Imagine-se.
E é tudo o que se pede. Que se imagine. Porque esta obra não existe. Quer dizer, existe apenas na imaginação do seu autor. Ainda que exija espaço de exposição real e baias de proteção e descrição a acompanhar. Onde é que já se viu? Não se viu, nem se vê.
Onde é que já se viu uma obra de arte que não se vê?
Quando Salvatore Garau vendeu a sua obra Io Sono (“Eu sou”) por 15 mil euros, no final de maio, fez manchetes em todo o mundo. Porquê? Não pelo preço, mas antes porque a “peça” (cuja base de licitação no leilão da Art-Rite começava nos 6 mil euros) não existe a não ser na sua cabeça. Ainda assim, e apesar de o regresso a casa ter sido leve, isto é, sem uma peça entre mãos, o comprador levou consigo um certificado de autenticidade e instruções sobre como a “exibir”: a criação deveria ser exposta numa residência privada, numa divisão com pelo menos 1,5 x 1,5 metros, destinados à obra, para que estivesse livre de obstruções. Parece estúpido? O artista italiano de 67 anos justificava, na altura: “O vazio não é nada mais do que um espaço cheio de energia e, mesmo que o esvaziemos e não sobre nada, de acordo com o princípio de incerteza de Heisenberg, esse ‘nada’ tem um peso”, explicou em entrevista ao jornal espanhol AS. “Tem energia que é condensada e transformada em partículas, isto é, em nós. […] É uma obra que pede que se ative o poder da imaginação.” A ideia de Salvatore passa pela noção de que ao expor uma “escultura imaterial” num determinado espaço, se concentram nele os pensamentos e as perceções de quem a “vê”, nesse vazio, criando inúmeras formas e sombras na escultura, sendo que “a ausência como protagonista absoluta dos tempos que vivemos” foi a premissa que o levou a criar algo além do físico. “Afinal, não atribuímos uma silhueta a um Deus que nunca vimos?”, rematou.
A fundamentação de Garau não convenceu toda a gente, dentro e fora do mundo da arte, tendo angariado tantas críticas e comentários céticos como cobertura mediática. Não só pelos contornos do episódio como pela dúbia caracterização enquanto arte imaterial. Talvez a escultura do italiano não seja mais que bits e bytes e alguma tinta que fez correr em determinado ponto no tempo, mas dá espaço, nesse seu vazio, para falar aqui sobre as possibilidades e impossibilidades da criatividade contemporânea. Neste caso, começando pela imaterialidade que caracteriza a sua obra. Uma obra invisível poderá ser considerada arte? Pode gerar controvérsia afirmá-lo neste caso em particular, mas a história tem mostrado que a arte tem ganho cada vez mais contornos criativos, muitos deles que tocam na ideia do imaterial – ainda que não tenhamos a certeza que Io Sono pertença a esse espectro. É que a arte imaterial pode não pressupor a fisicalidade de uma obra, mas não exclui algum nível de existência: se a cultura material propõe a presença de elementos concretos, a imaterial refere-se a elementos abstratos, como hábitos e rituais – pense na dança, por exemplo. Mas a abstração física não é sinónimo da sua não-existência. “Acredito que, em geral, e particularmente na história das artes visuais, o protagonismo e o antagonismo, por vezes, entre o vazio e a presença, entre a materialidade e a imaterialidade, está na essência da definição do que são as artes visuais, e este tipo de tensões tem sido um ponto central na história da arte moderna e contemporânea”, começa por contextualizar Beatrice Leanza, diretora executiva do MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia. Com um CV invejável, Leanza chegou ao museu em 2019, depois de 17 anos dedicados à arte contemporânea, design e arquitetura na China. A pessoa certa, portanto, para nos contextualizar os múltiplos contornos da arte contemporânea. “Não creio que o dualismo aqui seja entre material e imaterial. Prende-se, antes, com materialização. É como experienciarmos, ou definirmos, de certa forma, os fenómenos, conceitos, ideias e o meio que os artistas usam para atrair audiência às experiências desse entendimento do mundo, dessa existência, por assim dizer. Há uma corrente na arte contemporânea moderna intitulada ‘crítica institucional’, ou seja, é um ramo da arte conceptual específico, que inclui nomes como Andrea Fraser, Hans Haacke, Daniel Buren, etc., por isso, uma série de artistas internacionais (particularmente de origem ocidental, isto é, Estados Unidos e Europa) estão a começar a lidar com a ideia de usar a arte como um agente na exposição, visualização e materialização do emaranhado entre poder e política por detrás das instituições. E muito desse trabalho não se baseia necessariamente na criação física de algo, como uma escultura visual formal. Baseia-se na materialização de conexões, sistemas de relação, etc. E isto pode tomar muitas formas diferentes.”
De facto, numa era em que as ferramentas se multiplicaram, também se multiplicou a forma de passar a mensagem, que nem sempre passa pelos moldes artísticos mais disseminados: “Acho que, em geral, o propósito da prática criativa é a revelação de certos desconhecidos, por assim dizer, e quando falo em criatividade falo no sentido mais lato de não se confinar à obra do que é um protótipo das artes visuais”, partilha Leanza. E prossegue: “Os criativos, os artistas, tornaram-se mais militantes em torno desta invisibilidade que é tão própria do sistema do capitalismo, e de facto é uma invisibilidade que está tão presente nas nossas cidades e nas nossas vidas, que os meios de criatividade tornaram-se cada vez menos num fator discriminante ou determinante na definição das práticas, e são cada vez mais os temas que tomaram o lugar no centro do palco.” A arte tem ganho, de facto, uma dimensão ativista cada vez mais notória. “Aqui no MAAT temos um bom exemplo disso. Acho que é uma definição dos tempos que vivemos. Particularmente com o advento e domínio da nossa vida digital e online, onde estes limites… não é que não existam, são simplesmente irrelevantes. E essa irrelevância tornou-se manifesta no passado ano e meio, onde é incorreto pensar ou dizer que o digital e o modo de viver remotamente mudou ou transformou por completo o nosso modo de vida, porque apenas perpetuamos o paradigma que já estávamos a viver, até muito antes da pandemia. Não fizemos um uso diferente das ferramentas digitais que tínhamos, não vivemos na esfera digital de um modo distinto daquele que vivíamos pré-pandemia, só ganhou um pouco mais de predominância no modo como comunicamos ou interagimos, mas nada de novo veio realmente disso. Acho que esta dicotomia dialética entre material e imaterial já não faz assim muito sentido no mundo em que vivemos”, confessa. O que não quer dizer que aplauda ou inclua nesta aceção a obra de Garau; na verdade, Leanza não tem uma opinião formada sobre o assunto – que considera um não-assunto: “Acho que é uma pergunta nula, no sentido em que vivemos numa era em que muitas vezes os sistemas de valores também são baseados em opiniões dos nossos pares, e criámos modos para nós próprios de apoiar e validar posições que são complicadas e muitas vezes perturbadoras, até certo ponto. Mas, considerando tudo o que passámos no passado ano, se há algo que ficou provado é o modo como conseguimos criar relevância, basta ver todos estes movimentos e as novas linhas da frente que agilizámos por causa da disseminação da descriminação, por exemplo. É uma pergunta nula porque não contribui para nenhuma conversa atual e existente sobre o que pode ser a materialização de valor, de experiência, etc. É um beco sem saída porque não acrescenta nada aos temas atuais, é irrelevante”. É que, ainda que Garau defenda que a “peça” desfruta de alguma existência (na sua mente e na mente de quem a perceciona), o argumento não parece angariar unanimidade quanto à sua validade – e certamente não será o preço de venda que o fará: “Pagar 15 mil euros por uma escultura que não existe só a valida se usares o dinheiro como medida de valorização; eu uso outros sistemas de valor para apreciar significado e relevância, hoje em dia”, encerra a diretora executiva do MAAT. O que não quer dizer que as obras incompreendidas sejam todas uma não-conversa: a arte está repleta de projetos caricatos que podem ou não ter reunido algum ceticismo, mas que ainda assim fizeram parte de um diálogo. “A história da arte está pejada de gestos inacreditáveis, mas não é em termos de nonsense, não usaria esse adjetivo, nem sequer para a obra de Salvatore Garau, eu não tenho uma opinião muito formada sobre isso; acho que é mais este lado nunca antes visto, é esta dimensão de completa perdição existencial em que a arte sempre tentou mergulhar. Esta, em particular, achei simples e hilariante. Acho que foi em 1970, numa exposição histórica que aconteceu no MoMA – Museum of Modern Art, em Nova Iorque, intitulada Information. Foi uma mostra de grupo, tipo 150 artistas, ou mais, que se juntaram para olhar para o estado da arte na altura e, claro, esses eram os anos em que este género de experiências artísticas conceptuais seguiam milhões de direções diferentes e muitas delas tinham a ver com o sistema remoto de comunicações, o anúncio de uma nova era em comunicações, e muita crítica em torno de uma sociedade industrial e social em mudança. Resumindo, a contribuição de Vito Acconci para essa exposição foi alterar a sua morada para a morada do museu, por isso todos os dias ele ia ao MoMA para recolher o seu correio. E eu acho que foi, de certa forma, uma peça hilariante, minimalista, mas monumental, de crítica institucional. O significado que pode realmente ter, muito desse ‘eu’ quantificável, em termos de dados biográficos e de como ele conseguiu penetrar no sistema pela porta traseira. Mas a história da arte é um pontilhismo de tentativas de desafiar o óbvio, de certa forma.” Uma realidade, de facto: mesmo sem enumerar muitos exemplos, é uma descrição que dificilmente angariará refutação. Até porque não precisamos de ir tão atrás para listar obras que fizeram franzir o sobrolho: em dezembro de 2019, o artista italiano Maurizio Cattelan colou com fita cola prateada uma banana à parede e vendeu “a obra” The Comedian por 120 mil dólares. A mensagem? O significado e a importância dos objetos mudam dependendo do contexto. Em outubro de 2018, o famoso quadro
de Banksy, Girl with Balloon (realizado em 2006), foi vendido pela Sotheby’s, por 1,4 milhões de dólares, para se autodestruir na altura em que o martelo da casa leiloeira fechava a venda. “O impulso por destruir é também um impulso criativo”, escreveu Banksy, citando Picasso. Com efeito, em 1953, Robert Rauschenberg apresentou o seu Erased de Kooning Drawing, que não era nada mais do que uma obra do afamado abstracionista Willem de Kooning (a quem pediu que cedesse gentilmente um desenho para tal profanação) completamente apagada por Rauschenberg. O objetivo da peça era perceber se uma não-imagem era também uma imagem de arte – mas a resposta não foi efusiva. Apesar de gerar muito falatório pela calada, poucos se pronunciaram sobre o projeto.
Mas gerou falatório suficiente para chegar aos dias de hoje e suscitar questões pertinentes. Por exemplo: há uma linha que separa aquilo que pode ser considerado uma obra de arte daquilo que não é? O que é que o determina – são os críticos, o público, o comprador? “O sistema de criatividade é um sistema de pares. Não é uma hierarquia, não é como no mundo científico; aqui é um sistema de network”, esclarece Beatrice Leanza. “É um sistema de validação que opera de muitas formas diferentes. Eu não sei se há um limite para aquilo que pode ser considerado arte, nem acho que isso seja uma questão. Acho que é uma questão de atualidade, relevância e de engagement. E o que mede os atributos de um corpo de trabalho, de uma prática, de uma pesquisa, é a constelação de fatores e de elementos que fazem do resultado algo relevante, relacionável, uma fonte de preocupação. Os parâmetros mudam com o tempo, e as práticas artísticas e criativas prendem-se com o presente. É sempre sobre o presente, e o presente não existe. É um emaranhado de tempos e processos, é esta forma de desdobrar a realidade com perseverança, e isso muda com o tempo, a toda a hora. Por isso, não há um livro para se consultar. Acho que, até um certo ponto, até a irrelevância e as emoções negativas são dimensões para as quais podes saltar como forma de engagement com o que te está a ser apresentado. Os estúpidos permanecerão estúpidos e a sociedade atual está repleta deles. Mas, mais uma vez, não há um livro que possas consultar para julgar se o racismo sistémico é bom ou não, é a vida e os teus sistemas de valor e os teus pares que te ensinam isso. E acho que quaisquer que sejam os parâmetros que aplicamos ao que quer que nos rodeia ou as experiências às quais voluntária ou involuntariamente nos expomos, são a verdadeira fronteira a encarar. Por isso, na melhor das hipóteses, exercitas e agilizas os teus valores e julgamentos; na pior, desperdiças dinheiro.”
Se o comprador de Io Sono desperdiçou ou não dinheiro, só ele saberá. A verdade é que a obra – o tempo dirá mais sobre a sua relevância enquanto arte do que o nosso julgamento imediato – é encarada como qualquer outra obra, isto é, houve até quem já acusasse Salvatore de plágio: no seguimento da venda, o norte-americano Tom Miller ameaçou processar Garau por ter roubado a sua ideia sem o creditar, uma vez que Miller instalou a sua própria escultura invisível, adequadamente intitulada Nothing, em Gainesville, na Florida, em 2016. A pergunta é: se as esculturas (que não existem) forem diferentes, apesar de a ideia ser a mesma, continua a ser plágio? Se sim, isso parece validar o absurdo de não haver escultura, uma vez que ela de facto não existe, só existe o vazio. E se assim for, pode plagiar-se o vazio? Mas, mais importante, isto tudo parece nonsense?
Nonsense é acharmos que o conceito de arte é estanque – ainda que possa haver aqui algum consenso, pontual, sobre o quão caricato é ir para casa de mãos a abanar e uma escultura “na cabeça” pela módica quantia de 15 mil dólares. Nonsense é continuarmos a abordar a arte como um conjunto de peças que se expõem em galerias – a céu aberto ou não – quando o final do século XX e agora o XXI têm vindo a garantir que esse tipo de categorização é profundamente redutor: “A realidade é que me parece menos interessante falar do mundo da arte em si e mais interessante falar de como o mundo criativo tem vindo, hoje em dia, a aglomerar uma variedade de práticas de proveniência disciplinar que vão além do óbvio. Muitos dos mais jovens, se quisermos ir por aí, não vêm de uma formação artística formal e acho que esta é uma linguagem que considero, particularmente dentro do mundo das artes, devia ser apreendida um pouco mais. Acho que dentro do mundo das artes há determinados paradigmas que continuam a ser perpetuados, como a ideia de que a superestrutura global da arte vive do seu próprio sentido de autodefinição, ou autograndeza, o que já não é o caso no que diz respeito [ao ato de criação] no mundo criativo. E parece-me que é algo que as gerações mais jovens não desejam”, encerra Beatrice. Talvez muitos dos exemplos que se listam como absurdos se prendam com a sua simplicidade – como o caso de Banksy, o de Aconcci, ou o de Rauschenberg. Se Garau aqui se insere, não temos a certeza. Mas temos a certeza que quanto mais espaço houver para a liberdade criativa (ao invés de um vazio), mais surpreendidos podemos ficar. Mesmo que isso pareça, imagine-se, um absurdo.