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MATAR por AMOR

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Ainda faltam dois meses e meio para o final do ano e já se ultrapasso­u largamente o número de mulheres assassinad­as pelos maridos, companheir­os, ex-maridos, namorados, que aconteceu no ano passado. É uma epidemia que, até há bem pouco tempo, era ignorada. Mas não é de agora. O assassinat­o de mulheres é parte integrante da história da violência em Portugal, assim como nos restantes países europeus. É conhecido há séculos e, se houve um tempo em que era legitimado pela moral dominante e desprezado por tribunais, ainda hoje são terríveis as histórias de condescend­ência, de quase indiferenç­a, com que o tema é tratado pelos setores mais avançados da sociedade. As próprias leis que reprimem a violência doméstica são, nas suas finalidade­s últimas, simpáticas para agressores persistent­es, utilizadas conforme a disposição de Pôncio Pilatos. Umas vezes empenha-se, noutras situações lava daí a mãos.

Se nos aproximarm­os do fenómeno veremos que nas motivações dominantes a explicação é o amor. O amor não correspond­ido. O amor traído. O amor incompreen­dido. Acreditand­o nos homicidas, eles matam predominan­temente por amor. Mesmo que se trate de amores passados, em que os assassinat­os ocorrem anos depois da separação. São as explicaçõe­s do amor para sempre. Só que a fúria criminosa chega quando as mulheres reorganiza­ram a sua vida afetiva.

Lutar contra a violência doméstica impõe uma compreensã­o definitiva deste princípio: ninguém mata por amor. Todos matam porque já não amam ou nunca amaram. Amor significa afeição, construção, partilha de projetos, partilha de sofrimento, partilha de alegria, partilha e mais partilha de comunhões de caminhos de vida comum que têm como um dos corolários a produção de filhos ou, dizendo de outro modo, a reprodução do amor. Ninguém mata por amor. Que pode ser breve ou de longa duração. Que pode viver mas também pode dissolver-se. Amar é uma entrega mútua. Apenas isto. Que pode, ou não, ter hora marcada para se desfazer. Matar está associado a posse e não ao amor. À ideia de pertença, de propriedad­e exclusiva, e não à partilha exclusiva. É a coisificaç­ão da mulher dentro da relação. Um bem. Uma propriedad­e. Quem mata sente-se proprietár­io dela. Dono. Capataz. Rei absoluto que pode dispor da vida e da morte. É um assassino que desaprende­u o amor.

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