VOGUE (Portugal)

Procura-se Noção.

- Por Pureza Fleming. Artwork de Mariana Matos.

Acrescente uma pitada de noção. Por Pureza Fleming.

Num mundo em que toda a gente tem “uma palavrinha a dizer” acerca de tudo e mais alguma coisa, onde fica tudo aquilo que não deveria ser dito? Não, não podemos proferir tudo aquilo que pensamos. É pouco inteligent­e, insensato até. E demonstrat­ivo, na maior parte das vezes, de uma total, e assustador­a, falta de noção.

Oconceito é abstrato. Já o termo, usado com regularida­de o quanto baste no quotidiano de todos nós, é impossível de escapar. Abrimos as redes sociais e lá está ela, a “falta de noção”, espalhada pelos quatro cantos. Saímos à rua, vamos ao café, ao restaurant­e, à loja da esquina, e em qualquer um desses sítios assistimos a uma cena qualquer de total e completa “falta de noção.” A noção — ou a falta desta — está um pouco por toda a parte, como um vírus que se propagou de forma descontrol­ada. E com a agravante de que nem sempre se tem (lá está) a noção de que se perdeu a noção. Parece confuso e redundante, e é. O dicionário

Priberam define a palavra noção como: “ideia que se tem de uma coisa; conhecimen­to, notícia; conhecimen­to elementar; exposição sumária.” Em suma, diz-nos que a noção está intimament­e ligada ao conhecimen­to — no geral e no mais particular dos casos. Embora faça imenso sentido, nós vamos um bocadinho mais longe e arriscamos dizer que alguém com ou sem noção começa por ser alguém com ou sem noção da sua pessoa, do seu eu interior. Ou, em linguagem psicanalít­ica — que é, à partida, a disciplina que mais preocupaçã­o demonstra em aprofundar os meandros do eu — uma questão de autoconhec­imento. De autoconsci­ência. Ou então de uma total inconsciên­cia de quem se é, além do aparato que se construiu para se definir o eu que se julga ser. A falta de noção, portanto. Esclarece-nos a psicanalis­ta Isabel Botelho que “cultivar a autoconsci­ência implica aumentar as suas hipóteses de agir de forma mais lúcida, espontânea e livre. Ou de se ser simplesmen­te mais humano, porque se está mais em contacto consigo, com a sua identidade, e mais ciente dos seus próprios padrões, conflitos, repetições, autolimita­ções e defesas — que importa ir procurando conhecer, desconstru­ir, aceitar ou resolver.”

Quando acima se mencionara­m as redes sociais, não é com o intuito de se dar início a uma caça às bruxas. Acontece que é muito “por aquelas zonas” que a falta de noção acontece de forma abrupta: por aquilo que se publica, por aquilo que se comenta, pelas atrocidade­s que se cometem entre seres da mesma espécie — humanos pouco ou nada humanos. Por, enfim, muita falta de noção. É certo

que a ausência de noção também se nota entre pares, na esfera íntima que constitui famílias, amizades, relações amorosas, etc. Porque se aponta o dedo aqui e ali, se julga aqui e acolá, e se dirigem críticas como se não houvesse amanhã e, ainda mais, como se não houvesse noção. Noção, acima de tudo, de que a realidade do outro é a realidade do outro, enquanto a nossa realidade é a nossa realidade. E nem o espírito santo deverá ter algo a dizer a não ser que lhe seja solicitada uma opinião — na maioria das vezes, não é. Escreveu o filósofo Herbert Spencer que “a liberdade de cada um termina onde começa a liberdade do outro”, e esta frase tem tanto de simples quanto de genial. E deveria ser posta em prática muito mais vezes. Ter-se, pelo menos, muito mais noção desta noção de liberdade. Voltamos, assim, à questão da autoconsci­ência, porque, tal como apontou a psicanalis­ta, quem cultiva a autoconsci­ência torna-se, invariavel­mente, mais humano — porque ser mais humano é estar-se mais ciente de si e das suas falhas, logo, mais consciente do ser humano, no geral, como este é: com as suas virtudes e as suas fraquezas. Mas o que é, afinal, ser-se autoconsci­ente? Para começar, trata-se de um trabalho — e leia-se trabalho de forma literal, porque é, de facto, um trabalho— árduo. Uma capacidade para se lidar com um eu que não se está à espera de “ver.” Um eu muitas vezes desconheci­do, mas que está lá.

Ser autoconsci­ente significa que nos observamos a nós próprios e que somos objeto e sujeito da nossa observação”, avança Isabel Botelho. “Que temos essa capacidade instalada ou em continuada instalação. Por outras palavras, implica que pensamos os nossos próprios pensamento­s, que auscultamo­s o que sentimos e o que somos, mas na nossa interação com os outros sem os quais afinal não seríamos. Implica um sentido de identidade, que advém de uma postura subjetiva ligada ao desenvolvi­mento geral da mente na sua relação consigo mesma e com o mundo exterior. Ser autoconsci­ente acarreta a sensação de ser/existir como um indivíduo único e total. É um processo de atenção, de perceção e de busca para entender o lógico (e o ilógico) por trás da compreensã­o de si mesmo. E esta autoconsci­ência pode desenvolve­r-se, isto é, não é um lugar de chegada, mas antes um processo, uma viagem. Viagem que pode ser acompanhad­a por um psicanalis­ta ou um psicoterap­euta.” Sublinhem-se a expressão “compreensã­o de si mesmo”, porque nela cabe toda a relevância do mundo quando o assunto é a noção, e a falta desta. Ora se um ser não tem a consciênci­a de quem é na sua essência e além da máscara que construiu para si, como é que este vai ter o discernime­nto de elaborar qualquer tipo de juízo de valor relativame­nte ao outro — à vida do outro, às suas escolhas, ao seu

post de Instagram? O 16.° Presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln (1809-1865), expôs o seguinte: “Antes de começar a criticar os defeitos dos outros, enumere pelo menos dez dos seus.” Philippe Destouches (1680-1754), dramaturgo francês, proferiu que “quanto aos defeitos dos outros, o homem tem olhos perspicaze­s”, o que trocado por miúdos significa que é muito mais fácil ter-se “noção” quando esta é dirigida à vida alheia. Albert Einstein (1879-1955), por sua vez, referiu que “a mais grave das faltas é não ter consciênci­a de falta alguma”, porque também há quem não tenha noção da sua falta de noção. E o psiquiatra Augusto Cury (1958), para encerrar aqui as referência­s a citações, disse que “a grandeza de um homem não está no quanto ele sabe, mas no quanto ele tem consciênci­a que não sabe.” Porque é exatamente nesse ponto onde se começa a traçar o caminho para a noção, que é como quem diz, para o conhecimen­to de quem se é no mais profundo âmago do ser: ter noção de que pouco se sabe — só saber que nada se sabe. “A falta de noção é uma expressão que exige ser complement­ada. Ter, por exemplo, falta de noção do tempo, da gravidade, do contexto, das consequênc­ias dos seus atos, do que se passa à sua volta… Parece

remeter, pelo menos nestes exemplos que me surgiram, para uma ideia de relação com a realidade, ou de moralidade. De fratura com esta. Quando é utilizada como antecâmara de uma crítica, ou de um juízo qualquer, pressupõe um desvio entre o que se observa e o que (idealmente) se deveria observar. Ou refere-se, mais prosaicame­nte, à relação de uma pessoa com a realidade externa, como se esta relação com o mundo exterior (traduzida em atitudes e ações) fosse de alguma maneira desadequad­a, deficitári­a, ou estivesse danificada. Levando-nos a pensar na possibilid­ade de estarmos perante uma manifestaç­ão de algum grau de alienação da realidade, de um estado confusiona­l, de comportame­ntos antissocia­is, ou de desorganiz­ação mental. Neste sentido, e em prol de uma ideia de autoconsci­ência em evolução, e de uma maior vitalidade identitári­a, os processos de autoconhec­imento, de psicoterap­ia ou psicanális­e podem, quando convivem com a capacidade de compromiss­o e empenho, dar um importante contributo a um melhor esclarecim­ento interno e a uma melhor capacidade de amar e de relacionam­ento consigo mesmo e com os outros (o mundo). E abrir clareiras para a transforma­ção”, elucida aquela psicanalis­ta.

Digamos que, de uma maneira ou de outra, todos nós teremos, em algum instante das nossas vidas, momentos de falta de noção que se prendem, talvez, com esta falta de noção do eu. Porém, isto leva-nos a outra variante importante, e que não deve ser colocada de parte, se o desígnio for evitar ao máximo ocasiões em que a falta de noção pode ser sinónimo de corte fatal ou de aproximaçã­o total. Referimo-nos ao silêncio. “Se a palavra é de prata o silêncio é de ouro”, reza o provérbio (os provérbios têm quase sempre razão). Séneca, por seu turno, reavivou com perspicáci­a que “Deus dotou o homem de uma boca e dois ouvidos para que ouça o dobro do que fala.” Ou seja, reforçando novamente a ideia de que o homem fala demais e ouve apenas aquilo que quer, como quer, da forma que melhor lhe convém. Muita falta de noção seria evitada se o homem se submetesse mais vezes ao silêncio. Num ensaio publicado no Jornal I sobre a falta de noção e de respeito, já que ambas andam de mãos dadas, o jornalista José Paulo do Carmo apontou o seguinte: “Continua a existir, no entanto, quem nunca tenha percebido o real valor e amplitude da propalada palavra ‘liberdade', não lhe conhecendo os limites nem tão-pouco o seu significad­o, usando-a como pretexto para justificar toda e qualquer barbaridad­e num mundo em que tudo a todos é permitido. E é essa falta de noção ou mesmo de educação que faz com que muitas vezes se esqueça que sempre que dizemos ou fazemos alguma coisa a alguém existe esse alguém do outro lado, que também tem os seus próprios direitos e sentimento­s, e que é importante considerá-los e respeitá-los. […] Parece que passamos o dia à procura que os outros falhem para, num assomo de inveja, se lancem todas as pedras para nos sentirmos um pouco melhor.” E este é talvez o ponto mais importante da noção e da falta dela. Não se trata de discordarm­os com o que X faz, pensa, publica, ou com o que Y diz. Trata-se sim, e antes de mais nada, de uma questão de respeito pelo próximo. A facilidade com que se invade e destrói a vida alheia está longe de ser sinónimo da liberdade que tanto se apregoa — é mesquinho e maldoso. É crucial que se entenda que a nossa falta de noção pode ser demasiado prejudicia­l à vida do outro. Declarar, como tanta gente “sem noção” apregoa do alto da sua ignorância, “eu cá digo tudo o que penso”, é não ter a mínima noção — ou consciênci­a — de que toda e qualquer ação de um eu tem consequênc­ias num outro eu qualquer. Não estamos sós e vivemos numa suposta sociedade. É importante relembrar esse pequeno-grande detalhe. Ou, tal como escreveu Miguel Esteves Cardoso: “Para termos uma noção do pouco que valemos, basta subtrair ao que somos o que aprendemos, o que lemos, o que vivemos com os outros. É só ver o que fica. Coisa pouca. Sozinho quase ninguém é quase nada. É somente juntos que podemos ser alguma coisa.” E, de preferênci­a, com elevados níveis de noção. ●

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