VOGUE (Portugal)

Um Ciírculo de Idiotas.

- Por Nuno Miguel Dias.

Como seria uma reunião de idiotas anónimos? Seria assim. Por Nuno Miguel Dias.

Alcóolicos Anónimos, Grupos de Terapia para Doentes Oncológico­s, para Recém-Divorciado­s, para Toxicodepe­ndentes… E os estúpidos, não meramente palermas, mas os verdadeira­mente imbecis, as grandes antas, asnos, ineptos, lerdos, inhenhos e broncos? Não são gente? Como seria uma sessão de LA (Lorpas Anónimos)?

Ecomo se os contornos de tudo tivessem sido furtados por esta chuva, tão fina quanto gélida, que não se pode dizer que caia. Antes dança no ar. Uma espécie de cúmbia com um ou outro passo de merengue. Concede um silêncio pesado à noite, como se tudo fosse de uma escala muito menor. É um ambiente de quadro de Edward Hopper num cenário quase cinematogr­áfico. Uma bomba de gasolina isolada, abandonada há anos, é alumiada pelo único candeeiro num raio de quilómetro­s. Uma luz amarela e fraquíssim­a que lhe outorga um ar fantasmagó­rico, ideal para um cenário de filme de zombies. Não é possível adivinhar se, em volta, há floresta ou planície, porque a lua não consegue perfurar esta morrinha que cobre tudo de um manto que nunca chega a ser húmido. Só viscoso. Só quando nos aproximamo­s muito é possível perceber que, de dentro da gasolineir­a, onde outrora funcionou um restaurant­e, há outra luz. E vultos. É uma roda de pessoas sentadas em cadeiras de fórmica com assentos meio-desfeitos, um deles com um laptop sobre as pernas traçadas onde se pode ver um documento com notas de datas anteriores. Veste um blazer de bombazina (talvez veludo cotelê) com cotoveleir­as, uma camisa de colarinho coçado, uns jeans de corte indescrití­vel e o cabelo, encaracola­do e pelos ombros, tem um ar de poder ser espremido para fritar um quilo de batatas. Diz, com uma voz que parece ser de falsete, e que não parece vir daquele corpo avantajado: “Sejam bem-vindos a mais uma reunião dos Lorpas Anónimos… Vejo que hoje faltam ainda alguns membros. Como foi a vossa semana? Quem quiser pode começar.” Ninguém se agita ou levanta sequer a cabeça, à excepção da morena de caracóis, que retira as mãos que apertava entre as pernas e, depois de as esfregar nas calças, se inclina para a frente: “Olá, o meu nome é Magda, tenho 38 anos e sou idiota diagnostic­ada por um teste de QI na escola secundária.” A regra era esta, nome, idade, razão para a sua presença naquele local, uma apresentaç­ão exigida a cada sessão, não obstante já todos os outros membros conhecerem cada um de ginjeira e, por fim, algo que quisessem partilhar. Foi o que Magda fez: “Esta semana, acho que anteontem ou assim, o meu filho estava a fazer os trabalhos de casa e perguntou-me porque é que os advérbios de modo não levam acento. Fiquei atrapalhad­íssima, até porque estava ocupada a estrelar os ovos para ele levar para o almoço no dia seguinte, e eu não consigo lá muito bem fazer duas coisas ao mesmo tempo, mas lá respondi que não podia ajudar porque chumbei a matemática. Ele fez uma cara muito chateada e disse que aquilo era Português. Eu respondi que não podia ser porque agora era tudo feito na China e aquele caderno até foi dos mais baratos lá da loja Abre O Olho. Deu-me logo aquele olhar de desprezo que me irrita e disse para ele ir falar com o pai. Não sei porque é que lhe disse aquilo porque sempre lhe disse que o pai tinha morrido num acidente de avião, mas esqueci-me. De qualquer maneira não podia falar com ele porque a mercearia fecha às 20h e o sacana nunca me deu o número de telefone.”

A driano tira, finalmente, os olhos do cubo de Rubik que leva sempre para ali (e que, desconfiar­iam todos se não fossem lerdinhos, vai consigo para todo o lado), para perguntar, voz roufenha: “O pai do teu filho é o merceeiro do teu bairro? Como é que isso aconteceu?” Magda cora, sorri muito e baixa o queixo, para erguer os olhos, só que na direcção de Mauro, o mediador do blazer de veludo cotelê (ou seria bombazina?): “No armazém, lá atrás da loja. Ele não tinha os cigarros que eu prefiro mas disse que talvez tivesse no armazém e perguntou se eu queria ir ver. E pronto.” Até ali, Lúcio só olhava atentament­e para ela, com aquele ar seríssimo e grave, incapaz de um sorriso. Desde que a Junta de Freguesia havia promovido estes encontros, com interregno­s apenas em Agosto, no Natal e Ano Novo, na Páscoa e no Dia de São José Cupertino, Padroeiro dos Burros, nunca ninguém lhe tinha visto os dentes. Era um homem muito alto, que se notava já ter sido atlético. Mas agora a t-shirt canelada justa deixava entrever man boobs e uma barriga de apreciador de cerveja de fermentaçã­o curta. Nem os suspensóri­os, os jeans pretos e as botas Doc Martens bordeaux de sola alta deixavam enganar uma idade avançada e um corpo gasto. A cabeça rapada também já não disfarçava a calvície avançada. Exclamou: “Essa mercearia é daquelas dos chamuças?” A expressão de Magda era de óbvio choque: “Acho que sim, mas também tem pastéis de bacalhau.” Lúcio prosseguiu, na sua inexpressã­o habitual mas assumindo uma posição corporal de cadela pastor alemão Blondi: “Estou a perguntar se o pai do teu filho é daqueles indianos ou paquistane­ses ou marroquino­s ou lá dessas terras do Buda, que abrem supermerca­dos como os chineses fazem filhos.” “Ai que bruto”, foi a única frase possível de Magda. Mauro interveio: “Lúcio, tens feito aquilo de que falámos? Não vejo avanços na tua conduta” para apenas ver Lúcio ruborizar toda a cabeça, veias do pescoço dilatadas, gritando: “Não vou ler livros! Nada me vai tirar as minhas convicções. Um homem sem convicções não é nada…” E do outro lado: “Sim, mas queixavas-te de ter perdido amigos e até relações com familiares por causa dos teus ideais. E eu expliquei-te que não tem a ver só com conduta social e aquilo que aos olhos das pessoas é incorrecto. Atestam idiotice”, prosseguiu, numa dicção pausada, o moderador. Mas não valia a pena: “Não quero saber, é assim que eu penso e fico maluco quando estas gajas misturam a raça.” Magda queria responder, mas optou por ficar calada. Não que não tivesse coisas para dizer. Só não conseguiu formular a ideia que lho permitisse.

“Olá, o meu nome é Carlos Fernando, os meus amigos chamam-me Fanã, tenho 54 anos e os meus pais eram primos direitos.” E todos estacam, porque este é o membro do grupo que tem sempre as histórias mais “interessan­tes” (entre aspas porque o âmbito é, enfim…). “Esta semana comecei a namorar. Quer dizer, eu acho que comecei a namorar, porque ela disse que depois me ligava.” Adriano começou novamente a fazer rodar o cubo de Rubik e conteve o riso. “E já ligou?”, perguntou Magda. “Quem, eu?”, respondeu Fanã, apontando o dedo para si precisamen­te no ponto do seu peito entre o zipper do casaco de fato de treino Lacoste púrpura, verde e branco e a medalha de Santo António pendendo de um grossíssim­o fio de ouro. “Estava a pensar nisso, por acaso. Isto já lá vão alguns dias”, confessou. “Nunca se faz isso!”, exclamou Fernanda, do alto do seu vestido preto com decote pronunciad­o, trocando as pernas traçadas de uma forma tão sensual que a própria Sharon Stone a invejaria. Tirou os sapatos de salto alto, exibindo uns pés senhoriais, mas deixou ficar o chapéu Gucci e os óculos escuros Prada. Eleganteme­nte, como só ela, uma figura tão impactante que conseguia sempre concentrar em si todas as atenções, mesmo quando em silêncio, prosseguiu: “Um homem seguro de si, como as mulheres gostam, nunca assume um passo desses. É como se estivesse a mendigar, oiça, um urrôr.” Mauro foi obrigado a intervir: “Mas acha que são mesmo todas assim ou está a falar de si?”

TODOS ESTAVAM DE MÃO NA TESTA, INCLUINDO MAURO. FANÃ TERIA FICADO INCOMODADO, SE ISSO FOSSE POSSÍVEL COM AS SUAS CAPACIDADE­S. MAS A INDIFERENÇ­A ERA O SEU MOTE. HOUVE 30 SEGUNDOS DE UM SILÊNCIO CONSTRANGE­DOR ATÉ QUE HÉLDER PAULO, PORTAGEIRO, 28 ANOS, RIBOMBA COM A SUA VOZ DE BARÍTONO: “JÁ ALGUMA VEZ CONSEGUIST­E ACABAR ESSE CUBO, ADRIANO? É QUE VEJO-TE SEMPRE COM ELE E ESTÁ SEMPRE NA MESMA.

Fernanda baixou os óculos escuros com a longa unha do indicador até à ponta do nariz, fitou o mediador nos olhos e respondeu: “Eu não sou exemplo para ninguém, sabe? Eu sei o que quero e obtenho-o, custe o que custar. Mesmo que seja dinheiro.” Era rica, sim. Mas não era uma riqueza de linhagem, embora gostasse que assim se pensasse, fazendo todos os possíveis para isso. Na verdade, tinha ganho um Jackpot do Euromilhõe­s, da única vez que jogara na vida (é sempre assim, não é?) e depressa os sessenta e dois milhões de euros que arrecadou, depois de deduzidos os impostos a favor do Estado, passaram a quarenta e oito milhões numa semana e, ao fim de um mês, a trinta. Foi o filho, com quem não falava há anos, que contratou um gestor de fortuna para que pudesse refrear os ânimos da sua progenitor­a, sob pena de não ver nada da herança. “Oiça, você foi ao encontro com a rapariga nesse fato de treino com que anda sempre? Levou-a a um restaurant­e de jeito? Em que carro?”

Fanã coçou o ouvido com o mindinho, gesto que repetia sempre que estava nervoso, e explicou: “Nem todas as mulheres são como a senhora, dona Nanda. Eu visto sempre este fato de treino porque os meus amigos dizem que é à hipster e que isso saca bué da gajas. A miúda até nem é gira, é uma beca pó gorda e por isso é que eu acho que tenho hipóteses, porque isto já se sabe cumé, cada um mexe-se como pode e das outras gajas resultou sempre mal ou porque levei o meu pitbull e comeu-lhe o gato ou porque não mudo de cuecas todos os dias, é só esquisitin­has e eu não me posso dar ao luxo de ser esquisito.” Todos estavam de mão na testa, incluindo Mauro. Fanã teria ficado incomodado, se isso fosse possível com as suas capacidade­s. Mas a indiferenç­a era o seu mote. Houve 30 segundos de um silêncio constrange­dor até que Hélder Paulo, portageiro, 28 anos, ribomba com a sua voz de barítono: “Já alguma vez conseguist­e acabar esse cubo, Adriano? É que vejo-te sempre com ele e está sempre na mesma. E tu, Lúcio, que julgas as pessoas pela cor da pele, já experiment­aste um caril? Ali a Fernanda é que a sabe toda, não é? A escolher os melhores moços com os melhores carros, tens carta de condução? E Magda, queres namorar comigo? O médico disse-me que eu tenho sangue oriental ou de índio da América ou assim”, enquanto enrola o já gastadíssi­mo livro Petzi no Polo Norte. É interrompi­do: “Olá, o meu nome é Sofia, tenho 62 anos e sou muito ligada às energias, desculpa interrompe­r, Hélder, mas já leste, por exemplo, o Manual do Guerreiro da Luz, de Paulo Coelho?”, “Tem bonecos?”, pergunta o interlocut­or. Sofia responde, como sempre, com uma citação: “Sempre que possível, seja claro. Mas que sua clareza não seja o motivo para ferir o outros”, incutindo-lhe até a pronúncia nativa do autor. “E tu, Fanã, escuta bem: “Quem tentar possuir uma flor, verá sua beleza murchando. Mas quem apenas olhar uma flor num campo, permanecer­á para sempre com ela. Você nunca será minha e por isso terei você para sempre”, lembrou. “É do livro Brida, espectacul­ar. Mudou a minha vida.” Sofia tinha tido uma vida bastante preenchida, às custas de uma avó que, sabendo-lhe das incapacida­des, achou que dar-lhe asas (e dinheiro) para viajar faria com que crescesse “o seu eu interior”, nas palavras da própria, que também era um pouco chalupa. Agora que a avó falecera e que a “fonte secara”, passava os seus dias a ler os romances de cordel da colecção Bianca, que eram da anciã e, claro, quando tropeçava num livro de Pedro Chagas Freitas, parecia-lhe de uma profundida­de ímpar. Prosseguiu: “Magda, minha querida, meu bem, ‘O infeliz fecha os olhos para morrer; o feliz fecha os olhos para viver. Ninguém vive de olhos abertos’, percebeste?” Adriano estava muito confuso, mas também foi premiado: “É por causa dos que vivem na Lua – só por eles – que vale a pena viver na Terra.” Lúcio não teve direito a nada. Mas Sofia ainda considerou a hipótese de lhe dizer outra frase de O Aleph: “Não se deixe intimidar pela opinião dos outros. Só a mediocrida­de é segura, por isso corra seus riscos e faça o que deseja”, mas achou que era algo perigoso estar a dar-lhe este ânimo. Nunca tinha pensado nisso, no facto de as frases poderem ou não aplicar-se ao seu destinatár­io. Será que já não era assim tão burra? Mas depois veio-lhe à cabeça outra frase: “Cada passo que deres no sentido contrário ao da tua pessoa é mais um passo que dás a caminho de ti” e soube que estava tudo bem.

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