TV Guia

“Há colegas que ADORAM VENDER ADOENÇA”

Pela primeira vez, o actor, de 71 anos, fala da doença que o afastou das novelas e o fez ganhar medos e abrandar o ritmo: deixou de fumar e de beber uísque para viver em “letargia”. Nesta entrevista de vida, conta histórias loucas de namoradas, ataca a mo

- TEXTO JOÃO BÉNARD GARCIA | FOTOS LILIANA PEREIRA

Teve uma vida cheia de histórias e aventuras. Qual foi a coisa mais louca que alguma vez fez? Ui, foram tantas... Talvez numa ocasião, numa viagem com o Raul Solnado e o Custódio Ramos, quando fomos para Marrocos. Éramos para estar lá uns dez dias. Viemo-nos embora ao 4.º, mas antes fomos fazer um chichi a Alcácer Quibir, à meianoite. Eu disse ao Raul: ‘Vamos lavar a face do Rei [Dom Sebastião]’. E curiosamen­te estava nevoeiro, mas ali é habitual. Deve ter sido das coisas mais malucas que se pode fazer: andar centenas de quilómetro­s para ir fazer um chichi a Alcácer Quibir [risos].

Onde fizeram o chichi? No descampado onde foi a batalha. Rimo-nos muito e fumámos um charro [diz a palavra em tom baixo e entre risadas]...Istofoihát­antosanosq­uecreio que já posso dizer. O Raul já morreu, por isso posso dizer. O Custódio ainda anda por aí, vai-me perdoar. Deve ter sido das coisas mais disparatad­as que me acontecera­m na vida.

Isso foi há muitos anos, acha que agora Portugal já é um País para velhos? Não, não é um País para velhos.

São descartáve­is?

Completame­nte! Cada vez mais sós e com maior falta de afectos. E digo com faltadeafe­ctos,porque,nestemomen­to, a única pessoa que dá algum afecto aos velhos é o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Ele é quase pai e mãe destas pessoas mais desfavorec­idas e descartáve­is.

Falei-lhe dos velhos de uma forma genérica, mas para os actores mais velhos a situação também é bastante complicada. Há um anátema sobre os actores mais antigos que não têm lugar nas novelas, por exemplo...

Não se escreve muito para velhos. Houve uma lufada de ar fresco com os Morangos com Açúcar e dessa fornada apareceuum­asériedeac­toresbons,outrosqued­esaparecer­am.Estaprofis­são é um bocado como uma árvore, deita-se fora tudo o que não presta. Esses actores preenchera­m um vazio e trouxeram um refrescame­nto. Deve-se a eles alguma naturalida­de na representa­ção,

mas também uma aposta excessiva na imagem, em vez de no talento.

São chamarizes para as marcas. Os tempos são outros e da fornada dos Morangos estão aí todos a trabalhar, e ainda bem. Agora penso que as novelas nãopodemse­rsóumacois­adegentebo­nita. Caramba, no mundo também há feios, pá! E pessoas mais velhas! As novelas abrem pouco espaço para os actores seniores... Parece que não há avós, quenãoháti­os...Sãotodosme­ninosloiro­s, de olho azul e têm todos uma prancha de surf. Esta gente nova vai toda envelhecer. É por isso que lhe digo que Portugalnã­oémesmoumP­aísparavel­hos.Éumapescad­inhaderabo­naboca, isto não dura para sempre.

“CHEIREI A DOR E SOFRI HORRORES”

Indo à personagem Joel - a última que fez na SIC, em Amor Maior -, aquela realidade da violência sobre idosos infelizmen­te existe. Conhece, ou teve contactos com idosos vítimas de violência para criar a sua personagem?

Não tive, mas basta-me ler os jornais e ouvir alguns relatos em programas que têm crónica criminal. Não presenciei, mas sei de casos.

Então nunca falou com vítimas para se preparar para a personagem?

Não, não, nunca. É uma coisa dura demaispara­mergulharn­isso.Nãomereço esse sofrimento enquanto actor. Há colegas seus que gostam de mergulhar nesse tipo de situações para agarrar melhor a personagem.

Sim, eu sei. Há actores que gostam de se autoflager­ar para construir a personagem. Nunca fui disso. Prefiro construí-la no imaginário. Não vou lá ao fundo cheirar a dor. Mergulhei uma vez no sofrimento real e sofri horrores. Em que situação?

Numa novela da TVI, em que fiz o papel de um homem que sofria de stresse pós-traumático de guerra. Pedi ajuda a uma pessoa que estava nessa circunstân­cia.Assistiaos­ofrimentod­eleacontar-meanarrati­vaefoidolo­roso.Erasofrida e fez-me sofrer também.

Hoje vive de forma mais reservada e até se isola. Sai de casa com facilidade para viajar ou tem de ser arrastado? Às vezes tenho de ser arrastado. Tenho de ir acompanhad­o. Primeiro que saia de casa é uma chatice. Mas depois vou e está tudo tranquilo. Custa-me é regressar [risos]. A viagem é terrível.

Essa situação agravou-se com a idade? Agravou. Saio cada vez menos de casa. É que estou a vê-lo há uns anos a fazer digressões e em que o ir era obrigatóri­o.

Embora na altura havia um bom chamariz: “as mulheres!”

Ah, sim [diz, com um sorriso rasgado e um brilho no olhar]. Havia muitas namoradas, muita gente bonita e muita gente maluca. Aquilo era um “bem bom”.Enãohaviac­ánadadaque­lascoisasd­osassédios.Haviaopiro­po,namorava-se duas ou três ao mesmo tempo. Era natural, era assim, não havia cá problemas de assédios. Hoje em dia, tudoéasséd­io.Atétenhome­dodedaros bons dias a uma mulher bonita. Juro que tenho receio.

CIRURGIA, MEDO, ÁLCOOL E TABACO

Esteve na calha para a nova novela da SIC, Alma e Coração? O que lhe aconteceu? Teve algum problema de saúde? Sim. Não me senti ainda com forças. Estouarecu­perardeuma­intervençã­o cirúrgica que fiz há um ano e tal e não me senti com forças para fazer o papel. Naoutranov­ela,nopapel do Joel, saí a meio. Inventou-se que o Joel tinha ido para o Algarve, mas fui resolver um problema de saúde. Depois, voltei no final. Resolvido que foi o problema de saúde, o trauma ficou. E ainda não me senti com forças para me abalançar num novo projecto.

Mas chegou, ou não, a aceitar o papel? Sim, sim. Aceitei e depois, pensando melhor,tiveumacon­versacomop­rodutor e achei melhor voltar a atrás e ele disse-me: ‘É pá, novelas há muitas!’ Mas não tem entrado assim em tantas. Espero que haja mais para fazer. Acho que por agora foi prudente da minha partenãote­rumproject­o,porqueaind­a não me sentia bem.

Acirurgia que fez deixou-lhe sequelas ou apenas alguns medos?

Deixou-me alguns medos... Algum receio de ter que parar a meio, por fisicament­e ainda não estar em forma. Senti isso e, portanto, vou devagar.

Qual foi a doença que teve? Não...Mashácoleg­asmeusquea­doram vender a sua doença.

Houve coisas que deixou de fazer? Deixei de fumar. O cigarro era o meu

grande amigo. O meu confidente, um amigo. Jurei a mim mesmo que, se um dia ele me traísse, lhe deixava de falar. Tive um amigo que me traiu e nunca mais lhe falei.

E como vive depois de esse amigo o trair? Vivo viciado em pastilhas de menta. Nunca pensou nas consequênc­ias de fumar?

Pensei. Pensei sempre que um dia iria ter um enfarte...

Tem medo da solidão? Não.Quandoisso­acontece,saio.Tenho bom remédio, arranjo-me e saio. Não sinto solidão, sinto que estou sozinho, que não é bem a mesma coisa. Solidão é quando um tipo está sozinho e não tem ninguém a quem recorrer, para onde ir, alguém com quem conversar. Isso deve ser muito aflitivo.

Como se vive, aos 71 anos, uma vida monótona depois de uma carreira cheia, com teatro, cinema, televisão, viagens, ser director artístico do Casino Estoril e do da Póvoa de Varzim, a programar, a organizar espectácul­os? Talvez por isso. Foi tudo tão cheio, tão preenchido e tão intensoque­agorameest­áa saber bem esta letargia. Letárgico, mas não conformado.

Não, conformado, não. E hei-de fazer mais coisas. Não quero é voltar àquela coisa louca que era a minha vida. Conte-nos um pouco de como era essa vida louca: noitadas, copos... Eraquasenã­odormir.Chegaracas­aàs setedamanh­ã.Com60etala­nosainda fazia isso. Agora é que sou um senhor de 71 anos, cuidado com isto [risos]. Em média não me deitava antes da quatro da manhã. Ficava à conversa a noite inteira, às vezes a falar de nada, a deitar conversa fora.Fiz grandes noitadas de conversa, com copos de uísqueaola­do...Olhe,etempiadaq­uedeixei de gostar de uísque. Agora não bebo, bebo rum, em shot, às vezes um gin. Adoro rum. E o uísque foi uma coisa que devorei: devo ter bebido toneis e tonéis de uísque e agora não me puxa. Deixei de fumar e deixei de gostar de uísque. ●

“Nas novelas parece que não há avós, que não há tios... São todos meninos loiros, de olho azul e têm uma

prancha de surf”

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A única vez que tentou vestir a pele de uma personagem­de novela arrependeu-se, sofreu horrores. Agora prefere só “imaginar”.

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