Quo Vadis, Humor?
A pandemia veio infetar quem tem humor. Por Nuno Miguel Dias.
Faz-me espécie (peço desde já desculpa pela expressão alentejana que não faz sentido para muitos, mas a genética fala mais alto e, de qualquer maneira, “faz-me confusão” também não é a mais assertiva) que o período de duração da minha vida até agora tenha chegado para ver o Humor passar de absolutamente libertário para um marasmo de paninhos quentes para não ofender os mais suscetíveis. Que são, curiosamente, pessoas sem humor nenhum. É triste? Não. É só sintomático.
Em 2018, Nuno Markl, Francisco Martiniano Palma e Frederico Pombares levaram aos palcos do Porto e de Lisboa um espetáculo intitulado Lusitânia Comedy Club – O Porquê das Coisas, que parodiava vários episódios da História de Portugal. Numa linha muito Monty Python (que é, aliás, ainda hoje, o fino regato de inspiração de que bebem tantos comediantes do mundo inteiro), havia um Adamastor que era, afinal, o atualíssimo Monstro da Burocracia, no papel de um funcionário da Alfândega que obrigava Vasco da Gama ao preenchimento de inúmeros impressos para poder transitar pelo Cabo das Tormentas, um Napoleão irado porque os portugueses gozavam com a sua estatura e um Marquês do Pombal que era ventríloquo com a mania que tinha piada. Mas havia também, e sobretudo, a peleja entre a Old Spice e a Ach Brito, duas das mais emblemáticas águas de colónia portuguesas. No tempo da… Guerra Colonial.
Foi um forrobodó de gente ofendida porque este assunto era demasiado sério para este tipo de brincadeiras. Eu sei. O meu pai esteve lá. O que vale é que a “polémica” (entre aspas porque um não-assunto não pode ser polémica) não saiu das fronteiras das redes sociais. O que já é muito, tendo em conta que as redes sociais são, cada vez mais, o terreno fértil de toda e qualquer polémica, porque é precisamente, para tanta gente, o único mundo que conhecem.
Ou que querem conhecer. O que torna a coisa um pouco pior. Não há como contornar aquilo que é uma evidência: o humor é o espelho do progressismo. Ou do seu contrário, quando é conservador e levado a cabo por gente que se amedronta com convenções sociais. Que foge dos assuntos sensíveis como o diabo da cruz. O humor é o barómetro do estado de espírito de uma sociedade. Aquilo que aborda está dentro de fronteiras que são muito mais que territoriais. Ultrapassá-las só está ao alcance dos mais libertários. Sim, o humor é a própria liberdade. E o que se segue não é tanto uma história abreviada do mesmo, mas o seu enquadramento em determinadas épocas, para que se perceba o quão necessário é salvá-lo enquanto estamos a tempo. Até porque “ânimo” é um dos seus sinónimos. Não sei se perceberam.
Quando eu era pequenino, irritava-me profundamente que a minha avó se risse das piadas do Camilo. “Como é que é possível?”, pensava eu, incapaz de esboçar o mais pálido sorriso com aquele “tá-se, tá-se, tááááásssseee” que era a punchline de todos os sketches em todos os episódios, ou seja, a mesma piada todas as semanas. Era a herança da Revista à Portuguesa. Um género muito nosso. Uma espécie de Broadway dos Pequenitos. Mas que inegavelmente cumpriu, durante muitos anos, o seu objetivo. “Mangar” do Estado Novo sem que os censores, na sua esmagadora maioria tacanhíssimos conterrâneos do mais profundo Portugal, onde ter mais do que a primeira classe era quase ser-se engenheiro. Dominavam o português escrito, mas faltava-lhes aquela bagagem cultural que permite identificar a ironia e o sarcasmo quando estão tão patentes como um albatroz em alto-mar, mau agoiro para uns, sinal de proximidade de terra para outros. O “estilo” durou, porém, muito mais do que devia. Ou seja, quando Portugal já devia ser um país progressista, europeísta, com rubro sangue de ensejos mil a correr-lhe nas veias, ainda se “alimentava a cultura dos portugueses” com os Malucos do Riso (1995) e as suas frases feitas “Ó Costa, a Vida Costa” e “Isto é que vai aqui uma Açorda”, com Os Batanetes (2004) e a sua enciclopédia de anedotas secas que deixámos de ouvir aos seis anos e ainda com o programa de entretenimento Maré Alta (2004), com o seu confrangedor sketch do “Pi pi pi pi parou, PAROU” quando as moças passavam no detetor de metais, o que as obrigava a despirem-se até ficarem de lingerie, ponto alto de cada episódio e do serão de tanta gente. A malandrice e a piadola brejeira prosseguem intocadas em Portugal, herança dos negros tempos em que qualquer manifestação da sexualidade era reprimida (sim, mesmo a hétero). Fugir aos “brandos costumes” foi em tempos uma vitória. E assim seguimos, ainda hoje, alegres e contentes, com personalidades como Fernando Rocha, herdeiro de Canty - O Cantinflas Português, cuja obra se tornou omissa
(estava em todas as estações de serviço de estradas nacionais), com o desaparecimento das cassetes. Da rádio evaporaram-se também, em 1997, os Parodiantes de Lisboa, que emitiam desde 1947, vindos na sua maioria do semanário humorístico A Bomba, que acabara de encerrar portas. Aqui nem malandrice havia. Era uma vasta planície desertificada onde o ideário português se arrastava como as tumble weeds que vemos rolar nos westerns em personagens como Jack Taxas e o seu cavalo Cara Linda, as Manas Catatua, o Compadre Alentejano (a sério?), o Menino Arnestinho e a dupla Patilhas e Ventoinha. Eram tempos negros, de um preconceito nada velado, ora com os Alentejanos, personagens principais de quase todas as anedotas em jantares de família, ora com o Samora Machel, que estereotipava aquilo que a metrópole tinha como a “estupidez” da população negra das colónias, vulgos “nativos.” Bonito, hein?
Um dia, calhou-me entrevistar a quadrupla Gato Fedorento, quando estes transitaram da SIC para a RTP. Mesmo sabendo que haviam sido eles os autores de tantos textos que foram parar a sketches de
O Maior Humorista Português, arrisquei perguntar: “Como se sentem ao ter destronado Herman José?” para ver quatro mãos (uma de cada um deles) ao alto: “Assunto tabu! Não se toca no rei. Herman é Herman e só estamos onde estamos graças a ele.” Queriam eles dizer com isto que, tal como eu, faziam parte de uma geração que, coincidindo a sua adolescência com os anos 80, estava inebriada de uma liberdade que lhe foi oferecida de mão beijada e da qual desejava usufruir ao máximo. Não queríamos mais ver a nossa avó a esboçar sorrisos quando Badaró e o seu Chinezinho Limpopó diziam “Eu expilico e você só compilica.” Queríamos um homem que aflorava o nonsense inglês em O Tal Canal (1983), que em Hermanias (1984) comentava a atualidade política nacional com Doutor Pinóquio: “Os jovens não conseguem encontrar emprego? Eles podem ser filhos da mãe, por exemplo, que já é um emprego”, e que rasgava todas as convenções em Humor de Perdição (1987), razão pela qual foi suspenso pelo Conselho de Administração da RTP (supostamente, a ala mais conservadora achou a Entrevista Histórica à Rainha Santa
Isabel um “atentado aos valores históricos”). Mais tarde vimo-lo construir um património humorístico português com Casino Royal,
de onde nos ficaram para sempre expressões como “Re ne vá pliú” ou “mais um cafezinho cooooom leite, mas com mais açúcar, que este, a bem d’zêre, estava insosso.” Começava a tradição de nos dar a conhecer aqueles que passaram a ser verdadeiras instituições. Que o digam Rita Blanco (Ivete Carina), José Pedro Gomes (Cachucho) e até Nuno Melo (Alverca), que até aí era conhecido apenas e malfadadamente pelo seu papel de Caniço na novela Chuva na Areia, no final da qual aperece castrado no areal da Tróia. Mais tarde, em
Herman SIC (2000), foi a vez de Maria Rueff e Nuno Lopes ganharem, para sempre, o coração dos portugueses. Até Eduardo Madeira viu a sua carreira ter início quando enviou, à laia de curriculum vitae,o texto de Monólogos Secretos, de um suposto Baptista Bastos (“Onde é que estavas no 25 de Abril?”) para as Produções Fictícias. Herman deixou-nos um património inesgotável. Dos Caixões Vilaças (“que são rijos cumó caraças”) aos Direitos de Antena, como o de M.A.R.S.A.P.O. (Movimento Associativo Renovador dos Sofredores Anónimos de Pornolalia), passando pelo “Eu é mais bolos” de José Severino (que era para ter sido Perfeito Calhau, radiotelegrafista, mas houve erro na produção), o “Eu é que sou o Presidente da Junta”, de Lauro Dérmio que não conseguiu conter o riso em “Não pirilimpaparás a mulher do próximo, do not pirimpampalhate the alheie woman”, ou o Diácono Remédios, não esquecendo Carlos Carrapiço, poeta autor da incontornável obra O Ovário: “Bate leve, levemente como quem chama por mim. Será chuva? Será gente? Gente não é certamente e a chuva não bate assim. Fui ver. Era um ovário”, proferido por Rosa Lobato de Faria. Afinal, quem tinha batido era o primo do autor, Otávio. Um infeliz erro na tipografia.
Teremos sempre A Conversa da Treta (2006). Ou o génio de Bruno Aleixo sem o qual nunca teríamos tido acesso ao Homem do Bussaco. Mas, entretanto, veio o advento do stand up. Suportámos coisas sofríveis. Algumas confrangedoras, até. Mas chegámos a 2021 com os olhos postos numa nova geração que saiu daí. Bruno Nogueira (que também fez a sua primeira aparição pública digna de nota no programa Herman SIC) amenizou-nos o confinamento com noites onde a improvisação era o mote. Fê-lo por puro ímpeto criativo. Uma veia bem dilatada que já havia demonstrado com O Último a Sair (2011), a genial série Odisseia (2013), o surpreendente Fugiram de Casa de Seus Pais (2017) e da excelsa minissérie Sara (2018). O seu companheiro de tantas andanças, João Quadros, é o enfant terrible que ninguém ousa “picar” no Twitter. À exceção de Nuno Melo, eurodeputado do CDS-PP, que lhe interpôs um processo por “difamação.” João Quadros pintou sobre o documento recebido por via postal um pirete com a legenda “vai mamar” e o processo foi arquivado (pelo que está provado que resulta, fica a dica). Coisas como “Odeio morar no rés do chão, que saudade de mijar da varanda” ou, em relação ao “choque” de tanta gente com as publicações dos humoristas nas redes sociais: “De repente descobriram que o problema deste país são os gajos que fazem piadas. Cambada de rissóis de cona”, são verdadeiros passeios no parque. Enquanto este texto está a ser escrito, respondeu ao tweet de André Ventura que criticava o facto de a Seleção Nacional se ter ajoelhado contra o racismo: “Só ajoelho perante Deus”, com uma foto do seu apêndice penial… com um lacinho (true story). João Quadros não faz piadas. Faz roasts a cada hora. O que nos leva ao Mafarrico em pessoa. O Demónio reencarnado. Em Rui Sinel de Cordes. Que cerca de três meses depois da morte do pianista Bernardo Sassetti levou a cabo uma digressão intitulada Isto Era
Para Ser Com O Sasseti. Num espetáculo intitulado Memento Mori, mostra o gato que “salvou” (por €300, numa loja de animais) e exclama: “Gatos é como as crianças, mais vale pagar e ter uma com olhos bonitos do que agarrar num qualquer que esteja abandonado.” Ou relata que quando foi a tribunal responder por uma queixa de violência contra mulheres, a juíza lhe disse: “Há mulheres que acham que tem olhos de violador”, confessando ter pensado “As coisas que as mulheres reparam quando estão a ser violadas.” Ou define como momento alto da sua vida aquela noite em que fez amor com duas mulheres: “Quer dizer, eu acho que eram duas mulheres, porque ela era uma daquelas grávidas que não queria saber o sexo do bebé.” Ou assume que deixou de se dar com o avô porque ultimamente ele começou a dar-se com pessoas nojentas: “Mas enfim, vocês sabem como são os lares de idosos.” Em suma, Sinel de Cordes não impõe limites ao seu humor. Faz piadas com tetraplégicos. Com Síndrome de Down. Com crianças doentes oncológicas. Foi alvo de muitos processos. Até que pagou um preço. Porque ainda há muita gente que impõe limites ao humor que, pelos vistos, os incomoda. E quando nos incomodamos tanto com algo que os outros fazem com a consciência limpa é o puritanismo mais bacoco que vence. Perde a liberdade.
Herman José nem sempre foi consensual. O que era muitíssimo bom sinal. Eu amava-o de morte. Mas era indiferente ao meu pai. Já a minha avó, naturalmente, odiava-o. Isto prova que o homem equiparou o ânimo e disposição de Portugal ao que vinha da Grande Pátria do Humor, a Grã-Bretanha. Rapidamente deixou o cansado Teatro de Revista com o Sr. Feliz e o Sr. Contente, contracenado com Nicolau Breyner, para passar fugazmente pelo estilo de Benny Hill. Foi impermeável às modinhas humorísticas suas contemporâneas, que iam dos horríveis filmes da Academia de Polícia (1984) ao apartheid sul-africano patente em Os Deuses Devem Estar Loucos
(1980). Não foi indiferente ao denominado “humor judeu” que nasce com Jerry Lewis e prossegue com Andy Kaufman, Woody Allen e Mel Brooks (e que chegaria aos nossos dias com o inqualificável Sacha Baron Cohen, também ele desconhecedor – ou desafiador – dos limites do humor). Mas acabou tantas e tantas vezes nos incontornáveis Monty Python, os grandes libertários. Os deuses. The Pythons, para os amigos. Eric Idle, Graham Chapman, John Cleese, Michael Palin e Terry Jones eram quatro rapazes quando estrearam, na BBC, a série Monty Python’s Flying Circus, que esteve cinco anos no ar (de 1969 a 1974) e eternizaram sketches como Dead
Parrot, How Not To Be Seen, Dirty Hungarian Phrase Book, a partida de futebol entre filósofos e a Lumberjack Song. Da TV passaram para as telas de cinema com Em Busca do Cálice Sagrado (1975) A Vida de
Brian (1979) e O Sentido da Vida (1983). John Cleese faria furor, a solo, com a série Faulty Towers (1975) e havia de reencontrar Michael Palin em Um Peixe Chamado Wanda (1988). Terry Gilliam viria a realizar filmes como O Rei Pescador (1991) ou 12 Macacos (1995). Mas eram os The Pythons que se tornariam imortais com um surrealismo que, até ali, era inadmissível no género. Nascia assim a Britcom, adaptada do termo sitcom (comédia de situação), em voga desde os anos 50 nos EUA. Black Adder (1983), com Rowan Atkinson (o Mr. Bean) e a primeira aparição televisiva de Hugh Laurie (Doctor House), Allo Allo! (1982), The Day Today (1994), The
League Of Gentlemen (1999) e Little Britain (2003) são apenas alguns exemplos de um género tão profícuo que fez nascer, com The Office
(2005) o grande, o inigualável, o genial Ricky Gervais. Felizes de nós que somos seus contemporâneos. E pudemos ver, no seu devido tempo, séries como Life’s Too Short (2011), a deliciosa Derek (2013) e a grandiosa After Life (2019). Como apresentador dos Globos de Ouro, testou os limites da elite dos atores norte-americanos assumindo-se como o incómodo inglês que tornaria aquelas cinco edições especialmente castigadoras para eles enquanto bebericava a sua cerveja: “Chamo ao palco o pai de Ashton Kutcher, Bruce Willis” ou “Há bons filmes que não foram nomeados, como I Love You Phillip Morris, com Ewan McGregor e Jim Carrey, dois atores heterossexuais fingindo que são gays, ou seja, o contrário de um famoso adepto da cientologia”, dirigindo-se, obviamente, a Tom Cruise. Porque para Gervais, que é afinal um sentimentalão capaz de arrancar de nós os sentimentos mais puerilmente bondosos, a linha que separa o humor do amor é tão ténue que os incapazes de um serão sempre impossibilitados do outro.
A saúde do nosso humor são os humores da nossa saúde. E os dias que correm estão cheios de gente de “maus fígados”, expressão popular que traduz tão bem este tempo em que instituições tão respeitadas como um tribunal nada são perante os julgamentos públicos levados a cabo na única forma de socialização que a esmagadora maioria conhece hoje: as redes sociais. Novos, entradotes e velhos, toda a gente embarca naquilo que, na Idade
Média, também movia multidões: os Autos de
Fé. Gente a arder na fogueira em plena Praça do Rossio perante espectadores sedentos de sangue que gritavam impropérios, corroborando as acusações dos condenados com um conhecimento dos factos muito menos denso que aquele cheiro a carne humana sobre brasas que a nortada levava para Sul. Não, não há diferença nenhuma. Se é o desaparecimento de uma criança num meio rural, longe da realidade urbana que são os parques infantis com mais pais vigilantes que crianças alegres, a culpa é da negligência paterna. Se um humorista exerce a sua função, que é brincar com algo que, é mais que certo, incomodará sempre alguém, está em causa o seu direito à liberdade de expressão.
Agora tirem-lhe o vocábulo “expressão.” É isso.
Liberdade. Custou a ganhar. E não há, no mundo, nenhuma liberdade que fira alguém. A não ser quem esteja morto há muito. Mas não nos arrastem a todos para esse poço onde a perversidade, a malevolência e a mais pura selvajaria são o mote dos dias. Porque ainda há quem seja capaz de um sorriso. Daqueles que vão até aos olhos. E esses, não há máscara que os tape.l
A SAÚDE DO NOSSO HUMOR SÃO OS HUMORES DA NOSSA SAÚDE. E OS DIAS QUE CORREM ESTÃO CHEIOS DE GENTE DE “MAUS FÍGADOS”, EXPRESSÃO POPULAR QUE TRADUZ TÃO BEM ESTE TEMPO EM QUE INSTITUIÇÕES TÃO RESPEITADAS COMO UM TRIBUNAL NADA SÃO PERANTE OS JULGAMENTOS PÚBLICOS.