempre estiveàvon­t ade, porque, desde cedo, compreendi que mera. Lembro-medas minhas conversas coma minha irmã, ainda eu era Testemunha de Jeová, e ela dizer-me: “Ó mano, se tu não fosses assim, não tinha graça nenhuma.” Nunca me senti limitado na liberdade de viver a minha sexualidad­e, embora saiba que é importante assumir, para ajudar outras pessoas. Famosas e anónimas? Sim, especialme­nte as pessoas que lutam com dificuldad­es, porque sofrem debullying, porque não podem demonstrar essa afectivida­de, como qualquer casal. Muitas julgam até que os pais não sabem. Mas os pais conhecem os filhos.

Mas... [Interrompe, de novo] Sempre fui um filho óptimo, presente, nunca tive vergonha de nada. Mas sabia que, se assumisse a minha homossexua­lidade, iria magoar o meu pai, e foi uma opção minha. Optei por não o fazer, e não me arrependo. Repare, ele nasceu em 1944... Na rua, já lhe chamaram maricas, ou algo do género?

[Pausa] Mais quando era miúdo.

Teve uma infância traumática? Na verdade, tenho muito poucas recordaçõe­s do meu pai até aos 18 anos. Porquê? Era um mau pai?

Não, mas acho que o apaguei da minha cabeça. Era um homem invisível para

“Nunca tive vergonha. Mas sabia que, se assumisse a minha homossexua­lidade, iria magoar o meu pai”

mim. Curiosamen­te, isto começou logo quando eu era pequeno. O meu pai foi cumprir o serviço militar para África, nós viemos do Alentejo, tinha eu 1 ano e tal, e fiquei em casa da minha madrinha [Estalagem Portugal, em Oeiras], curiosamen­te um sítio a que hoje chamaríamo­s de libertino, porque era ali que se encontra vamos fadistas e outros “liberais”. Daí a minha ligação com o fado. A minha madrinha tinha muitas amigas... e vivi toda a minha vida com mulheres: coma minha madrinha como grande referência e com a minha mãe, que chorava todas as noites, porque tinha medo que o meu pai morresse em África, com quem eu dormia sempre. E quando o seu pai chegou da Guerra Colonial, como foi?

Quando o meu pai chegou, já eu tinha 4 anos, olhei para ele e perguntei-lhe: “Mas tu vens de que guerra? Da Guerra do Ultramar ou da guerra do Vietname?” Esse momento, que me emociona muito e do qual a minha família fala com orgulho, foi de ruptura.

Era uma criança revoltada por o seu pai ter estado ausente durante tantos anos? Não era uma questão de ser revoltado. Ele só existia nos relatos da minha mãe e nas suas lágrimas. E eu tinha outra cabeça, a pesardes er miúdo. Tive uma infância culturalme­nte rica, comum a ligação com pessoas de todos os credo se, até, orientaçõe­s sexuais.

Era uma relação não-relação?

Era uma relação de distância. Em vez de abraça romeu pai, fiz-lhe uma pergunta, que nos coloca em lados opostos. Ele respeitou essa sua distância? É muito triste, mas não me lembro. Comoéqueé crescer sem pai? Entretanto, tinha eu 5 anos, saímos de casa da minha madrinha e a minha mãe tornou-seu ma fervorosa Testemunha de Jeová. Começou a dar-me estudo bíblico e o que aconteceu foi que nos fechámos naquele casulo, is toantes do 25 de Abril. Vivíamos na clandestin­idade, porque as Testemunha­s de Jeová eram proibidas, e começou a haver em casa uma relação conflituos­a entre o meu pai e a minha mãe, por causa da religião, e da minha mãe com a família toda. A minha mãe era uma mulher que de repente tinha “virado a boneca” e que se tinha tornado Testemunha de Jeová. E levou-nos aos dois: amimeà minha irmã. O meu pai transformo­u-se num feroz opositor. Como assim?

Em termos bíblicos, é alguém contra, e que nos passou a fazer a vida num inferno. No sentido de não concordar, de não saber para onde é que íamos, de achar que, como bom comunista, aquilo

era o ópio do povo. E, portanto, comecei a olhar para o meu pai como um homem mau. Era uma pessoa que não nos deixava seguir a religião que representa­va a verdade na terra e que nos dava a possibilid­adede vive rum avida eterna. Isso trouxe grandes conflitos.

Desgostos?

Desgostos.

Sofrimento?

Muito.

Ele batia-vos?

Não, não. O meu pai só me bateu uma vez. Ainda hoje me dói.

Conte lá esse episódio.

O meu pai disse-me para ir comprar uma garrafa de vinho para o jantar, numa mercearia perto de casa. Eu fui, mas no regresso parei em casa de uma amiga – era ela que nos dava o estudo – que ele odiava. Agarra fade vinho tinha ficado em cima do tanque de lavar a roupa, à porta da senhora. Ele levou-a para casa e, quando batià porta ,30 minutos depois, agarrou-me pelo cachaço e deu-me uma valente palma dano rabo. Tinha que idade?

Sei lá, eu era um miúdo. Deu-me forte, que eu levantei os pés do chão. Já adulto, brincámos muitas vezes comesse facto, e eu dizia-lhe que ainda hoje me doía. Rimo-nos tanto disso! Mas a verdade é que, durante toda a minha adolescênc­ia, o meu pai representa­va o homem que não nos deixava ser livres, que não nos deixava seguir a religião.

Foi uma criança angustiada? Infeliz? Muito. Muitas vezes, quis morrer. “A morte que me namora já me pode vir buscar ”, como cantava a Amália. Tenho alma de fadista, cada vez mais!

Como era a sua vida na escola?

Era uma criança triste, porque, desde cedo, fui habituado a lidar com conceitos que não eram para a minha idade. Tive de lidar com a culpa, o medo, o pecado e o corpo. Também porque percebi cedo que a minha orientação sexual era diferente da dos outros rapazes. De quase todos. E isso era medonho. Desde cedo?

Sim, sim. Na sua ingenuidad­e, a minha mãe vestia-me com calções e camisas com folhos à frente. Que horror. Ainda hoje odeio! Lembro-me das minhas tias dizerem: “Ai, este miúdo é bonito demais para ser rapaz.”

Foi vítima de bullying , por ser gay? [Outro cigarro] Sim, eu era paneleiro... Chamavam-lhe paneleiro na escola? Sim. Sofri muito. Por exemplo, apalpavam-meo rabo no autocarro, quando eu ia para casa, e faziam-me outras patifarias. Enfim, o“normal”p ara umpu to maricas nos anos 70/80. Um inferno, portanto.

Sim. “Ah, és paneleiro e tal.” Davamme belinhas, punham-me na baliza e mandavam-me grandes bujardos para eu gritar ... Eu era um saco de boxe. Uma vez, empurraram-medo alto de uma escada e parti um braço.

E você, como reagia?

Era uma criança triste, porque não me sabia defender. Não dominava a comunicaçã­o da violência, com muita pena minha. Houve alturas em que me apetecia agarrar numa caçadeira, entrar por ali dentro e matá-los a todos, como, infelizmen­te, acontece muito nos EUA. Tenho pena desses miúdos. Dos quem ata medos que morrem.

Como Testemunha de Jeová, tinha de dar a outra face...

É verdade. E depois havia a questão do corpo. E do desejo. Fui treinado para ter uma consciênci­a moralmente pouco flexível, ou melhor, um espartilho claustrofó­bico e castrador, o que transforma­va o corpo, à boa maneira platónica, numa fonte de erro, de desgraça, uma fonte de pecado e, consequent­emente, uma fonte de morte. Era o meu corpo que me iria levar à morte, ou era o meu corpo que não me iria permitir ter a salvação que Jeová me prometia. Você era mais infeliz por ser gordo do que por ser gozado por ser gay?

É mais ou menos isso. Eu gostava de gostar de homens. Mas sabia que, por um lado, isso era um pecado capital e me iria levaràmort­e,à destruição. Por outro, não lidava bem como meu corpo, porque era gordo e feio. Não me gostava de ver ao espelho. Essa minha relação com o corpo foi sempre traumática. Eu era o gordo e o paneleiro. Como diz o João Monge ,“a minha vida era um beco sem saída, sem casa onde vá dar.” É depois de sair de casa, aos 19 anos, que começa a olhar para o seu pai com outros olhos?

Exactament­e. Começo a olhar para o meu pai como um homem que, no fundo, não teve uma família do seu lado durante boa parte da sua vida. Mas o meu pai tentava, coitado, da pior maneira. Lembro-me, como se fosse hoje, do meu pai ir trabalhar como canalizado­r equerer-melev arpara a sobras. Eu odiava aquele trabalho, aquelas pessoas, e dizia: “Eu vou, mas levo Os Lusíadas numa mão e a tarracha na outra.” Hoje, chora esse tempo que perderam? Não, não, não. Quer dizer, vou explicar: com 18 anos, depois de ter saído das Testemunha­s de Jeová, comecei a reconstrui­r,devagarinh­o, a minha relação com o meu pai. Ganhei consciênci­a de quem era aquele homem, a perceber porque é que ele, às vezes, era mau, no sentido de opositor, e tomei consciênci­a de que não tinha, durante 18 anos, desde que nasci, feito nenhum esforço para ter uma relação com o meu pai. Então, tijolo a tijolo, como nas obras, fui construind­o-a. Comecei a falar com ele, a sair com ele, a conviver com ele, a ol harpara ele com olhos de filho e a gostardele. Essa reconquist­a foi lenta, mas foi consistent­e. Tive uma excelente relaçãocom­o meu pai nos últimos 20 anos ... Tinha orgulho em mime no meu trabalho. Fomos pai e filho avida toda, menos na infância e na adolescênc­ia.

Atribui culpas a alguém? A ele ou a si? A nenhum de nós. For amas circunstân­cias.Se alguém teve a culpa, por ser mais esclarecid­o, fui eu. Chegou a odiá-lo?

Não. Odiava era a acção dele. Imagine: um prédio vai cair, e há uma porta. Sei que posso ir a correr para ali para me salvar, mas depois há uma pessoa a agarrar-me...

Era isso que sentia? Sim. Afinal, era ali, nas Testemunha­s de Jeová, que estava a salvação. Ele podia vir connosco, mas não queria. Nem nos deixava ir. Como reagiu à notícia de que ele tinha um cancro? [Emociona-se] Passei por muitas fases, porque a minha mãe também já teve [cancro do cólon] e resolveu-se rapidament­e...

Mas, desta vez, não foi assim.

O meu pai foi fazer um exame de rotina aos rins, e disseram-lhe que tinha ali uma massa, mas não sabiam o que era. Era preciso estudar, fazer mais exames. Percebemos imediatame­nte que era um cancro. Ele não falava muito, e nós dissemos-lhe que tudo se iria resolver, que a mãe também já tinha tido e que todos, dizem as estatístic­as, íamos ter o nosso cancro, daqui a 10 anos. Portanto, a solução era retirar o rim, o mais depressa possível. E ele dizia :“Mas agora vão-metiraro rim? Já me tiraram a tiróide, já tenho umbypass...Qu em erdaé esta, agora?” Achámos que era preciso ter uma segunda opinião, fomos à Fundação[Champalima­ud],eoptarampo­rtirar o rim quanto antes.

Estamos a falar de um período de quanto tempo?

“Eu era um saco de boxe. Apalpavam-me no autocarro... Um dia, empurraram-me de uma escada e parti um braço”

Um ano. Ele tirou o rim e, a partir daí, foi sempre a descer, a cair.

O que é que o marcou mais neste processo? [Comas lágrimas no rosto] Nunca pensei que morresse assim, tão depressa. Só que depois, quando fomosà consulta, o médico mostrou-me que já havia metástases nos pulmões e coluna, e isso foi duro saber. O médico sentou-me, estávamos a ver o computador, ele apontava e dizia “aqui, aqui, aqui”... Eram as metástases nos pulmões.

Percebeu que só se salvava por milagre? Percebi que um cancro daqueles[ estádio 4] era o mais agressivo. Então, começámos a fazer tratamento­s e entrámos numa espécie de não pensar. De viver o dia-a-dia. O meu pai nunca falou da doença. Dizia-me: “Parece que isto não está a melhorar, pá!”

Mas você ainda acreditou que as coisas iam melhorar. Acreditei que era possível viver com cancro. Não estava nos meus planos de filho que a doença evoluísse tão rapidament­e. A seguir aos pulmões, ele começou com uma dor e percebemos que já estava alastrado à coluna. Depois, houve um dia, o pior dia de todos, foi horrível... Na Fundação? [Chora muito] Não, em casa ... Foi um episódio triste e terrível. Ele estava com muitas dores de cabeça e começou a dizer que os olhos iam saltar. Aquilo indiciava alguma coisa forte. Levámo-lo para o Hospital de Cascais, e foi ali que soubemos. Deixaram-nos ficar juntos durante a noite ... Começou a perderalgu­mas faculdades ... Eram três da manhã, e a médica disse que queria falar connosco. Eu estava com a minha irmã. Andámos para aí dez metros, e aquilo parecia uma eternidade, uma distância que não parava. Fui andando atrás dela e já sabia oqueé que meia dizer. Sentei-me no gabinete, completame­nte derrotado, vencido, e ouvi :“Tenhomui tape nade vos dizer isto, mas as metástases chegaram ao cérebro.” E disse quantos dias ele tinha de vida? Não, mas disse que era um processo difícil. Emocionada, pediu para termos força, que tínhamos de estar unidos. Comecei alio meu processo de orfandade. Quer-nos esclarecer que polémica foi essa com a Fundação Champalima­ud? O meu pai foi bem trata dona Fundação Champ ali maud.Í amos lá todos os dias, ele teve uma faseem que faziaimu no terapia de 15 em 15 dias. Depois, começou afazer radioterap­ia no encéfalo inteiro, porque, como tinha umc ardi odesfibr ilha dor, nãopodi afazer uma ressonânci­a magnética. Resolveram dar-lhe no encéfalo inteiro dez sessões de radioterap­ia, queéumacoi saque teve um impacto brutal. A partir daí, ele começou a cair, a cair, a cair... Não discuto, porque não tenho formação para discutir isso. Assinámos tudo, se o oncologist­a estava a dizer que era a única solução, concordámo­s em fazê-lo ... A radioterap­iaacabou em 1 de Abril, que foi o último dia que ele saiu de casa. Começou a sentir-se mal, tinha períodos de muita confusão e de agitação psicomotor­a. Foi para casa e não saiu mais. Quis morrer em casa?

Não sei, nunca lhe perguntei. Só queria estar ao seu lado. Eu passava 16 horas a olhar para o meu pai. A despedirem-se?

Não era a despedir, era a olhar. A vê-lo. A virá-lo, a dar-lhe água, a cuidar dele. Voltando à Fundação Champalima­ud... A partir de uma certa altura, passámos para uma espécie de cuidadospa­lia ti vos, que são da dosem casa e se chamam assistênci­a domiciliár­ia. A Fundação disse-nos que ele estava em estado termina leque não havianada afazer. Falaram connosco, garantiram-nos que ele estava bem espiritual­mente, puseram-lhe os pensos de morfina e deram-nos comprimido­s de SOS de morfina para quando estivesse com dores. Explicaram-nos que era assim que se morria.

Nessa altura, queria que o seu pai morresse o mais depressa possível? Essa foi uma luta gigante e dolorosa que tive e quem e angustiava tanto: vê-lo naquelas circunstân­cias. A choque todos os filhos percebem que aquilo não podia ser. Olhava para ele, a contorcer-se com dores e a delirar, e via-me, eu próprio, deitado naquela cama.

Pensou nisso?

[Fuma um novo cigarro] Sabia que era melhor morrer a continuar com aquele sofrimento. Só me perguntava: “Quando é que vai ser? Daqui a um dia, dois dias?” Eles diziam-me que não era exacto, mas que era um processo lento. É horrível! Ao mesmo tempo, diziaàminh amã equetính amos de olev arpara o hospital, não sabíamos o que havíamos de fazer. Ao fim de uma semana, sem comer nem beber, começou a ter muita febre e uma violenta convulsão... Chamámos o INEM e levámo-lo para o São Francisco Xavier, onde nos disseram: “Oqueé isto? Oqueé que está a acontecer comeste homem, que está completame­nte desidratad­o ?” Ou seja, o meu pai ainda durou mais uma semana e tal, porque opuseram a soro! O quem e revoltava era vê-lo naquela agonia que não tinha que ver com a doença.

Por issoéqueéa favor da eutanásia? Sou a favor de uma morte digna, e acho que a morte que e lei ater ali, senão o levássemos para o hospital, era uma morteà fome eà sede.

Não quis saber mais nada da Fundação Champalima­ud?

Ligaram-me depois, e dissequem e estavam a incomodar. Que a nossa relação terminava ali. O oncologist­a tinha ligadopara a minha irmã, quatro dias antes da convulsão, a dizer que esperava que fossem bons momentos em família e que Deus estivesse connosco. A revolta que senti e expressei no Instagramf­oití pica deumf ilho impotente, que vê o pai definhar numa lenta e desnecessá­ria agonia, mas sobretudo porque senti-me abandonado. Senti que o deixaram ali, como quem já não serve para nada, para morrer nos nossos braços.

Estava com ele, quando morreu? [Levanta-se da cadeira a chorar e vai buscar um copo de água. Aparece um minuto depois] Não, ele morreu ao lado da minha mãe. Tal como queria. Nunca fiz questão de ver o meu pai morrer. Nos últimos dias, ele já não falava? Não.

E ouvia o que vocês diziam?

Isso era o que a minha mãe me perguntava­todos os dias, se ele ouvia ... Quando eu lhe dizia“pai,éo Zé ”, a máscara mexia ... E eu sossegava-o :“Pronto, pronto, estamos todos cá.”

Dizia-lhe mais alguma coisa?

[Outra vez com as lágrimas no rosto] Digo-te mais à frente, agora não consigo... Quando ele sentia a nossa presença, ficava um bocado agitado, tentava tirar os tubos e tínhamos sempre um bocado de cuidado com isso. Eu vivia dividido entre o sofrimento e o que achava melhor, e dizia: “Vá pai, vá.” Muitas vezes, agarrava-me a ele, beijava-o... Era um sofrimento horrível! Você chorava muito? Muito. É terapêutic­o. Tentava não fazê-lo ao pé dome upai.Qu ando ele começou aficarin consciente, já chorávamos mesmo ali. Estávamos destroçado­s. Como soube da morte do seu pai? Tinha o carro mal-estacionad­o, fui arrumá-lomelhor, e fomos comer ... Entretanto, fomos par acima. Quando chegá

“Não sei se o meu pai quis morrer em casa. Eu só queria estar ao seu lado. Passava 16 horas a olhar

para ele”

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PAULO ABREU & CARLOS RAMOS
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