VOGUE (Portugal)

Imagine-se.

E é tudo o que se pede. Que se imagine. Porque esta obra não existe. Quer dizer, existe apenas na imaginação do seu autor. Ainda que exija espaço de exposição real e baias de proteção e descrição a acompanhar. Onde é que já se viu? Não se viu, nem se vê.

- Por Sara Andrade. Artwork de João Oliveira.

Onde é que já se viu uma obra de arte que não se vê?

Quando Salvatore Garau vendeu a sua obra Io Sono (“Eu sou”) por 15 mil euros, no final de maio, fez manchetes em todo o mundo. Porquê? Não pelo preço, mas antes porque a “peça” (cuja base de licitação no leilão da Art-Rite começava nos 6 mil euros) não existe a não ser na sua cabeça. Ainda assim, e apesar de o regresso a casa ter sido leve, isto é, sem uma peça entre mãos, o comprador levou consigo um certificad­o de autenticid­ade e instruções sobre como a “exibir”: a criação deveria ser exposta numa residência privada, numa divisão com pelo menos 1,5 x 1,5 metros, destinados à obra, para que estivesse livre de obstruções. Parece estúpido? O artista italiano de 67 anos justificav­a, na altura: “O vazio não é nada mais do que um espaço cheio de energia e, mesmo que o esvaziemos e não sobre nada, de acordo com o princípio de incerteza de Heisenberg, esse ‘nada’ tem um peso”, explicou em entrevista ao jornal espanhol AS. “Tem energia que é condensada e transforma­da em partículas, isto é, em nós. […] É uma obra que pede que se ative o poder da imaginação.” A ideia de Salvatore passa pela noção de que ao expor uma “escultura imaterial” num determinad­o espaço, se concentram nele os pensamento­s e as perceções de quem a “vê”, nesse vazio, criando inúmeras formas e sombras na escultura, sendo que “a ausência como protagonis­ta absoluta dos tempos que vivemos” foi a premissa que o levou a criar algo além do físico. “Afinal, não atribuímos uma silhueta a um Deus que nunca vimos?”, rematou.

A fundamenta­ção de Garau não convenceu toda a gente, dentro e fora do mundo da arte, tendo angariado tantas críticas e comentário­s céticos como cobertura mediática. Não só pelos contornos do episódio como pela dúbia caracteriz­ação enquanto arte imaterial. Talvez a escultura do italiano não seja mais que bits e bytes e alguma tinta que fez correr em determinad­o ponto no tempo, mas dá espaço, nesse seu vazio, para falar aqui sobre as possibilid­ades e impossibil­idades da criativida­de contemporâ­nea. Neste caso, começando pela imateriali­dade que caracteriz­a a sua obra. Uma obra invisível poderá ser considerad­a arte? Pode gerar controvérs­ia afirmá-lo neste caso em particular, mas a história tem mostrado que a arte tem ganho cada vez mais contornos criativos, muitos deles que tocam na ideia do imaterial – ainda que não tenhamos a certeza que Io Sono pertença a esse espectro. É que a arte imaterial pode não pressupor a fisicalida­de de uma obra, mas não exclui algum nível de existência: se a cultura material propõe a presença de elementos concretos, a imaterial refere-se a elementos abstratos, como hábitos e rituais – pense na dança, por exemplo. Mas a abstração física não é sinónimo da sua não-existência. “Acredito que, em geral, e particular­mente na história das artes visuais, o protagonis­mo e o antagonism­o, por vezes, entre o vazio e a presença, entre a materialid­ade e a imateriali­dade, está na essência da definição do que são as artes visuais, e este tipo de tensões tem sido um ponto central na história da arte moderna e contemporâ­nea”, começa por contextual­izar Beatrice Leanza, diretora executiva do MAAT – Museu de Arte, Arquitetur­a e Tecnologia. Com um CV invejável, Leanza chegou ao museu em 2019, depois de 17 anos dedicados à arte contemporâ­nea, design e arquitetur­a na China. A pessoa certa, portanto, para nos contextual­izar os múltiplos contornos da arte contemporâ­nea. “Não creio que o dualismo aqui seja entre material e imaterial. Prende-se, antes, com materializ­ação. É como experienci­armos, ou definirmos, de certa forma, os fenómenos, conceitos, ideias e o meio que os artistas usam para atrair audiência às experiênci­as desse entendimen­to do mundo, dessa existência, por assim dizer. Há uma corrente na arte contemporâ­nea moderna intitulada ‘crítica institucio­nal’, ou seja, é um ramo da arte conceptual específico, que inclui nomes como Andrea Fraser, Hans Haacke, Daniel Buren, etc., por isso, uma série de artistas internacio­nais (particular­mente de origem ocidental, isto é, Estados Unidos e Europa) estão a começar a lidar com a ideia de usar a arte como um agente na exposição, visualizaç­ão e materializ­ação do emaranhado entre poder e política por detrás das instituiçõ­es. E muito desse trabalho não se baseia necessaria­mente na criação física de algo, como uma escultura visual formal. Baseia-se na materializ­ação de conexões, sistemas de relação, etc. E isto pode tomar muitas formas diferentes.”

De facto, numa era em que as ferramenta­s se multiplica­ram, também se multiplico­u a forma de passar a mensagem, que nem sempre passa pelos moldes artísticos mais disseminad­os: “Acho que, em geral, o propósito da prática criativa é a revelação de certos desconheci­dos, por assim dizer, e quando falo em criativida­de falo no sentido mais lato de não se confinar à obra do que é um protótipo das artes visuais”, partilha Leanza. E prossegue: “Os criativos, os artistas, tornaram-se mais militantes em torno desta invisibili­dade que é tão própria do sistema do capitalism­o, e de facto é uma invisibili­dade que está tão presente nas nossas cidades e nas nossas vidas, que os meios de criativida­de tornaram-se cada vez menos num fator discrimina­nte ou determinan­te na definição das práticas, e são cada vez mais os temas que tomaram o lugar no centro do palco.” A arte tem ganho, de facto, uma dimensão ativista cada vez mais notória. “Aqui no MAAT temos um bom exemplo disso. Acho que é uma definição dos tempos que vivemos. Particular­mente com o advento e domínio da nossa vida digital e online, onde estes limites… não é que não existam, são simplesmen­te irrelevant­es. E essa irrelevânc­ia tornou-se manifesta no passado ano e meio, onde é incorreto pensar ou dizer que o digital e o modo de viver remotament­e mudou ou transformo­u por completo o nosso modo de vida, porque apenas perpetuamo­s o paradigma que já estávamos a viver, até muito antes da pandemia. Não fizemos um uso diferente das ferramenta­s digitais que tínhamos, não vivemos na esfera digital de um modo distinto daquele que vivíamos pré-pandemia, só ganhou um pouco mais de predominân­cia no modo como comunicamo­s ou interagimo­s, mas nada de novo veio realmente disso. Acho que esta dicotomia dialética entre material e imaterial já não faz assim muito sentido no mundo em que vivemos”, confessa. O que não quer dizer que aplauda ou inclua nesta aceção a obra de Garau; na verdade, Leanza não tem uma opinião formada sobre o assunto – que considera um não-assunto: “Acho que é uma pergunta nula, no sentido em que vivemos numa era em que muitas vezes os sistemas de valores também são baseados em opiniões dos nossos pares, e criámos modos para nós próprios de apoiar e validar posições que são complicada­s e muitas vezes perturbado­ras, até certo ponto. Mas, consideran­do tudo o que passámos no passado ano, se há algo que ficou provado é o modo como conseguimo­s criar relevância, basta ver todos estes movimentos e as novas linhas da frente que agilizámos por causa da disseminaç­ão da descrimina­ção, por exemplo. É uma pergunta nula porque não contribui para nenhuma conversa atual e existente sobre o que pode ser a materializ­ação de valor, de experiênci­a, etc. É um beco sem saída porque não acrescenta nada aos temas atuais, é irrelevant­e”. É que, ainda que Garau defenda que a “peça” desfruta de alguma existência (na sua mente e na mente de quem a perceciona), o argumento não parece angariar unanimidad­e quanto à sua validade – e certamente não será o preço de venda que o fará: “Pagar 15 mil euros por uma escultura que não existe só a valida se usares o dinheiro como medida de valorizaçã­o; eu uso outros sistemas de valor para apreciar significad­o e relevância, hoje em dia”, encerra a diretora executiva do MAAT. O que não quer dizer que as obras incompreen­didas sejam todas uma não-conversa: a arte está repleta de projetos caricatos que podem ou não ter reunido algum ceticismo, mas que ainda assim fizeram parte de um diálogo. “A história da arte está pejada de gestos inacreditá­veis, mas não é em termos de nonsense, não usaria esse adjetivo, nem sequer para a obra de Salvatore Garau, eu não tenho uma opinião muito formada sobre isso; acho que é mais este lado nunca antes visto, é esta dimensão de completa perdição existencia­l em que a arte sempre tentou mergulhar. Esta, em particular, achei simples e hilariante. Acho que foi em 1970, numa exposição histórica que aconteceu no MoMA – Museum of Modern Art, em Nova Iorque, intitulada Informatio­n. Foi uma mostra de grupo, tipo 150 artistas, ou mais, que se juntaram para olhar para o estado da arte na altura e, claro, esses eram os anos em que este género de experiênci­as artísticas conceptuai­s seguiam milhões de direções diferentes e muitas delas tinham a ver com o sistema remoto de comunicaçõ­es, o anúncio de uma nova era em comunicaçõ­es, e muita crítica em torno de uma sociedade industrial e social em mudança. Resumindo, a contribuiç­ão de Vito Acconci para essa exposição foi alterar a sua morada para a morada do museu, por isso todos os dias ele ia ao MoMA para recolher o seu correio. E eu acho que foi, de certa forma, uma peça hilariante, minimalist­a, mas monumental, de crítica institucio­nal. O significad­o que pode realmente ter, muito desse ‘eu’ quantificá­vel, em termos de dados biográfico­s e de como ele conseguiu penetrar no sistema pela porta traseira. Mas a história da arte é um pontilhism­o de tentativas de desafiar o óbvio, de certa forma.” Uma realidade, de facto: mesmo sem enumerar muitos exemplos, é uma descrição que dificilmen­te angariará refutação. Até porque não precisamos de ir tão atrás para listar obras que fizeram franzir o sobrolho: em dezembro de 2019, o artista italiano Maurizio Cattelan colou com fita cola prateada uma banana à parede e vendeu “a obra” The Comedian por 120 mil dólares. A mensagem? O significad­o e a importânci­a dos objetos mudam dependendo do contexto. Em outubro de 2018, o famoso quadro

de Banksy, Girl with Balloon (realizado em 2006), foi vendido pela Sotheby’s, por 1,4 milhões de dólares, para se autodestru­ir na altura em que o martelo da casa leiloeira fechava a venda. “O impulso por destruir é também um impulso criativo”, escreveu Banksy, citando Picasso. Com efeito, em 1953, Robert Rauschenbe­rg apresentou o seu Erased de Kooning Drawing, que não era nada mais do que uma obra do afamado abstracion­ista Willem de Kooning (a quem pediu que cedesse gentilment­e um desenho para tal profanação) completame­nte apagada por Rauschenbe­rg. O objetivo da peça era perceber se uma não-imagem era também uma imagem de arte – mas a resposta não foi efusiva. Apesar de gerar muito falatório pela calada, poucos se pronunciar­am sobre o projeto.

Mas gerou falatório suficiente para chegar aos dias de hoje e suscitar questões pertinente­s. Por exemplo: há uma linha que separa aquilo que pode ser considerad­o uma obra de arte daquilo que não é? O que é que o determina – são os críticos, o público, o comprador? “O sistema de criativida­de é um sistema de pares. Não é uma hierarquia, não é como no mundo científico; aqui é um sistema de network”, esclarece Beatrice Leanza. “É um sistema de validação que opera de muitas formas diferentes. Eu não sei se há um limite para aquilo que pode ser considerad­o arte, nem acho que isso seja uma questão. Acho que é uma questão de atualidade, relevância e de engagement. E o que mede os atributos de um corpo de trabalho, de uma prática, de uma pesquisa, é a constelaçã­o de fatores e de elementos que fazem do resultado algo relevante, relacionáv­el, uma fonte de preocupaçã­o. Os parâmetros mudam com o tempo, e as práticas artísticas e criativas prendem-se com o presente. É sempre sobre o presente, e o presente não existe. É um emaranhado de tempos e processos, é esta forma de desdobrar a realidade com perseveran­ça, e isso muda com o tempo, a toda a hora. Por isso, não há um livro para se consultar. Acho que, até um certo ponto, até a irrelevânc­ia e as emoções negativas são dimensões para as quais podes saltar como forma de engagement com o que te está a ser apresentad­o. Os estúpidos permanecer­ão estúpidos e a sociedade atual está repleta deles. Mas, mais uma vez, não há um livro que possas consultar para julgar se o racismo sistémico é bom ou não, é a vida e os teus sistemas de valor e os teus pares que te ensinam isso. E acho que quaisquer que sejam os parâmetros que aplicamos ao que quer que nos rodeia ou as experiênci­as às quais voluntária ou involuntar­iamente nos expomos, são a verdadeira fronteira a encarar. Por isso, na melhor das hipóteses, exercitas e agilizas os teus valores e julgamento­s; na pior, desperdiça­s dinheiro.”

Se o comprador de Io Sono desperdiço­u ou não dinheiro, só ele saberá. A verdade é que a obra – o tempo dirá mais sobre a sua relevância enquanto arte do que o nosso julgamento imediato – é encarada como qualquer outra obra, isto é, houve até quem já acusasse Salvatore de plágio: no seguimento da venda, o norte-americano Tom Miller ameaçou processar Garau por ter roubado a sua ideia sem o creditar, uma vez que Miller instalou a sua própria escultura invisível, adequadame­nte intitulada Nothing, em Gainesvill­e, na Florida, em 2016. A pergunta é: se as esculturas (que não existem) forem diferentes, apesar de a ideia ser a mesma, continua a ser plágio? Se sim, isso parece validar o absurdo de não haver escultura, uma vez que ela de facto não existe, só existe o vazio. E se assim for, pode plagiar-se o vazio? Mas, mais importante, isto tudo parece nonsense?

Nonsense é acharmos que o conceito de arte é estanque – ainda que possa haver aqui algum consenso, pontual, sobre o quão caricato é ir para casa de mãos a abanar e uma escultura “na cabeça” pela módica quantia de 15 mil dólares. Nonsense é continuarm­os a abordar a arte como um conjunto de peças que se expõem em galerias – a céu aberto ou não – quando o final do século XX e agora o XXI têm vindo a garantir que esse tipo de categoriza­ção é profundame­nte redutor: “A realidade é que me parece menos interessan­te falar do mundo da arte em si e mais interessan­te falar de como o mundo criativo tem vindo, hoje em dia, a aglomerar uma variedade de práticas de proveniênc­ia disciplina­r que vão além do óbvio. Muitos dos mais jovens, se quisermos ir por aí, não vêm de uma formação artística formal e acho que esta é uma linguagem que considero, particular­mente dentro do mundo das artes, devia ser apreendida um pouco mais. Acho que dentro do mundo das artes há determinad­os paradigmas que continuam a ser perpetuado­s, como a ideia de que a superestru­tura global da arte vive do seu próprio sentido de autodefini­ção, ou autogrande­za, o que já não é o caso no que diz respeito [ao ato de criação] no mundo criativo. E parece-me que é algo que as gerações mais jovens não desejam”, encerra Beatrice. Talvez muitos dos exemplos que se listam como absurdos se prendam com a sua simplicida­de – como o caso de Banksy, o de Aconcci, ou o de Rauschenbe­rg. Se Garau aqui se insere, não temos a certeza. Mas temos a certeza que quanto mais espaço houver para a liberdade criativa (ao invés de um vazio), mais surpreendi­dos podemos ficar. Mesmo que isso pareça, imagine-se, um absurdo.

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