TV Guia

“PENSEI QUE IA MORRER a gravar a série”

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Aos 51 anos, arrastou mais de dois milhões de pessoas para verem as suas comédias, e tudo sem apoios. “O meu subsídio é o público”, dispara. A desempenha­r o papel do maléfico proxeneta Carlos Bainha, na série da RTP1 que retrata o episódio que ficou conhecido como Mães de Bragança, o ator explica como descobriu o seu maior sucesso teatral e desvenda uma veia profission­al que muitos desconhece­m

Asérie Luz Vermelha, da RTP1, é a prova de que estamos a fazer coisas diferentes na ficção em Portugal. E é por aqui que gostava de começar: coube-lhe o papel de Carlos Bainha, o dono da casa de prostituiç­ão. Uma personagem dramática e crua. Uma figura fora da comédia, a sua zona de conforto. Um dia, telefonam uns senhores a dizerem que queriam fazer uma série comigo sobre as Mães de Bragança. Lembro-me da altura em que fiz no Herman um sketch cómico sobre as Mães de Bragança. Foi sempre uma história que me fascinou e pela simples razão de que, como tenho uma família brasileira, sei bem o que é o Brasil e a relação que os brasileiro­s têm com o corpo, que é de um despudor... Em que quase não há regras. Não há regras. E chega uma altura em que já não há género. É o calor e o que for. Marcha tudo! Eles têm um ditado que acho extraordin­ário: ‘Se não está você, vai você mesmo.’ Vale tudo e depois a coisa mais extraordin­ária de chegarem a Portugal, a uma terra como Bragança, que no inverno às quatro da tarde já é de noite, é umas gajas que fazem tudo o que as mulheres dos bragantino­s não faziam. A história é de facto fantástica.

Não, a história é mais do que fantástica, é gloriosa. Elas destruíram famílias inteiras. As pessoas divorciara­m-se e alguns casaram-se com as brasileira­s. E eu sempre achei essa história muito curiosa.

Então, quando o convidam, acertam em cheio num tema que o fascinava.

Era um tema que com o Herman já tinha abordado do ponto de vista humorístic­o. Obviamente que a série Luz Vermelha não é passada em Bragança. É passada onde calhar, o que para mim não faz diferença porque, como ando pelo País todo com espetáculo­s, sei que em cada terrinha há um Sela [nome da casa de alterne da série da RTP1]. Facto que mexe muito com o puritanism­o de certas pessoas.

Sim, e toda a gente acha que é um horror isso existir na sua terra, mas sempre existiu e existirá. E a história de Bragança é fascinante porque vêm umas brasileira­s dispostas a fazer tudo e a quererem ficar cá. Consciente­s de que estavam a fazer mal, a destruir lares. Quando a dupla de realizador­es me contacta não os conhecia. Estive depois a ver coisas feitas por eles e são muito giros. Mostram-me uma ideia que não é passada em Bragança quando me fizeram a proposta. Eles são os dois muito modernos, a linguagem é gira e aquilo foi gravado em tempo recorde.

Foi duro para si do ponto de vista profission­al?

Foi. Duríssimo! Foi o trabalho mais difícil que fiz na minha vida. Tinha de me levantar às seis da manhã... Lembro-me de pensar que se conseguiss­e fazer aquilo conseguia fazer tudo. Levantei-me às seis da manhã, gravei 12 cenas seguidas e depois tive matiné e noite do espetáculo God. E lembro-me de estar na sessão da noite e de pensar que se aguentava aquilo aguentava tudo. Estive desde as seis da manhã até à uma do dia seguinte a gravar ou a atuar.

E isto aos 51 anos. E isto aos 51 anos. E ainda por cima o God é um monólogo. As pessoas vão ao teatro para me ver. Gravei as 12 cenas, fiz a matiné, esperei 40 minutos e comecei a sessão da noite. Pensei que ia morrer.

E como foi sair do registo de comédia que faz há quase 32 anos?

Foi uma experiênci­a muito engraçada porque trabalhei com pessoas que nunca tinha visto na minha vida.

Saiu da zona de conforto.

Saí foi da zona da comédia, onde estava mais habituado a trabalhar. Foi engraçado ver os meus outros colegas a funcionare­m e nunca tinha trabalhado com eles. Os realizador­es também são muito giros. Ela então tem uma linguagem muito crua…

Muito cinematogr­áfica.

Bastante. Eles são uma dupla de realizador­es, não os conhecia, mas estavam em sintonia. Vi os primeiros planos e achei que tinha uma lógica gira. Estranhou.

Não. Vi a lógica e gostei. Eles têm uma maneira leve de fazer as coisas. É como nós no teatro. Temos de ir bem-dispostos para fazermos bem as coisas. E como foi preparar este Carlos Bainha?

Eu conheço vários Carlos. Fiz uma peça

“Gostava de ter o meu nome num avião,

uma paixão desde pequenino. Adorava que as pessoas ouvissem: ‘Bem-vindos ao Boeing Joaquim Monchique”

no Mundial [antigo cinema em Lisboa] e ia muitas vezes comer bifes ao bar-discoteca Black Tie e elas era muito atenciosas, fantástica­s e bem-dispostas. Este Carlos é um dono de casa de alterne de província, que também conheci alguns. Embora ali a autora tenha enveredado pela história do tráfico humano.

Que é uma realidade.

Em parte. Todas as meninas que conheci não estavam lá obrigadas, estavam porque queriam. Elas estão aqui três meses, depois vão para Espanha e rodam, mas sempre com a consciênci­a de que estão aqui para ganhar dinheiro e voltar para o Brasil quando tiverem o suficiente para construir uma casa. Costuma então frequentar casas de alterne quando está em digressão?

Sim, eu sou muito curioso. Um dos

meus maiores êxitos de comédia... meu, da Ana Bola e da Maria Rueff são as três p **** de beira da estrada. A ideia surgiu-me num dia em que ia a caminho da casa do Herman José, em Azeitão. Passei em Coina e vi três mulheres sentadas em caixas de fruta na beira da estrada e pensei: ‘Eu quero fazer isto.’ Parei o carro, fui falar com elas. Uma até me disse: ‘Ai, querido, gosto tanto de ti que até te faço de borla.’ Mas eu disse-lhe que não: ‘Vamos conversar!’ E foi assim que nasceu o sketch. É a vida real que nos inspira. Já falei com muitas prostituta­s, mas todas aquelas com que falei estão lá porque querem. As brasileira­s nunca vêm para cá pelo tráfico. Haverá casos de tráfico, mas não entre as raparigas que conheci.

Como foi preparar esta personagem, evitando que caísse num registo cómico?

Senti da parte dos realizador­es uma grande admiração por mim. Fez-me impressão um trabalho em que não havia riso, mas gostei tanto da proposta deles que decidi arriscar uma coisa diferente. É ator, consegue fazer todos os registos.

Mas há mais de 30 anos que faço as pessoas rir. E é por isso que as pessoas estão muito espantadas com o Carlos Bainha. É mais uma personagem. É rico, em termos de personagem, e adorei fazê-lo, mesmo no auge da loucura de trabalhar sem parar.

Gostava de fazer uma novela em Portugal?

Gostava. Fui muitas vezes desafiado, mas nunca aceitei fazer porque me vêm sempre buscar para os núcleos cómicos. Gostava que as pessoas, numa novela, me vissem como agora me veem a fazer o Carlos. Se me derem um bom vilão, sou capaz de aceitar. Adoro que as pessoas na rua me digam que o Carlos Bainha é detestável. Numa novela tinha de ser assim. Comédia já faço com os melhores. Não quero aparecer só para fazer um macaco.

Com os melhores, como o Herman? Sim, claro. Ainda me lembro de como nasceu a Pilita, uma das minhas personagen­s mais populares. Recordo-me de que estava a jantar com o Herman e de lhe ter dito que andavam a fazer crónica social e que diziam umas merdas e que queria pôr uma peruca e dizer uns disparates de crónica social e foi um sucesso estrondoso.

Como gostava de ser recordado? Gostava, por exemplo, de ter o seu nome numa sala de espetáculo­s?

Não. Gostava era de ter o meu nome

num avião. Desde pequenino que tenho uma paixão pelos aviões. Adorava que as pessoas ouvissem: ‘Bem-vindos ao Boeing Joaquim Monchique.’ Era a única homenagem que gostava que me fizessem. Sempre fui uma pessoa do ir, de descobrir. Já perdi a conta aos países que visitei. Só me falta ir à Nova Zelândia e visitar a barreira de corais.

O que vai fazer em 2020?

Agora estou com o God, a 31 de janeiro volto com a 7ª temporada do Mais Respeito Que Sou Tua Mãe, no Porto. E em março regresso com o Mais Respeito... ao Teatro Villaret, que é um espetáculo que me dá muito gozo fazer.

Como descobriu esse texto que se tornou um sucesso de bilheteira?

A história do Mais Respeito... é muito engraçada. Quando estava na TV Globo a gravar a novela, Buenos Aires fica a duas horas de viagem e é uma das minhas cidades favoritas, depois de Nova Iorque. Eles têm uma componente teatral muito grande e são bastante ecléticos. A oferta é brutal. Fui para a Avenida Corrientes, que tem teatros de um lado e de outro e, lá ao fundo, vi um cartaz cor-de-rosa a apagar e a acender e uma fila de pessoas a dar a volta ao teatro. Os teatros são como os restaurant­es: Se estiver cheio é porque é bom. E li: Mas Respeto Que Soy Tu Madre. E pensei: ‘Eu quero fazer isto.’

Isso tudo sem ver a peça?

Sim, só com o cartaz. Achei que aquilo devia ser extraordin­ário. Apanhei uma matiné, ao intervalo fui comprar bilhete para a noite e à noite já estava a construir o meu elenco, já estava a pô-los todos na Baixa da Banheira, já estava a fazer a minha adaptação.

E arriscou levar à cena uma peça sem quaisquer apoios de orçamentos da Cultura em Portugal.

Eu também não consto desses orçamentos. O meu subsídio é o público.

Essa é a lógica e a escola de La Féria. É a escola da Broadway, do West End. O Filipe é um dos meus mestres e quem me deu a visibilida­de junto do público com a Grande Noite (SIC, 1992). Nessa altura foi impression­ante porque estreei numa quinta-feira e na sexta as pessoas já sabiam o meu nome. Foi inacreditá­vel! Aconteceu comigo e com o João Baião. É por isso que estou sempre a homenagear o Filipe La Féria, que é um ser humano extraordin­ário. Eu sigo a lógica do Filipe: ‘Se está frio e as pessoas vão ao teatro, lá dentro tem de estar quente.’ Temos de dar sonho às pessoas. Aprendi isso com ele e têm-me corrido bem porque sozinho tenho mais de dois milhões de espectador­es.

E depois há um outro lado do Joaquim que ninguém conhece: o decorador semiprofis­sional. O estúdio onde nos encontramo­s é um projeto seu.

É. E eu sei tudo sobre decoração. Só não sou decorador a tempo inteiro porque preciso de ouvir palmas, senão era decorador. Isto é o que me dá descanso. Gosto imenso de obras e neste espaço não havia muito orçamento. O meu desafio foi transforma­r um armazém de batatas no estúdio de uma produtora. Gosto muito de decoração e até vou às feiras internacio­nais. Tem então tem uma veia saliente de decorador e arquiteto.

Eu só não fui decorador ou arquiteto porque adoro palmas. Foram aliás as palmas que me f ****** o sonho. E como surgiu o gosto pela decoração? As pessoas não sabem, mas eu já decorei imensas casas. Projeto, obra e decoração. Os amigos dos amigos veem, gostam, perguntam quem foi e eles dizem que fui eu. E depois pedem-me. Quando tenho tempo faço-lhes os projetos. Conheço e sei tudo sobre design, adoro perder-me horas no Leroy Merlin. Imagino que goste de ver programas que envolvam decoração e obras?

Sim, vejo o Querido Mudei a Casa (TVI) na perspetiva de como as pessoas conseguem ser pirosas. Acho que deviam fazer um programa sobre como estão as casas que remodelara­m passado um ano. Gostava de ver o estado em que as coisas estão. As pessoas não cuidam. Mas quando era mais jovem, esta já era uma vocação que poderia ter seguido? Não. Eram os aviões. A minha casa era um aeroporto. A tábua de engomar da minha empregada era uma pista. A minha família dava-me aviões, daqueles telecomand­ados. Uns primos do Brasil traziam-me sempre miniaturas dos aviões da Varig que ainda hoje guardo.

“Eu só não fui decorador ou arquiteto porque adoro palmas. Foram aliás as palmas que me f ******

o sonho”

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Joaquim Monchique vive dias felizes e revela as razões nesta entrevista à TV Guia.
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Diz ser “curioso”, que gosta de conversar com prostituta­s e visita vários bares de alterne. Revela ainda que o sketch das meninas da vida com caixotes de fruta de Donos Disto Tudo (RTP1) foi baseado numa história que viveu em Coina.

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