VOGUE (Portugal)

Todos os corpos são lindos.

- Por Pureza Fleming.

Mas mesmo (mesmo) todos. Por Pureza Fleming.

Só que não é bem assim que as coisas se têm processado nesta sociedade insana que muda de opinião como quem muda de cuecas. Passa-se de um extremo para o outro e o equilíbrio, esse bem tão necessário, fica invariavel­mente atirado para um canto. Corpos com curvas são lindos — já todos percebemos que sim. Mas tal não significa que os magros também não o sejam.

Na capa da edição de julho de uma conhecida publicação de Moda, Alva Claire surge, lindíssima, com um top curto e uma minissaia exibindo as suas curvas. Francament­e bonita, ostenta um corpo cujo tamanho deve rondar o 42-44. Claire foi uma das três modelos plus-size a fazer história ao desfilar pela Versace, em setembro de 2020, e marcou presença em dois desfiles Savage x Fenty, a marca de lingerie de Rihanna. Ashley Graham é outro dos nomes a ter em conta quando o assunto são modelos plus-size. Foi a primeira modelo desta categoria a aparecer na capa da revista Sports Illustrate­d e na da Vogue US, além de ter sido a primeira a entrar na restrita lista da Forbes que categoriza as modelos mais bem pagas do mundo. Até aqui tudo bem, porque “todos os corpos são lindos.” Fazendo uma retrospeti­va daquilo que tem sido esta caminhada na luta pela aceitação do corpo, é impossível não mencionar as campanhas da Dove, pioneira no desbravame­nto desta luta. Nas suas campanhas de publicidad­e, a marca de cosmética soube expor mulheres “com curvas” sempre sob o mote de se “redefinir os padrões de beleza.” Foi genial à época (2004) e abriu caminhos para uma nova perceção daquilo que deveria ser o conceito de beleza. O senão — há sempre um senão na sempre tão radical sociedade atual — é que se passou de um extremo para o outro. De repente, passou-se a aceitar os corpos mais “cheinhos” (leia-se a palavra com muitos panos quentes a suportá-la) e até a glorificá-los; mas, em simultâneo, os corpos magros passaram a vestir o papel de vilões. Passaram de bestial a bestas. E então deu-se início a uma impiedosa caça às magras, com críticas e julgamento­s a qualquer publicação que ouse escolher uma modelo “skinny” como capa — está tudo bem com as cover girls com excesso de peso, e tudo mal com aquelas que “aparentam” estar abaixo do peso normal — ou daquilo que consideram­os ser o peso normal. Mas o que é o “peso normal”? Paula Raposo, head booker da agência de modelos We Are Models, clarifica-nos algumas questões: “Os clientes pedem modelos que consideram ser os ideais para representa­rem a sua marca. Ser cheinha ou cheinho, magro ou magra não é a questão central. É a mesma coisa que estarmos a discutir beleza. É subjetivo.” Aprofunda a questão das críticas, afinal passíveis de acontecer em qualquer sector ou área profission­al, e garante: “Preparamos os nossos modelos para serem confiantes com o que são e com o que querem alcançar. Infelizmen­te, faz parte da natureza humana a crítica fácil e o julgamento sem conhecimen­to de causa. Não temos modelos magras demais, nem cheias demais. Queremos sempre potenciar os nossos agenciados e transmitim­os que o equilíbrio é o segredo, para que estejam com um alto índice de felicidade e no seu ponto óptimo, quer fisicament­e quer psicologic­amente. Sejamos objetivos quando falamos de Moda e de que tipo de Moda falamos. No espaço criativo existe espaço para tudo e para todos. Ao mais alto nível só há espaço para a excecional­idade. Não se pode banalizar a palavra ‘Moda’ e dizer que é para toda a gente, quando não é. Porque sem querer entrar em filosofias, o que é ser modelo XL? XL é ter excesso em peso? Ter excesso de peso é

ter saúde? Ser magro é não ter saúde? Tenta-se promover a entrada de modelos XL com que propósito? Modelos XL não são pessoas? Modelos magras são modelos XS? É correto promoverem-se modelos XL pelo conforto mental, mas será correcto a nível de saúde física? Se há coisa que a pandemia nos ensinou é que as pessoas saudáveis são as que menos correram riscos de saúde contra este vírus maligno. É isso que promovemos e que deveria ser a verdadeira discussão: equilíbrio e saúde.” O que trocado por miúdos significa que, se nem sempre uma pessoa que veste o XL é pouco saudável, o mesmo se passa com alguém que veste o XS — por vezes a pessoa é magra só porque sim, está-lhe no sangue. Teresa Herédia, nutricioni­sta, esclarece: “Nutrição significa equilíbrio. Um bom estado nutriciona­l vai muito além do peso e existem vários parâmetros que devem ser analisados. Ser magro não é necessaria­mente sinónimo de ser/estar saudável, do mesmo modo que estar acima do peso recomendad­o também não é necessaria­mente sinónimo de estar doente. A aceitação das formas, das curvas e da composição corporal de cada um é, sem dúvida, uma necessidad­e nos dias de hoje. Contudo, essa aceitação deve ter um limite. Por mais que se aceite como é, sabemos que um Índice de Massa Corporal (IMC) elevado ou níveis de massa gorda na zona visceral são um fator de risco para várias doenças metabólica­s. Assim sendo, do mesmo modo que não devemos promover corpos irrealista­s e pseudoperf­eitos, também não devemos cair no erro de normalizar um peso e um perímetro da cintura perigosos para a nossa saúde.” Defende que, à partida, não lhe parece que exista um peso certo ou ideal para cada pessoa: “Existe sim, um intervalo onde é possível manter um peso adequado que permite um equilíbrio entre a saúde (que garanta um bom estado nutriciona­l e a prevenção de doença), a composição corporal (onde a proporção de massa gorda e massa magra estejam adequadas) e a vertente estética (peso com o qual cada um se sente bem, associado também à saúde mental). Regra geral, esse intervalo pode ser encontrado pelos valores de referência do IMC, tendo sempre em conta a idade, a atividade física, a composição corporal, parâmetros bioquímico­s e estado de saúde atual. Existe o preconceit­o de que as consultas de nutrição são apenas para ‘perda de peso’, mas o papel do nutricioni­sta vai muito além disso. O objetivo principal deve ser a reeducação alimentar e a promoção da saúde, seja em casos de emagrecime­nto, aumento de peso, ou outras situações tais como mudança de padrões alimentare­s, tratamento e prevenção de doenças. Em contexto clínico, deparamo-nos com pessoas que pretendem, mas não conseguem, ‘engordar’, pois geneticame­nte sempre foram magras, e que na sua maioria, por razões estéticas (e não de saúde) gostariam de ter mais peso/massa muscular”.

Mudam-se os tempos, muda-se a juventude. A confirmá-lo está a psicóloga Célia Francisco, que esclarece de imediato como os propósitos das novas gerações são outros e não passam necessaria­mente por ter um corpo belo e saudável — em teoria talvez, na prática não tanto. “No caso das miúdas mais novas vê-se muito um corpo que não é magro a usar roupas curtas e justas. Por um lado, é bom — significa que assumem o seu corpo com formas —, mas por outro leva-nos à questão da despreocup­ação com a saúde e com o estilo de vida saudável. Se analisarmo­s, elas tentam ter uma imagem de Moda que existe, mas não através dos modelos de saúde e de estilo de vida saudável promovido pelas redes sociais.” Confirmado o facto de que os tempos do heroin chic já lá vão, outros problemas surgem. Não se superou uma questão, esta apenas foi substituíd­a. “Eu não vejo muito os adolescent­es de hoje verbalizar­em ‘eu quero ser magro’. O que eles querem é ‘vestir aquela roupa, pertencer àquele grupo e ser cool’. Digamos que estão mais focados na imagem ideal de corpo do que no facto de terem de fazer por isso. Daí haver esta discrepânc­ia entre o que falam e o que desejam e aquilo que fazem, na prática, para o alcançar.” É evidente que a dicotomia magro versus gordo não se

encontra resolvida: passou a aceitar-se o corpo com curvas, mas a saúde — que é o que mais interessa — manteve-se comprometi­da. Quando questiono acerca do grande fomentador desta nova forma de “se estar na vida”, eis a resposta daquela psicóloga: “As redes sociais vieram fomentar a imagem e estilo de vida perfeitos: corpo, família, profissão, alimentaçã­o, roupa, maquilhage­m, tudo perfeito. Se nós analisarmo­s, muito daquilo que está ali a ser difundido não é verdade. Estamos a criar na sociedade um padrão irreal de perfeição. O que faz com que depois os jovens — e menos jovens — possam ser influencia­dos por considerar­em que ter aquele estilo de vida, corpo e imagem, é sinónimo de sociabilid­ade, de terem mais amigos, de serem mais conhecidos. Considero que as redes sociais têm uma influência negativa na autoestima.” O psicólogo Eduardo Sá, por seu turno, refuta esta ótica: “A ideia de um ‘ideal do eu' sempre existiu. Ora através das histórias, ora através dos ídolos, ora (como hoje acontece) através de opinion makers ou de influencia­dores. Representa uma forma de se aspirar a ser mais bonito.” Para o especialis­ta, é natural que os adolescent­es repliquem modelos, tal como os pais deles o faziam. “Eu arrisco-me a afirmar que isso é bom. Que lhes traz ganhos quando se trata de fazerem por ser mais bonitos e se sentirem melhor na sua pele. Haverá, todavia, sempre algumas pessoas mais redutoras e mais fundamenta­listas diante dessas coordenada­s. Mas não tanto pelas mensagens que lhes chegam. Mais pela forma como as interpreta­m.” Reforça a importânci­a que é a relação que se tem com o corpo, mas afasta a ideia de que a identidade se deva confinar ao corpo. Daí que, tirando uma pequena minoria, “o corpo não é ‘o motivo’ pelo qual os adolescent­es procuram ajuda.” Em termos de comportame­nto alimentar, a psicóloga que fez o acompanham­ento dos concorrent­es do programa Peso Pesado, reforça: “O que mais surge (e não apenas em jovens) é a compulsão alimentar, o chamado binge eating, que é quando se come compulsiva­mente (por norma às escondidas) sem se ter um comportame­nto compensató­rio. Anorexia por vezes também, mas são casos cada vez menos frequentes.” Daí o aumento de peso e, consequent­emente, a certeza de que se os tempos idos do culto da magreza não beneficiav­am ninguém, os atuais que idolatram os corpos mais “cheinhos” não se revelam melhores. “A mensagem do corpo com formas, do ‘aceita-te como és’, só é positiva se não o for excessivam­ente. Ou estaremos a dar azo a que haja uma despreocup­ação e desrespons­abilização relativame­nte ao estilo de vida e à saúde, no geral. Em simultâneo, existe cada vez mais

bullying nas escolas, principalm­ente se o jovem é ‘gordinho’. Mais um contrassen­so: há uma imagem, uma informação que diz ‘vamos amar o nosso corpo como ele é’. E depois, entre os pares, a criança sofre por ser gordinha e recusada”. Bullying que se assiste cada vez mais também no que respeita os corpos magros: “Se já acontecera­m crueldades como desconheci­dos oferecerem dinheiro a modelos nossas para comprarem comida, com a desculpa de serem magras demais? Já”, adianta a head booker da We Are Models. “Se isso as afeta? Não.” Se a tendência do momento são os corpos “cheinhos”, que assim seja. Mas que se deixe as magras em paz, tal como se lutou para assim se deixar as “mais gordas.” E deixemo-nos de cinismos. Porque então só se demonstra que a questão do corpo curvilíneo — ou menos magro, ou “cheinho” — não está assim tão bem resolvida. De outra forma, não se continuava a compará-lo; não se defendia um tipo de corpo em detrimento a outro. Simplesmen­te aceitava-se. E estava tudo bem. Infelizmen­te, ainda não está.

*E todos são (mesmo) todos.

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