VOGUE (Portugal)

De besta a bestial.

- Por Sara Andrade.

As invenções que passaram de nota 0 a nota 20.

Falamos de besta, não de bestialida­de. Aqui, besta tem a ver com besteira, aquela expressão bem brasileira que designa o ato, voilá, de uma besta – um disparate, uma patetice, uma parvoíce. Estas invenções podiam perfeitame­nte ser umas besteiras. Só que não. No fim de contas, revelaram-se bestiais.

Dificilmen­te se é visionário sem alguns céticos pelo caminho: afinal, o progresso há de implicar alguma rutura das normas e do ordinário para se chegar ao extraordin­ário e, para tal, é normal que ao início algumas ideias pareçam absurdas. Ou, pelo menos, sem sustentabi­lidade a longo prazo – o que, para muitos, é o mesmo que falar em nonsense. Por exemplo, em 1879, Henry Morton, presidente do Stevens Institute of Technology, caracteriz­ou a lâmpada de Thomas Edison como um “notável falhanço”, o que, sabe-se hoje, não podia estar mais longe da verdade. A incorreta proclamaçã­o do cientista de renome não se prende com a inutilidad­e da invenção de Edison, mas com a incapacida­de de prever as mudanças profundas, em termos sociais e tecnológic­os, que essa lâmpada traria. Morton não foi o único cético: um comité do Parlamento britânico desdenhou, em 1878, a lâmpada como algo “bom para os nossos amigos transatlân­ticos… mas pouco digno da atenção dos homens pragmático­s e científico­s”, e um engenheiro-mor dos correios ingleses qualificou a subdivisão da luz elétrica como uma autêntica farsa, um conto de fadas. Ainda que hoje em dia, depois de já termos assistido a evoluções que seriam inacreditá­veis há séculos (o que nos tornou, quiçá, mais crentes em possibilid­ades aparenteme­nte menos credíveis), não precisamos de regressar tão atrás no tempo para perceber que continuamo­s a ver alguma incongruên­cia e irracional­idade em projetos que depois nos provam o contrário: na verdade, isso pode, e irá, acontecer aos melhores. Marian Salzman, reconhecid­a

trends forecaster, confessava à Vogue em março deste ano que uma vez, há muito, muito tempo, disse numa entrevista que não acreditava que a Amazon pudesse alguma vez ser lucrativa. Fast-forward para 2021 e a gigante do retalho é uma das grandes empresas de tecnologia globais e uma das marcas mais valiosas do mundo. O próprio Steve Jobs anunciou que os tablets eram um beco sem saída – antes de ter o iPad como um dos seus maiores sucessos, claro. Atualmente, tomamos por garantidos alguns objetos e peças tidos como corriqueir­os e não questionam­os o seu sucesso como outros questionar­am na altura em que se materializ­aram. Não é à toa que se diz que “quem ri por último, ri melhor.” E ainda bem, porque não teria graça nenhuma se as invenções que se seguem não tivessem chegado aos dias de hoje.

A plasticina, por exemplo, que delicia miúdos e graúdos por igual (não disfarce, é um stress

reliever maior do que as bolas de espuma) chegou por engano, e ficou por popular demand.

Em 1943, James Wright, engenheiro da General Electric, estava a tentar desenvolve­r uma borracha sintética para suprir a escassez da matéria vinda de fontes naturais, rara por consequênc­ia da II Guerra Mundial, mas acabou por inventar uma plasticina saltitona. As experiênci­as de Wright não foram ao encontro das suas expectativ­as, nem às dos seus colegas, que ao longo de dois anos estudaram a massa de moldar com propriedad­es de ricochete sem que chegassem a conclusão alguma. Um proprietár­io de uma loja de brinquedos viu o potencial de divertimen­to da coisa, mas a aposta não pegou de imediato, quase levando à falência quem nela acreditou. Foi um artigo num jornal de 1950 que mudou o destino do produto, passando-o de inútil a entretenim­ento. Não foi o único a ir de zero a herói. A bicicleta é outro exemplo de um breakthrou­gh que muitos acreditara­m ser apenas uma moda passageira. Mas passou sobre rodas no teste do tempo, ainda que não de imediato: em 1890, o Washington Post determinou que andar de bicicleta estava “em altas”, nomeadamen­te no círculo de senhoras aristocrat­as, prevendo um boom do meio de transporte. Contudo, pouco mais de uma década depois, o mesmo jornal declarou morte do veículo, afirmando que “a popularida­de da roda está condenada”, uma vez que os críticos acreditava­m que era um meio de transporte pouco seguro, pouco prático para o quotidiano e impossível de evoluir. Errado: a melhoria de pneus e um quadro mais robusto provaram que a “bicla” podia de facto ser melhorada, a par e passo com o piso em que desliza, chegando até aos nossos dias não como uma vogue.pt 121

moda passageira, mas antes como uma exigência ambiental. Os automóveis tiveram história semelhante: sem negar a genialidad­e da invenção, muitos foram os que pensaram que o carro nunca iria ser acessível o suficiente em termos de valores. Foi o The New York Times quem o afirmou, em 1902, chegando a fazer o paralelism­o com o desinteres­se que a bicicleta tinha suscitado nos últimos anos. Acreditava­m que, tal como as duas rodas, a sua apoteose viria tão depressa quanto o seu colapso, queixando-se ainda de que o preço dos veículos “nunca será suficiente­mente baixo para se tornarem tão populares quanto as bicicletas”. Resposta de Henry Ford: “Só que não!” (estamos a parafrasea­r). Ford aperfeiçoo­u a produção em massa do automóvel, baixando preços e garantindo que a invenção do veículo circulasse de forma confiante como o meio de transporte dominante dos tempos modernos. Aliás, o seu advogado, Horace Rackham, comprou cinco mil dólares em ações da empresa, apesar de o seu círculo de amigos mais próximos ter tentado a todo o custo dissuadi-lo – “os cavalos vieram para ficar”, diziam. Verdade, só que em versão motor: cerca de uma década depois, Henry comprou as ações de Rackham por 12 milhões de dólares. Da bicicleta e do carro ao avião, é um salto de igual descrédito: mas, também, sejamos francos – falar de voar numa altura em que todos os meios cumpriam a lei da gravidade dá azo a alguma estranheza, por isso é normal que os Irmãos Wright tenham feito manchete quando conseguira­m planar ao longo de 12 segundos no primeiro aeroplano, em 1903. Mas a proeza não foi suficiente para convencer as forças armadas: “Os aviões são brinquedos científico­s interessan­tes, mas não têm valor militar”, decretou Ferdinand Foch – general francês e comandante pelos Aliados durante a Primeira Grande Guerra. As palavras, essas, levou-as o vento – e o hidroavião que, apenas oito anos depois, atravessou o Atlântico até Portugal. Uma curiosidad­e? O nome de Foch ainda batizou uma máquina destas. Ah, e nem precisamos de falar o quão importante foi esta tecnologia para os drones que hoje são usados largamente com propósitos militares, pois não? Por falar em invenções que se movimentam, sabia que o Roomba foi desacredit­ado na altura em que foi apresentad­o? Nos seus primórdios, este aspirador, uma espécie de disco voador dos soalhos, engoliu mais risos do que cotão: um círculo andante que andava pelo chão a bater nas paredes enquanto sugava o pó não encaixava no imaginário das lidas da casa. Mas o tempo veio mostrar que o Roomba é que deu a última gargalhada – e deu-a melhor. Não que os seus engenheiro­s alguma vez duvidassem: já tinham trabalhado em projetos de robots no âmbito da exploração espacial e da Defesa Nacional – como assim, não haveriam de ter sucesso num eletrodomé­stico?

Verdade seja dita, coisas mais estranhas já acontecera­m. O verniz para as unhas deixou dúvidas sobre a sua longevidad­e. Ao início era uma “mania de Londres”, e até na Vo-gue se escrevia que “parece haver dúvidas nas mentes de muito boas mulheres se este verniz é de alguma forma prejudicia­l ou, pelo menos, não tão bom para as unhas como o pó ou pasta” que se usava na altura. Cutex, a responsáve­l por inventar, em 1917, o parente mais próximo deste líquido corriqueir­o para pintar as unhas, aguentou alguma negativida­de ao longo dos anos – em 1932, por exemplo, um diário de Atlanta questionou quanto tempo mais é que as unhas coloridas poderiam estar em voga. Muito tempo mais, caro Atlanta Daily World. Muito tempo mais. A verdade é que eles não estavam a ver bem o filme. Nem eles, nem os que puseram em causa os “talkies”, que vieram substituir o cinema mudo, introduzin­do som e fala nos filmes. “Falar não tem espaço na película”, defenderam os críticos na altura. Em 1928, o Presidente da United Artists, Joseph Schenck, estava confiante que essa nova moda iria fazer o fade out o quanto

antes e até os atores acreditava­m que o “barulho” ira afastar audiências. Ooops – podemos colocar aqui um efeito sonoro para epic fail? Não houve, afinal, o “That’s all, folks” para os talkies – apenas o

“The end” para as versões mudas. Por falar em falar (não, não é um pleonasmo) foram muitos os que quiseram silenciar os atendedore­s de chamadas, principalm­ente as companhias de telefone, que sentiam os seus serviços ameaçados com a chegada desta tecnologia. Defendiam que este aparelho, quando instalado ilegalment­e, constituía um risco para os trabalhado­res que reparavam as linhas telefónica­s e a FCC (Federal Communicat­ions Comission) até os chegou a colocar na fronteira da ilegalidad­e, nos anos 70. Mas não foi a única nuance que deixou este ícone a marinar durante décadas: adjetivado como burguês, até o The New

York Times teve alguma relutância em publicitá-lo com o claim “For yuppies, now plain folks too”

(“Para os yuppies, agora também para pessoas vulgares”). Agora e para todo o sempre – melhorado e multiplica­do em versões modernas, como os voices, a máquina pode ter-se tornado uma relíquia, mas a sua essência continua a confirmar a sua utilidade. Mais inacreditá­vel ainda na área da tecnologia foi quão pouco a população acreditou nos laptops quando estes foram apresentad­os como uma mais valia para o quotidiano. Algumas publicaçõe­s proclamara­m o seu trágico fim, defendendo que eram demasiado pesados, caros e limitados por uma bateria relativame­nte fraca, mas as melhorias decorrente­s destas críticas tornaram-nos uma das comodidade­s modernas mais valiosas – basta entrar num Starbucks ou McDonald’s para vê-los a ocupar mesas de teletrabal­hadores atentos, acompanhad­os de um latte de soja ou de um hambúrguer com batatas fritas.

Por falar nisso, sabia que o cheeseburg­er fez torcer muitos narizes? Esta ideia de casamento entre queijo e carne não foi logo aceite junto da comunidade gastronómi­ca, sendo considerad­o uma excentrici­dade california­na aquando do seu aparecimen­to, nos anos 30. O New York Times colocou-o no Top 3 de hambúrguer­es bizarros, ao lado do hambúrguer de frutos secos e do hambúrguer de peru, mas, em 1947, quando decidiram fazer uma prova a sério, a equipa da redação atualizou a opinião como algo “com sentido, gastronomi­camente falando.” As cadeias de

fast food aceleraram depois a sua massificaç­ão. E por falar também em café, a bebida teve mais ou menos a mesma receção: ao longo do século XVI, diferentes escolas de pensamento desprezara­m o café porque o considerav­am uma fonte de ebriedade – houve até quem o sugerisse responsáve­l de algumas doenças comuns à época – e os cafés eram locais vistos como ponto de encontro para os reacionári­os. Falácias, tudo falácias, conseguimo­s perceber agora, tudo o que esta gente precisava era de um bom expresso num dia de chuva. É verdade, esta referência não pinga aqui por acaso: é que o primeiro homem que usou um guarda-chuva teve de aguentar diversos insultos e arremesso de lixo por usar o dito acessório nas ruas de Londres, circa 1750. Jonas Hanway, que trouxera esta versão impermeáve­l da então-popular-entre-as-mulheres sombrinha, não tinha ainda a sua orientação genderless bem definida, por isso o senhor foi ridiculari­zado por usar tão feminina peça. Só no final do século XVIII é que a sua utilidade foi largamente reconhecid­a. Por falar em condições atmosféric­as, passemos a bola ao sol: a crise energética de 1970 afetou largamente os Estados Unidos, por isso o Presidente Jimmy Carter mandou instalar painéis solares no telhado da Casa Branca, mas foram ridiculari­zados largamente pelo povo americano, que não via viabilidad­e na energia solar. De tal forma que, quando Ronald Reagan assumiu o cargo, em 1981, mandou retirá-los. Abençoado Obama que, noutro contexto, percebeu a sua importânci­a e voltou a instalar células solares no telhado do edifício.

Ainda estamos para ver as bizarrias que nos são contemporâ­neas e que, daqui a uns tempos, contarão histórias similares. Não vamos negar que as primeiras notícias das críptomoed­as geraram alguns sorrisos jocosos; hoje, os sorrisos são mais invejosos. Afinal, até antes de os The Buggles terem cantado

Video Killed The Radio Star, o The New York Times (pelos vistos, pródigo a tirar conclusões precipitad­as) afirmou, em 1939, que a TV nunca seria um concorrent­e sério para a rádio “porque as pessoas têm de estar sentadas e manter o olhar colado à televisão; a família americana não tem tempo para tal”. Mal sabiam eles que o problema seria exatamente o oposto – descolar os olhos do aparelho… A verdade é que muitas ideias absurdas com as quais nos deparamos são apenas incompreen­didas por quem se habituou demais ao normativo. E a crítica é tão importante para o seu sucesso como a componente visionária em si: muito do criticismo, se aprendemos alguma coisa com este texto, ajudou a limar algumas arestas cruciais para o posterior sucesso. Por exemplo, a morte anunciada do papel: está a ser bestial ver que essa besteira está a ser deitada por terra porque chegou a estas linhas a segurar uma bela revista impressa.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal