TV Guia

“A EXPLORAÇÃO DA LÁGRIMA na TV resulta”

Numa conversa franca, fala do dia em que anunciará uma doença grave ou que alguém tornará pública a sua morte física. Mas também, “sem moralismos”, dos excessos dos famosos nas redes sociais e na forma como a imprensa vai atrás desses iscos. Critica a exp

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Lembra-se de assistir, em 1979, ao nascimento da revista TV Guia? Sim, claro que me lembro perfeitame­nte da evolução da R&T (Rádio&Televisão) atéàTVG ui a. E até melem broque num programam eu houve uma rubrica da TV Guia. Qual? Foi no Festa é Festa. Tinha um grande caricaturi­sta português, o Jorge Rosa, que fazia caricatura­s dos miúdos que participav­am no programa. Era muito engraçado. O Júlio recorda-se do tempo em que só havia a TV Guia e a abordagem aos temas de televisão era diferente. A TV Guia falava exclusivam­ente de televisão e das pessoas que lá trabalhava­mno sentido profission­al das suas ativ idades. Hoje, as revistas falam mais das questões pessoais e extra pessoais, aquilo a que chamo os ‘efeitos colaterais’ de trabalhar em televisão. O público interessa-se por isso e as revistas vão atrás. Para si qualéol imite? O meu limite é mostrar uma família feliz. A partir daí acabou. Se porventura um dia estiver muito doente, não vou expor o meu sofrimento... Provavelme­nte escreverei duas linhas a dizer: ‘Meus amigos, estou doente. Se recuperar volto a aparecer .’

Tem a noção do que essa mensagem irá provocar na imprensa?

Tenho a noção de que posso ser perseguido. Andarem à procura de saber em que hospital é que estou. Ou em que morgueé que estou[ risos ], mas irei tentar preservare­s se momento. Há determinad­os registos que são oferecidos pelaspesso­as e depois resmungam quando a imprensa entra nas suas vidas e só querem ter privacidad­e. Se oferecem tudo terão a causa e a consequênc­ia. Quer dar-nos exemplos?

Assusta-me que alguns atores, atrizes, cantores, façam nas redes sociais o culto do corpo daquela forma. Desnudam-se tanto... Se se põem a nu nessas coisas, põem-se em todas as outras. A Lady Di [princesa Diana de Gales]éo melhor exemplo disso. Tirou partido do monstro e foi devorada por ele. Tornou-se vedeta usando a comunicaçã­o social e depois já só queria fugir. Era tarde demais.

E em Portugal?

No nosso casoéa mesma coisa. Estamosaf alarde questões david a privada, do ser, aparecer e acima de tudo parecer. Dão o flanco e depois não se podem queixar.Pensoqueis toéumaco is amais profunda e que se prende coma alteração da comunicaçã­o social, com alguma decadência em termos do seu papel, coma chegada das redes sociais.

Que também condiciona­ram a forma de fazer televisão?

As televisões entraram em competição por razões que têm a ver com a sua sobrevivên­cia económica e foram surpreendi­das pelo avanço da tecnologia. A partir daí alteraram-se as regras, partindo do princípio de que aquilo que tem a ver com o escândalo, com a polémica, com o inusitado, com o entrar pela vida das pessoas, até pela devassa da própria vida – se as pessoas forem matériapri­ma para isso, especialme­nte se oferecerem alguma coisa – desperta… não vou dizer a curiosidad­e, mas a bisbilhoti­ce. Foram as redes sociais que fomentaram essa bisbilhoti­ce.

Exatamente. A comunicaçã­o social foi surpreendi­da pelo avanço das tecnologia­s e todas as realidades foram parar às redes sociais. Haverá solução para inverter isso? As pessoas quase forçam os meios de comunicaçã­o social a oferecer-lhes aquilo que satisfaz a sua curiosidad­e/bisbilhoti­ce. Quem não correspond­er a essas expectativ­as sofre as consequênc­ias. E depois vivemos num tempo onde se pensa queéacompe tição que vai conduzira o sucesso. Neste momento, o que vocês exploram nas capas das revista sé a competição no Day Time das estações privadas [O Programa da Cristina (SIC) e Você na TV !( TVI )], queéo que está a dar ... ... que as pessoas veem e sobre os quais querem saber pormenores. Is sovai sendo alimentado e alimenta-se também dessa curiosidad­e. Os órgãos da comunicaçã­o social que acompanham a televisão e a rádio acompanham esse registo. É uma inevitabil­idade. Não sabemos bem o que está a acontecer e por isso vamos comprar a revista que conta as histórias da TV: são concorrent­es, estão zangados uns com os outros. Um faz uma coisa, o outro faz pior. Sendo que aqui o pior é considerad­o melhor em termos de audiências. Éoprincíp iodo quanto pior, melhor. Pois. E eu, como sou velho, considero que o melhor tem de ser mesmo o melhor.

O Júlio não se sente deslocado neste panorama televisivo? Sinto-me orgulhosam­ente deslocado na televisão. E com imensa felicidade. Estou em vias de extinção na televisão. A minha geração está em vias de extinção. Eu próprio estou a preparar a mi-

“Sinto-me orgulhosam­ente deslocado em televisão.

Estou em vias de extinção e a preparar a minha extinção na

televisão.”

nha extinção. Sou o último resistente e sobreviven­te dos pioneiros da televisão. Há o Carlos Cruz, que está afastado pelas razões que todos nós conhecemos. Uns morreram, outros estão retirados. Sei que tenho milhares e milhares de pessoas que gostam da forma como continuoaf­azer televisão. Costumo sempre dizer: ‘Eu não me mexi, os outros é que se mexeram.’

Não sente a pressão das audiências? Não, nada, ainda bem que fala nisso. Não quero choradeira nos meus programas. Nãoé preciso. Sei que a exploração da lágrima em televisão resulta. A exploração do escândalo e da agressivid­ade resulta, mas seria importante que nas nossas escolas não se explorasse a agressivid­ade, que depois origina a violência doméstica, dá origem a conflitos verbais entre gente que devia ser civilizada e não é.

Vê-se disso, por exemplo, nos debates sobre desporto, em especial de futebol. Sim, são na generalida­de deprimente­s, até desrespeit­osos, porque é estranho a gente ver um deputado, ou um médico, que só porque está a defender o seu clube perde as estribeira­s... Isto tudo para chegar aos 40 anos da TV Guia. E a TV Guia o que há de fazer senão contar que isto aconteceu? É inevitável. É areal idade. Isto tudo porque há uma outra comunicaçã­o, às vezes muito pouco social, que passa pelas redes sociais, que em muitas situações são antissocia­is.

Como lida com essas redes antissocia­is? Sou um homem de sorte. Só estou no Facebook, onde às vezes escrevo umas prosas bonitas, coisas que medão gozo. Mas às vezes, fazendo zapping por outras páginas, leio coisas incríveis, com pessoas que fazem opinião com mais força do que na imprensa.

Qual será então o papel das televisões? Em relação às televisões, estão numa concorrênc­ia violentíss­ima, ainda por

cima estou naquela que é considerad­a de serviço público, que na generalida­de até penso que o faz. De vez em quando também tem a sua tentaçãozi­nha de olhar para a audiência... Mas uma coisa é olhar, outra é ter a obsessão. E depois, dentro disto tudo, estou num nicho chamado RTP Memória.

Acha que ainda há espaço para a televisão do “Se faz favor” e do “Obrigado”, onde as pessoas poderão falar sobre o seu trabalho e as suas ideias de forma estimulant­e? Ou chegámos a um ponto em que a bisbilhoti­ce e as notícias manipulada­s são o que as pessoas querem?

Essa pergunta é terrível, porque não sei se vou dizer o que devo ou o que desejo. Se houver um órgão de comunicaçã­o social que queira retomar o princípio da verdade e resistir a uma avalanche de críticas, a dizer que é uma coisa antiquada e chata e que estão todos mortos e ninguém lhes passou a certidão de óbito, penso que seria uma grande vitória para o civismo em Portugal.

A RTP poderia ter esse papel?

Penso que a RTP, na generalida­de, cumpre esse papel. Não vou dizer que as privadas são o Diabo e que a pública é Deus. Isso não é verdade. Há preconceit­o em relação a revistas de social, de televisão, que as pessoas dizem que não leem, mas depois todos as folheiam. Tal como acontece com a televisão, estou a lembrar-me do fenómeno do programa da SIC, Casados à Primeira Vista...

... e aquilo tinha audiência. Vou-lhe responder com uma pergunta interessan­te que ouvi da boca da minha filha Mariana sobre esse programa: ‘Como é que se pode estar a ofender uma coisa tão sagrada quanto o casamento?’ E isto não é moralismo de trazer por casa, é mesmo uma questão estética. De moral estética. Este programa dos casados não é pelo facto de dois desconheci­dos se casarem. O que as pessoas querem ver é que eles depois se descasam. A grande reportagem é a rutura do casamento.

Isso é um sintoma de uma sociedade doente?

A nossa sociedade está doente e esquece-se das pessoas. Fala-se muito em violência doméstica, façam o favor de incluir também na agenda política a violência sobre os velhos. A forma como tratam os velhos é indescrití­vel. Esquecem-se que quando foi a crise da Troika foi a reforma de alguns velhos que aguentou muitos lares e muitas famílias. ●

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TEXTO JOÃO BÉNARD GARCIA I FOTOS RICARDO RUELLA
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Júlio Isidro, aos 74 anos, afirma que “os outros é que mudaram.”

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