Allegro Ma Non Troppo.
Não, os ignorantes não são mais felizes que os não ignorantes. Got it?
Que é como quem diz, alegre mas não muito. Do alto da nossa sobranceria intelectual, invejamos aquilo que “os outros”, os menos capazes, os ignorantes, aparentam ter: uma felicidade ilimitada. Porque não pensam tanto, porque não têm consciência do mundo e das coisas, porque o seu QI é reduzido. Mas quem é que disse que “os outros”, os menos capazes, os ignorantes, são mais felizes? E quem é que nos garante que nós, prepotentes observadores da natureza humana, não somos apenas idiotas por supor tal coisa?
O interessante, quando se escreve muito, e há muito tempo, é que há todo um universo de pérolas e tesourinhos deprimentes (principalmente tesourinhos deprimentes, mais ainda se formos insatisfeitos compulsivos) que espelha o que, a dada altura, fomos e/ou pensámos. Por volta de 2008, quando passar palavras para o papel era um ato contínuo, que fazia diariamente, como respirar, rabisquei o texto que se segue: “Eu queria ter umas calças de ganga daquelas que chegam quase ao pescoço, das que fazem um V entre as pernas de tão subidas, em tom azul-céu-depois-de-trovejar-com-umas-nuances. Eu queria ter uns ténis Reebok daqueles para fazer ginástica, como se usava nos anos 80, e que parecem uns botins brancos de borracha. Eu queria ter um frou frou para fazer um rabo de cavalo perfeito, ou para usar no pulso, como se fosse um presente caro. Eu queria ter uma sweatshirt cor-de-rosa com umas letras a dizer Ralph Lauren, mesmo que não fosse da Ralph Lauren. Eu queria ter umas meias com bonecos da Disney, compradas num hipermercado qualquer porque meias dessas vendem-se em todo o lado, ou daquelas cheias de risquinhas coloridas. Eu queria ter uma coleção de cuecas com flores e folhos, que a minha avó me teria oferecido no Natal passado, juntamente com os panos de cozinha que me costuma dar. Eu queria ter um fato de treino fluorescente e um marido com um fato de treino igual ao meu, para passearmos aos domingos à beira Tejo e comermos um gelado ao pé da Torre de Belém enquanto olhávamos as crianças a andar de triciclo e ficávamos duas horas sem abrir a boca. Eu queria ter uma mala encarnada de verniz, porque dá com tudo, inclusive quando o chefe nos leva para o almoço semestral. Eu queria ter madeixas louras, o cabelo escuro não se usa, e se as atrizes podem eu também posso, a diferença é que elas andam sempre carregadas de maquilhagem, senão eram iguaizinhas a mim. Eu queria ter unhas de gel gigantes, talvez com aqueles brilhozinhos que agora se usam muito, talvez com flores pequeninas, ainda não pensei muito nisso. Mas o que eu queria mesmo era ter tempo para ir comprar um bilhete para o concerto do Tony Carreira, não tarda fica esgotado e depois é a desgraça. É a desgraça.” Isto seria, segundo o que à época imaginava, a possível entrada do diário de uma mulher trintona, solteira, banal; de alguém que não queria nada da vida além das “coisas básicas” (é engraçado como partimos sempre do princípio que sabemos o que é que são as “coisas básicas” das outras pessoas), que não ligava mais do que o estritamente necessário aos inconvenientes do quotidiano e para quem, além do salário ao final do mês e da saúde em dia, “estava tudo bem.” Segundo o que a minha mente tacanha e mesquinha entendia, esta era uma mulher feliz porque não exigia muito do universo. Era uma ignorante.
Treze anos volvidos, plot twist: a ignorante, de certa forma, sou eu. Por vários motivos: a) por presumir que sabia o que quer que fosse sobre pessoas ignorantes — que as há, já lá iremos; b) por reduzir aquilo que um indivíduo (neste caso, um ignorante) é a um bando de clichés que deviam ter ficado nas páginas das revistas de cordel do século passado. Shame on me. Feita a ressalva, venha a expiação. Que ideia é esta, enraizada em muitos de nós, seres intelectualmente ativos, estimulantes e estimulados, de achar que os ignorantes são mais felizes do que nós só porque (aparentemente) são mais... ignorantes? Para começar, o que é que distingue um ignorante de um não-ignorante? A palavra “ignorante” tem origem no latim, no vocábulo ignorantia, um derivado de ignorare, que por sua vez significa “não saber.” O dicionário, por seu lado, define ignorante da seguinte forma: “pessoa que não tem conhecimentos ou prática em determinada matéria; pessoa sem instrução; analfabeto; desconhecedor.” É inquestionável, até para um leigo, que a ignorância está ligada a um certo grau de conhecimento – ou desconhecimento de algo ou alguma coisa. Mas que grau? É ele que determina se alguém se enquadra, ou não, na categoria de ignorante? E isso faz com que essa pessoa seja, por arrasto, feliz? Foi o que perguntámos à psicóloga Cristina Sousa Ferreira, da Oficina de Psicologia. “‘Ignorance is bliss’ é uma frase de Thomas Gray [poeta e romancista inglês] que pertence à sua Ode on a Distant Prospect of
Eton College, de 1768. Que sentido faz esta afirmação nos tempos de hoje? ‘A ignorância é uma bênção’ é uma expressão que quer dizer que é melhor não saber de um facto, que se é mais feliz quando não temos informação sobre determinado tema. Há circunstâncias em que a ignorância é uma bênção porque nos traz um maior bem-estar. Há circunstâncias em que a escolhemos, e evitamos a informação e o conhecimento, e outras em que a ignorância nos impele ao conhecimento e nos leva a querer saber mais. Podemos preferir ter pensamentos mais felizes e manter uma visão (excessivamente) otimista sobre a ameaça à saúde que enfrentamos. Podemos também preferir não saber como é que as oscilações na economia, a taxa de natalidade e os fundos da Segurança Social podem estar a afetar as nossas garantias de reforma. Se soubéssemos tudo o que aconteceria na nossa vida antes de acontecer, isso poderia paralisar-nos de medo ou podia motivar-nos a tomar decisões diferentes. No entanto, a ignorância leva o homem, e a ciência, à evolução, à procura do conhecimento. É a ignorância que nos impele à procura de informação e de conhecimento e que faz o homem comum, e o da ciência, quererem evoluir e saber mais. Nascemos para pensar, aprender e inovar. Optar por permanecer ignorante vai contra a natureza humana. É uma maravilha ver os olhos e os rostos das
crianças quando descobrem alguma coisa, quando saboreiam ou têm uma experiência nova na vida.” Mas nesse caso porque é que certas pessoas “escolhem” permanecer na ignorância? “Vivemos uma época de acesso à informação sem precedentes. No entanto, num mundo com tanta informação e tão fácil acesso a ela, somos todos ignorantes! A ignorância refere-se a falta de conhecimento, a ausência de saber, e por muito que saibamos muita coisa há muito mais que não sabemos. Ter acesso à informação nem sempre produz conhecimento, nomeadamente se pensarmos em todas as informações conflituantes e confusas disponíveis hoje na Internet. As fontes são importantes e a evidência científica fundamental. Onde ir buscar informação e conhecimento? Há fake news, pessoas a ‘informarem’ e a falarem do que não sabem nem são efetivamente conhecedoras. Mas queremos verdadeiramente essas informações todas, o tempo todo?” Não queremos. Nem nós, que dissecamos todos os aspetos da vida humana ao mais ínfimo detalhe (nós, os tais intelectualmente ativos, estimulantes e estimulados) nem os outros — os néscios, os idiotas, os ignorantes. A especialista continua: “Temos sede de conhecimento, mas às vezes a ignorância é uma bênção. Então como escolhemos entre estes dois mindsets em cada momento? Como é que o cérebro decide entre conhecimento e ignorância? Num artigo científico de março de 2020, realizado pela Carnegie Mellon University, é referido que as pessoas às vezes preferem menos informação, mesmo quando isso significa que podem não ser capazes de tomar decisões totalmente informadas. Este estudo revelou que o desejo de evitar a informação é generalizado e que a maioria das pessoas tinha alguns domínios — como saúde, finanças ou perceção dos outros —, em que preferiam permanecer sem informação. Não queremos saber ao detalhe o que passa na cabeça dos outros sobre nós, de que forma o nosso emprego está em risco ou em que estado estão os nossos pulmões de fumadores. O estudo também mostrou que o desejo por informações foi consistente ao longo do tempo; aqueles que expressaram preferência por evitar informações num determinado momento expressaram preferências semelhantes quando questionados novamente semanas depois. [...] Não foram encontradas diferenças no evitamento da informação por ideologia política, nível económico, género ou mesmo nível de educação. Todos parecemos preferir o benefício incerto de tomar decisões mais bem informadas ao potencial mal-estar de receber más notícias. Podemos dizer que muitas vezes a ignorância é uma escolha. Ter medo do conhecimento parece disparate, mas todos nós temos perguntas para as quais não queremos saber a resposta. Como também se costuma dizer ‘Olhos que não veem, coração que não sente’.” A psicóloga enumera uma série de exemplos que, parecendo óbvios, são excelentes motivos para praticar o mantra “a ignorância é uma bênção” — seja por pessoas mais ou menos inteligentes. “Nas relações amorosas: ‘o meu marido está a trair-me, mas prefiro não o confirmar.’ Nas relações interpessoais: ‘prefiro não saber tudo o que os outros pensam ou dizem de mim.’ Nas relações familiares: ‘não quero saber detalhes sobre a vida social dos meus filhos adolescentes, sabe-se lá o que vou descobrir.’ Na saúde: ‘tenho um caroço na axila, mas prefiro não ir ao médico.’ Na política: ‘vou confiar na informação do governo sobre o aquecimento global, mas não quero saber o impacto que tem na minha vida.’ Na sociedade: ‘o uso de drogas do meu ídolo é seguramente fake-news.’” E assim sucessivamente. Entramos, todos nós (uns mais do que outros, é certo, mas esta espécie de “escape automático” não poupa vítimas e nem mentes iluminadas lhe conseguem escapar), numa espiral de negação que nos protege da realidade — e que nos permite avançar.
Onde está, então, a diferença? O que é que distingue “uns” dos “outros”? Socorramo-nos de George Steiner (1920-2020), crítico literário, ensaísta, professor — e um dos maiores intelectuais da nossa era — e do seu livro Dez Razões (Possíveis) para a Tristeza do
Pensamento, publicado em 2005. “Todos nós vivemos as nossas vidas numa maré e num magma incessantes de atos-de-pensamento, mas apenas uma parcela muito restrita da espécie dá provas de saber
pensar. Heidegger professava em tom desolado que a humanidade no seu todo não tinha ainda emergido da pré-história do pensamento. Em proporção com a massa da humanidade, os letrados cerebralmente — falta-nos um termo adequado — são pouco numerosos. A capacidade de nutrir pensamentos, ou os seus rudimentos, é universal, e poderá encontrar-se ligada a constantes neurofisiológicas e evolucionárias. Mas a capacidade de pensar pensamentos que valem a pena ser pensados, quanto mais serem expressos e preservados, é comparativamente rara. Não são muitos os que entre nós sabem pensar com uma finalidade exigente, quanto mais original. Menos ainda os que são capazes de reunir na íntegra as energias e o potencial de pensamento e de dirigir estas energias para aquilo que é designado por ‘concentração’ ou perceção intencional. Um rótulo idêntico obscurece os anos-luz de diferença que há entre o ruído de fundo e as banalidades da ruminação comuns a toda a existência humana (tal como é talvez à dos primatas) e a complexidade e forças miraculosas do pensamento de primeira ordem.” O que Steiner aponta, resumidamente, é essa distinção entre quem dá o passo em frente, entre quem quer saber mais, e quem se fica pelo conforto da ignorância. Porque qualquer um de nós, com maior ou menor QI, pode optar por ficar num estado semivegetativo de negação relativamente a uma série de temas — até em relação a si próprio. É quando a luz da consciência e da razão se sobrepõem
a tudo o resto que passamos a fronteira. Nesse momento não só deixamos de ser ignorantes (leia-se isto com muitas aspas) como, de certa forma, passamos a ser um nadinha menos felizes. Mas só (sublinhe-se o só) porque, a partir daí, temos de lidar com o mundo tal como ele é. Em setembro de 2010, num artigo de opinião sobre a ignorância poder ser (ou não) uma bênção, Lane Wallace, colunista da revista The Atlantic, escrevia o seguinte: “A determinada altura, lembro-me de aprender que existem quatro etapas de conhecimento. A primeira é quando você não sabe o que não sabe. (Ignorância). A próxima etapa, quando você é sacudido dessa abençoada ignorância, é quando você sabe o que não sabe. A terceira etapa, à medida que você acumula mais conhecimento, mas ainda está dolorosamente ciente do quanto não sabe, é quando você não sabe o que sabe. E a quarta, que eu chamo de fase do Mestre Zen, é quando você sabe o que sabe. Porque é que algumas pessoas se apegam tão obstinadamente à ignorância? Porque a ignorância é uma bênção. É preciso coragem para ser sábio.”
E é. Tenhamos ou não (a perfeita) noção disso. De volta às palavras de Cristina Sousa Ferreira: “Todos nós queremos coisas diferentes na vida, mas cada um de nós tem esperanças e sonhos. Para conseguir o que queremos, temos de agir e para saber o que fazer, e como agir, precisamos de informações. Sem conhecimento, não podemos progredir. No entanto, obter informações e adquirir conhecimento não é fácil, requer tempo e esforço. Metas menores exigirão menos informações e, portanto, menos tempo e esforço. No entanto, os nossos maiores objetivos de vida requerem mais experiência e, portanto, muito tempo e conhecimento. As experiências trazem-nos conhecimento e destroem a ignorância. [...] Pessoas que conseguem crescer e evoluir na incerteza e ambiguidade são insaciavelmente curiosas. Entusiasmam-se com o que não é óbvio e resolvido. Os cientistas são atraídos por pequenas inconsistências que não parecem corresponder a outros dados. Os carpinteiros estão entusiasmados em descobrir como construir algo que nunca foi tentado antes. Os cozinheiros querem saber como um novo ingrediente muda um sabor familiar. É assim que vão surgindo novos conhecimentos. Explorar as inconsistências e lacunas permite, de repente, muito mais compreensão, mais conhecimento e mais
insight. Tudo porque alguém estava curioso e fez uma pergunta por ignorância. Uma ignorância com muito valor! É caso para dizer: ‘Santa ignorância!’” No fundo, ninguém é totalmente ignorante nem totalmente não-ignorante. Os dois espectros tocam-se, constantemente. E pressupor que estamos, seguros e altivos, de um lado da barricada que é superior ao outro não passa de um engano autoinfligido. Tal como sublinha a psicóloga, “a forma de aumentar a nossa compreensão da ignorância e despertar ainda mais a nossa curiosidade é continuar à procura de mais conhecimento. São dois aspetos eternamente ligados. Ignorância e conhecimento. Todos nós temos limitações. Esta é a realidade de ser humano. No entanto, o que importa, mais do que o conhecimento em si, é qual o conhecimento em que nos queremos focar e evoluir. Podemos não ter controle total sobre as experiências que surgem na nossa vida, mas podemos escolher quais os caminhos a seguir. Isso é o que faz toda a diferença. Escolher o que queremos aprender e o que escolhemos ignorar.” No episódio 257 da série The Simpsons, a filha do meio da família amarela mais conhecida do planeta, Lisa, vira-se para o pai e, com um ar desesperado, anuncia-lhe: “Dad, as
intelligence goes up, happiness often goes down.” (“Pai, à medida que a inteligência aumenta, muitas vezes a felicidade diminui”). É possível que parte do seu raciocínio esteja correto. De facto, é possível que “pensar mais, ou demais”, e fazê-lo conscientemente, e constantemente, seja um fardo pesado e, em muitos casos, fatal. Procurar ansiosamente saber “coisas novas”, “soluções diferentes”, “outros caminhos”, é cansativo, desgastante. Querer entender o porquê de tudo e mais alguma coisa, ou querer ter as respostas a todos os grandes dilemas da humanidade, é esgotante. A outra parte, a que está apenas implícita, e errada, é considerar que “os outros”, como a mulher trintona, solteira, banal, a que inventei em 2008, são mais felizes porque a sua vida é um mar de rosas. Na maior parte dos casos, não é.