“VAI FALTAR SEMPRE A DESPEDIDA”
Durante anos, lutou, em casa, pelo bem-estar do progenitor, vítima de esclerose múltipla e que acabou por não resistir à doença durante a pandemia. A última vez que o viu foi antes de ser internado no hospital. As derradeiras palavras nunca foram ditas e o cantor revela agora, em exclusivo, que se despediu em conversas com Deus. Aos 48 anos, fala do que o fez optar por estar sozinho e das desilusões amorosas que sofreu durante o auge da sua carreira, com o Ala dos Namorados. Eis uma conversa franca, sem assuntos proibidos
´Edo Algarve mas vive há cinco anos em Setúbal. O que o trouxe até à cidade do Sado? Não sou de Setúbal, mas já me sinto um setubalense. Costumo dizer que sou um algarvio, louletano, porque é a minha terra, a minha base. Sou um algarvio muito orgulhoso e encontrei Setúbal por acaso. Entrei para a universidade, em Terapia da Fala, aqui há cinco anos. Entrei na baixa de Setúbal e foi amor à primeira vista, apaixonei-me. Sinto-me em casa. Mas o Algarve já ficou para trás há mais anos... Sim, saí do Algarve com 16 anos. Vim estudar Dança para o Conservatório. Foi esse sonho que me fez sair da minha terra e agradeço aos meus pais que me deixaram sair, alugar um quarto e aventurar-me. O que é que sente um miúdo do Algarve que, na altura, com 16 anos, vem sozinho para Lisboa? Foi assustador, mas ao mesmo tempo acho que guardo as melhores memórias da minha vida. Antes de entrar no Conservatório, estive na Companhia Nacional de Bailado. Entrei para um mítica escola, a Veiga Beirão. A mudança, coisas diferentes, conhecer nova gente, novas culturas, novas maneiras de estar e eu nada habituado a isso. Foi um desafio constante. A dança ficou para trás. Porquê? Teve de ficar. Fiz uma hérnia discal. Nessa altura, já cantava e tive de decidir. Foi o meu primeiro grande desgosto. Foi duro! Fui tentando continuar, mas percebi que não era aquele o caminho. Bastava um movimento mais brusco para ter de parar. Criava-me ansiedade, dor e, emocionalmente, estava a ser muito difícil. Foi salvo pelo canto? Sim. Cheguei à música por acaso, em 1992/93. Na altura, tinha uma voz muito diferente, um pouco andrógena. Estava na escola de dança e cantava muito nos corredores. Toda a gente me conhecia exatamente por isso. E como é que chega à ribalta? Fazia com a banda Os Diva. Descobriram-me numa noitada, na discoteca Kremlin, estava eu a cantar aos altos berros e estava com os meus colegas de Conservatório, a dançar e a cantar. Éramos miúdos! E houve alguém que, perante aquilo tudo, ouviu a minha voz, tocou-me e disse que eu tinha uma voz do caraças. Perguntou-me se eu gostava de levar a música mais a sério. Era o Paulo Abelho, dos Sétima Legião. Ficou com o meu contacto. Duas semanas depois, recebo um telefonema dele e tudo aconteceu. A partir daí, foi uma bola de neve. Nesse seguimento, surge a Ala dos Namorados e é o grande auge da sua vida profissional. Começou logo a correr bem. Fomos nomeados para montes de prémios... Foi inexplicável! Como é que um miúdo que vem do Algarve com o sonho de dançar, de repente, é um dos maiores artistas portugueses? Como é que geriu esse mediatismo? Foi muito complicado. Já depois da Ala começar a ter sucesso, dois ou três anos depois de termos surgido, pensei em desistir. Nunca lidei bem com o mediatismo, ao contrário do que muita gente pensa. Claro que há uma altura em que uma pessoa se ilude mais ou até passa a gostar um bocadinho daquela atenção, mas, interiormente, nunca me senti confortável. Gosto de cantar, do palco, não gosto do retorno que isso dá. Disse que pensou em desistir. Porquê? Exatamente pelo medo do mediatismo. Deixei de poder gritar na rua, se me apetecesse. De repente, tinha uma data de gente a reparar na forma como me vestia, como me movimentava, com quem estava. Foi uma mudança muito brusca na minha vida e, na altura, não sabia mesmo se ia aguentar a pressão. Era muito tímido. Apesar de gostar de dançar, tinha muito medo de me movimentar. No meio da multidão sentia-se sozinho? Esse é um sentimento que
“Os amores assolapados estragaram muito a minha pessoa. Às vezes, também temos de saber amar. Se não nos amarmos a nós próprios, como é que vamos amar os outros? Esquecia-me disso”
tenho ainda hoje. Não tenho qualquer problema em dizer que sou uma pessoa muito fechada, muito sozinha. Por desilusões? Sim. Quer a nível pessoal, quer a nível profissional. Mas isso também faz crescer. Não tenho problemas em dizer que nem sequer tenho companheiro. Deixei de acreditar um bocadinho. É muito difícil entregar-me, sem ser à minha família e a alguns amigos muito próximos.
SEM NAMORADO HÁ SEIS ANOS
Sente que se aproveitaram de si? Completamente! Era muito ingénuo, adorava ajudar. Dava tudo o que tinha sem olhar a nada. Prefiro ver os outros felizes e eu fico feliz com isso, mas tive de crescer. Também tinha de pensar em mim. Fechei-me. Mesmo em casos amorosos, estou sozinho há muito tempo. Há mais de seis anos que não tenho ninguém. Para aprender a gostar de si próprio? Acho que sempre gostei, mas esquecia-me de mim em prol dos outros. Então no que diz respeito aos amores... Os amores assolapados estragaram muito da minha pessoa. Às vezes, também temos de saber amar. Se não nos amarmos a nós próprios, como é que vamos amar alguém? Esquecia-me disso. O auge profissional da sua vida deu-se na década de 90. Afirmou que perdeu parte da sua privacidade. Sentia que a homossexualidade era algo que tinha de esconder? Era vítima de preconceito? Completamente! Era um terror. Há 20 anos era muito diferente. A aceitação e a libertação eram outras. Apesar de, no meio artístico, nunca ter sentido esse preconceito, ele também existe. Mas nunca quis esconder nada. Sempre fui muito natural. Na rua, às vezes, há palavrinhas, risinhos, olhares... Sempre! É uma luta que alguma vez vai acabar? Acho que sim. Apesar de tudo o que estou a dizer, as coisas melhoraram. Hoje vê-se casais homossexuais de mão dada, a beijarem-se... Está tudo muito diferente. Depois do mediatismo da Ala dos Namorados, há uma altura mais pacífica. Como é que se lida com esse apaziguar? Acho que faz tudo parte e há que saber lidar com isso e dar a volta por cima. A verdade é que, onde vou, há sempre pessoas que me conhecem. Acho que marquei fortemente uma época. Houve alguma altura, desde então,
que se tenha sentido esquecido? Não diria esquecido. Se calhar, deu jeito à “máquina”, aos que têm alguma influência nisto tudo. Na realidade, não sou um qualquer. Cada vez que subo a um palco, faço-me notar: pela voz, pela presença, pela diferença. Estou muito em paz com isso, sempre dei o máximo por aquilo que faço e sempre tentei ser transparente. Agora, às vezes, há quem não goste de nós só por sermos quem somos. E, sempre que podem, passam uma rasteira. E a mim passaram-me. Quem? Não posso dizer quem.
A MORTE DO PAI NA PANDEMIA
Em plena pandemia, como é que um cantor sobrevive à crise? É uma luta constante. Já nem me lembro do último concerto que fiz. Tenho muitas saudades do palco, do público, e tenho muita pena que a cultura seja um pouco esquecida. As pessoas quando estão confinadas precisam de música, cinema, televisão e consomem arte, cultura. A vida sem cultura não respira, não tem sabor, não se vive. Eu dou aulas de Canto, no Coral Luísa Todi, e tenho alguns apoios. O que é que a pandemia mudou na sua vida? Acho que mudou em mim e em todas as pessoas conscientes e que estão a viver esta pandemia. No início, não queríamos acreditar e acho que fomos ingénuos, não havia tanta informação. Quando comecei a ter verdadeiramente consciência, fiquei muito tempo em casa. Só saía à noite para correr na baixa, quando não estava ninguém. Ainda por cima com a minha mãe em casa, o meu pai no estado em que estava... Tinha todas essas responsabilidades acrescidas. Foi assustador! A minha mãe chegou a dizer que poderíamos ter de voltar ao Algarve, temos tudo lá: as nossas casas, a minha irmã... Mas fomo-nos mantendo. Deus ajuda. A sua mãe é a sua melhor amiga. Sempre foi assim? Sempre. Claro que há uma altura em que há tendência em não contar as coisas à mãe, mas apercebi-me da mãe que tenho: é uma mulher de armas, de força, uma verdadeira guerreira, com uma mente superaberta, que me acompanha sempre! É a minha fã nº1, a minha maior crítica, superdivertida. Andamos por todo o lado juntos. Como ela costuma dizer, é um pagode! Conquistou a sua independência muito cedo e, já depois do 40, volta a receber os seus pais em sua casa. A minha irmã não tinha tanto tempo como eu e não conseguia estar tão presente. Quando o meu pai começou a ficar muito doente, decidi que eles viveriam comigo, aqui. Não tenho alguma privacidade, mas tenho uma companheirismo e um apoio que é indescritível e não sei se conseguirei deixar de ter. A minha mãe é muito especial e temos vivido muita coisa juntos. Durante a pandemia, perdeu o seu pai, que tinha esclerose múltipla... O meu pai já estava doente há muito tempo, mas os últimos três meses foram um declínio. Sempre disse que, enquanto eu e a minha mãe pudéssemos, o meu pai não ia para nenhum lar. Éramos nós quem tratávamos dele. Só quando a situação se tornou insuportável para o seu bem-estar é que tivemos de comunicar, pedir ajuda. Mas foi muito doloroso. Lidar com a doença de alguém que, de mês para mês, está pior, magoa muito. Foi um sofrer lento. É um vazio que fica. O mais doloroso foi quando o seu pai, em momentos, deixou de o conhecer? Houve alturas em que ele me chamava outros nomes, houve dias em que me perguntava quem eu era... Eram apenas momentos, porque, ao fim de minutos dizia-me: ‘Filho, anda cá.’ Perdê-lo foi perder um bocado de si? Foi perder muito de mim. É perder uma bela parte de mim. O pior de tudo foi não me poder despedir. Desde que ele foi para o hospital que não o pude visitar. Nunca mais o vi. Quando os médicos começaram a ligar e a preparar-nos, estávamos conscientes de que podia acontecer a qualquer momento. Só que o dia em que se recebe o telefonema da confirmação do óbito é sempre duro. Tive uma atitude calma, serena. Conforme as horas iam passando, tornava-se cada vez mais duro. O dia da cremação foi o pior. Vai faltar sempre a despedida. É um homem crente. Foi em conversas com Deus que fez a despedida possível? Sim. Aos poucos, fui-me despedindo do meu pai.
“O dia em que se recebe o telefonema da confirmação do óbito é sempre duro. Conforme as horas iam passando, tornava-se cada vez mais duro. O dia da cremação foi o pior”