Procura-se Noção.
Acrescente uma pitada de noção. Por Pureza Fleming.
Num mundo em que toda a gente tem “uma palavrinha a dizer” acerca de tudo e mais alguma coisa, onde fica tudo aquilo que não deveria ser dito? Não, não podemos proferir tudo aquilo que pensamos. É pouco inteligente, insensato até. E demonstrativo, na maior parte das vezes, de uma total, e assustadora, falta de noção.
Oconceito é abstrato. Já o termo, usado com regularidade o quanto baste no quotidiano de todos nós, é impossível de escapar. Abrimos as redes sociais e lá está ela, a “falta de noção”, espalhada pelos quatro cantos. Saímos à rua, vamos ao café, ao restaurante, à loja da esquina, e em qualquer um desses sítios assistimos a uma cena qualquer de total e completa “falta de noção.” A noção — ou a falta desta — está um pouco por toda a parte, como um vírus que se propagou de forma descontrolada. E com a agravante de que nem sempre se tem (lá está) a noção de que se perdeu a noção. Parece confuso e redundante, e é. O dicionário
Priberam define a palavra noção como: “ideia que se tem de uma coisa; conhecimento, notícia; conhecimento elementar; exposição sumária.” Em suma, diz-nos que a noção está intimamente ligada ao conhecimento — no geral e no mais particular dos casos. Embora faça imenso sentido, nós vamos um bocadinho mais longe e arriscamos dizer que alguém com ou sem noção começa por ser alguém com ou sem noção da sua pessoa, do seu eu interior. Ou, em linguagem psicanalítica — que é, à partida, a disciplina que mais preocupação demonstra em aprofundar os meandros do eu — uma questão de autoconhecimento. De autoconsciência. Ou então de uma total inconsciência de quem se é, além do aparato que se construiu para se definir o eu que se julga ser. A falta de noção, portanto. Esclarece-nos a psicanalista Isabel Botelho que “cultivar a autoconsciência implica aumentar as suas hipóteses de agir de forma mais lúcida, espontânea e livre. Ou de se ser simplesmente mais humano, porque se está mais em contacto consigo, com a sua identidade, e mais ciente dos seus próprios padrões, conflitos, repetições, autolimitações e defesas — que importa ir procurando conhecer, desconstruir, aceitar ou resolver.”
Quando acima se mencionaram as redes sociais, não é com o intuito de se dar início a uma caça às bruxas. Acontece que é muito “por aquelas zonas” que a falta de noção acontece de forma abrupta: por aquilo que se publica, por aquilo que se comenta, pelas atrocidades que se cometem entre seres da mesma espécie — humanos pouco ou nada humanos. Por, enfim, muita falta de noção. É certo
que a ausência de noção também se nota entre pares, na esfera íntima que constitui famílias, amizades, relações amorosas, etc. Porque se aponta o dedo aqui e ali, se julga aqui e acolá, e se dirigem críticas como se não houvesse amanhã e, ainda mais, como se não houvesse noção. Noção, acima de tudo, de que a realidade do outro é a realidade do outro, enquanto a nossa realidade é a nossa realidade. E nem o espírito santo deverá ter algo a dizer a não ser que lhe seja solicitada uma opinião — na maioria das vezes, não é. Escreveu o filósofo Herbert Spencer que “a liberdade de cada um termina onde começa a liberdade do outro”, e esta frase tem tanto de simples quanto de genial. E deveria ser posta em prática muito mais vezes. Ter-se, pelo menos, muito mais noção desta noção de liberdade. Voltamos, assim, à questão da autoconsciência, porque, tal como apontou a psicanalista, quem cultiva a autoconsciência torna-se, invariavelmente, mais humano — porque ser mais humano é estar-se mais ciente de si e das suas falhas, logo, mais consciente do ser humano, no geral, como este é: com as suas virtudes e as suas fraquezas. Mas o que é, afinal, ser-se autoconsciente? Para começar, trata-se de um trabalho — e leia-se trabalho de forma literal, porque é, de facto, um trabalho— árduo. Uma capacidade para se lidar com um eu que não se está à espera de “ver.” Um eu muitas vezes desconhecido, mas que está lá.
Ser autoconsciente significa que nos observamos a nós próprios e que somos objeto e sujeito da nossa observação”, avança Isabel Botelho. “Que temos essa capacidade instalada ou em continuada instalação. Por outras palavras, implica que pensamos os nossos próprios pensamentos, que auscultamos o que sentimos e o que somos, mas na nossa interação com os outros sem os quais afinal não seríamos. Implica um sentido de identidade, que advém de uma postura subjetiva ligada ao desenvolvimento geral da mente na sua relação consigo mesma e com o mundo exterior. Ser autoconsciente acarreta a sensação de ser/existir como um indivíduo único e total. É um processo de atenção, de perceção e de busca para entender o lógico (e o ilógico) por trás da compreensão de si mesmo. E esta autoconsciência pode desenvolver-se, isto é, não é um lugar de chegada, mas antes um processo, uma viagem. Viagem que pode ser acompanhada por um psicanalista ou um psicoterapeuta.” Sublinhem-se a expressão “compreensão de si mesmo”, porque nela cabe toda a relevância do mundo quando o assunto é a noção, e a falta desta. Ora se um ser não tem a consciência de quem é na sua essência e além da máscara que construiu para si, como é que este vai ter o discernimento de elaborar qualquer tipo de juízo de valor relativamente ao outro — à vida do outro, às suas escolhas, ao seu
post de Instagram? O 16.° Presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln (1809-1865), expôs o seguinte: “Antes de começar a criticar os defeitos dos outros, enumere pelo menos dez dos seus.” Philippe Destouches (1680-1754), dramaturgo francês, proferiu que “quanto aos defeitos dos outros, o homem tem olhos perspicazes”, o que trocado por miúdos significa que é muito mais fácil ter-se “noção” quando esta é dirigida à vida alheia. Albert Einstein (1879-1955), por sua vez, referiu que “a mais grave das faltas é não ter consciência de falta alguma”, porque também há quem não tenha noção da sua falta de noção. E o psiquiatra Augusto Cury (1958), para encerrar aqui as referências a citações, disse que “a grandeza de um homem não está no quanto ele sabe, mas no quanto ele tem consciência que não sabe.” Porque é exatamente nesse ponto onde se começa a traçar o caminho para a noção, que é como quem diz, para o conhecimento de quem se é no mais profundo âmago do ser: ter noção de que pouco se sabe — só saber que nada se sabe. “A falta de noção é uma expressão que exige ser complementada. Ter, por exemplo, falta de noção do tempo, da gravidade, do contexto, das consequências dos seus atos, do que se passa à sua volta… Parece
remeter, pelo menos nestes exemplos que me surgiram, para uma ideia de relação com a realidade, ou de moralidade. De fratura com esta. Quando é utilizada como antecâmara de uma crítica, ou de um juízo qualquer, pressupõe um desvio entre o que se observa e o que (idealmente) se deveria observar. Ou refere-se, mais prosaicamente, à relação de uma pessoa com a realidade externa, como se esta relação com o mundo exterior (traduzida em atitudes e ações) fosse de alguma maneira desadequada, deficitária, ou estivesse danificada. Levando-nos a pensar na possibilidade de estarmos perante uma manifestação de algum grau de alienação da realidade, de um estado confusional, de comportamentos antissociais, ou de desorganização mental. Neste sentido, e em prol de uma ideia de autoconsciência em evolução, e de uma maior vitalidade identitária, os processos de autoconhecimento, de psicoterapia ou psicanálise podem, quando convivem com a capacidade de compromisso e empenho, dar um importante contributo a um melhor esclarecimento interno e a uma melhor capacidade de amar e de relacionamento consigo mesmo e com os outros (o mundo). E abrir clareiras para a transformação”, elucida aquela psicanalista.
Digamos que, de uma maneira ou de outra, todos nós teremos, em algum instante das nossas vidas, momentos de falta de noção que se prendem, talvez, com esta falta de noção do eu. Porém, isto leva-nos a outra variante importante, e que não deve ser colocada de parte, se o desígnio for evitar ao máximo ocasiões em que a falta de noção pode ser sinónimo de corte fatal ou de aproximação total. Referimo-nos ao silêncio. “Se a palavra é de prata o silêncio é de ouro”, reza o provérbio (os provérbios têm quase sempre razão). Séneca, por seu turno, reavivou com perspicácia que “Deus dotou o homem de uma boca e dois ouvidos para que ouça o dobro do que fala.” Ou seja, reforçando novamente a ideia de que o homem fala demais e ouve apenas aquilo que quer, como quer, da forma que melhor lhe convém. Muita falta de noção seria evitada se o homem se submetesse mais vezes ao silêncio. Num ensaio publicado no Jornal I sobre a falta de noção e de respeito, já que ambas andam de mãos dadas, o jornalista José Paulo do Carmo apontou o seguinte: “Continua a existir, no entanto, quem nunca tenha percebido o real valor e amplitude da propalada palavra ‘liberdade', não lhe conhecendo os limites nem tão-pouco o seu significado, usando-a como pretexto para justificar toda e qualquer barbaridade num mundo em que tudo a todos é permitido. E é essa falta de noção ou mesmo de educação que faz com que muitas vezes se esqueça que sempre que dizemos ou fazemos alguma coisa a alguém existe esse alguém do outro lado, que também tem os seus próprios direitos e sentimentos, e que é importante considerá-los e respeitá-los. […] Parece que passamos o dia à procura que os outros falhem para, num assomo de inveja, se lancem todas as pedras para nos sentirmos um pouco melhor.” E este é talvez o ponto mais importante da noção e da falta dela. Não se trata de discordarmos com o que X faz, pensa, publica, ou com o que Y diz. Trata-se sim, e antes de mais nada, de uma questão de respeito pelo próximo. A facilidade com que se invade e destrói a vida alheia está longe de ser sinónimo da liberdade que tanto se apregoa — é mesquinho e maldoso. É crucial que se entenda que a nossa falta de noção pode ser demasiado prejudicial à vida do outro. Declarar, como tanta gente “sem noção” apregoa do alto da sua ignorância, “eu cá digo tudo o que penso”, é não ter a mínima noção — ou consciência — de que toda e qualquer ação de um eu tem consequências num outro eu qualquer. Não estamos sós e vivemos numa suposta sociedade. É importante relembrar esse pequeno-grande detalhe. Ou, tal como escreveu Miguel Esteves Cardoso: “Para termos uma noção do pouco que valemos, basta subtrair ao que somos o que aprendemos, o que lemos, o que vivemos com os outros. É só ver o que fica. Coisa pouca. Sozinho quase ninguém é quase nada. É somente juntos que podemos ser alguma coisa.” E, de preferência, com elevados níveis de noção. ●